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Fanny Ardant



Foto: Indayara Moyano

A atriz e diretora francesa Fanny Ardant fala de política, liberdade e das diferenças entre povos


Fanny Ardant desembarcou em São Paulo para apresentar o seu primeiro curta-metragem: Chimères Absentes (em tradução literal, Quimeras Ausentes). A atriz francesa ficou conhecida como a “última musa” de François Truffaut (1932-1984) – diretor que a lançou ao estrelato no filme A Mulher do Lado (La Femme d’à Côté). Em visita ao estado, ela trouxe consigo, aos 61 anos, toda a elegância, charme e simpatia da estrela de cinema que é.

Vestida de preto, Fanny concedeu este depoimento à Revista E no bar do CineSesc – local de lançamento do filme. Com olhar penetrante, respondia pausadamente a cada pergunta. Quando questionada acerca de sua fascinação pelos homens, não titubeou: “Adoro o universo masculino porque tive um avô, um pai, um irmão, tios e primos. Sou de uma geração em que me diziam: ‘Você tem de ser feminista’. Mas, amava a companhia dos homens”.

Na conversa, também falou do curta de seis minutos que dirigiu a convite do Então e Agora – Além das Fronteiras e Diferenças –, projeto que reúne 14 filmes de diversos países sobre o tema da tolerância. O lançamento do filme completo, composto pelas 14 produções, será em 2011.

A história de Chimères Absentes fala de uma professora de música, interpretada pela atriz, que leciona para uma aluna cigana. “Os ciganos representam o mundo da liberdade, que procurei abordar”, diz. Mesmo tendo trocado as Ciências Políticas pela carreira artística, que lhe rendeu prêmios importantes como o César, Fanny não hesita em tocar em temas como política, moral e machismo. A seguir, trechos.


Sorvete da criança


Comecei no cinema ao participar do filme A mulher do Lado, de François Truffaut. Há 30 anos atuo como atriz. Trabalhei com diversos diretores [Alain Resnais, François Ozon, Franco Zeffireli, Ettore Scola e Constantin Costa-Gavras, Roman Polanski, Sydney Pollack, entre outros]. Porém, não costumo dizer com quais deles me identifiquei mais.

Isso não importa, nunca parei para pensar nisso. Se eu falar que prefiro esse ou aquele, estaria sendo obrigada a premiá-los. E sempre odiei prêmios e condecorações. Aliás, não acompanho nenhum tipo de premiação, nem mesmo Cannes ou qualquer outra. Não me interesso porque considero o prêmio como um sorvete dado a uma criança.

Claro, a premiação dá prazer. Mas ela é efêmera. No dia seguinte todo mundo já esqueceu quem ganhou. É como alguém que fala para a criança: “Olha, garoto, seja bonzinho. Faça bem a lição de casa e, se for comportado, dou-lhe um sorvete de presente”. Os festivais de cinema são como um “panelão”, que tem filmes de todos os lados e de todos os lugares. O diretor Orson Welles, em minha opinião, foi um dos melhores. Mas acredito que ele nunca tenha sido premiado.


Travessia do Atlântico


Adoraria participar de um projeto no Brasil. Gostaria que um diretor brasileiro me dissesse: “Alô Fanny, você quer participar de um filme no Brasil?” (risos). Mas não há nenhum projeto, por enquanto, além do lançamento desse curta-metragem. Fiz essa viagem exclusivamente para apresentar essa grande aventura. Não gosto de viajar, de fazer turismo, nem de exotismo.

Mas gosto dos seres humanos. Por isso, posso atravessar o Oceano Atlântico e encontrar os brasileiros, que são iguaizinhos aos parisienses. As pessoas deste país que amam a arte, a literatura e o cinema são muito semelhantes e me sinto bem aqui.


Na companhia dos homens


Adoro o universo masculino porque tive um avô, um pai, um irmão, tios e primos. E eu os adorava. Sou uma mulher de uma geração em que me diziam: “Você tem de ser feminista”. Mas eu sempre gostei da companhia dos homens.



"O mundo cigano difere do mundo ocidental, que é politicamente correto e convive com todas as suas certezas. Contrasta o mundo capitalista e sem piedade, onde a gente não come se não pagar"




E não queria lutar contra eles. Porém, considero as sociedades machistas como uma grande violência. Se tivesse vivido numa sociedade opressora, eu seria feminista. Aliás, só posso falar da minha sociedade. E nela sempre escolhi a liberdade, ainda que ela tenha seu preço.


Mundo cigano


Dirigir pela primeira vez [o filme Cinzas e Sangue, 2009] foi uma experiência muito excitante para mim. Depois das filmagens, só mantive boas lembranças. Esqueci todos os sofrimentos, pois foi um período muito intenso. Se fosse preciso recomeçar tudo, eu certamente teria prazer. Já o Chimères Absentes é o meu primeiro curta e o segundo trabalho como diretora.

Nele, enfoquei a cigana como personagem principal porque foi um tema indicado pelos próprios organizadores do projeto. Como o mote era “tolerância”, não quis tratar da questão religiosa. Preferi abordar o mundo cigano, que representa dois mundos diferentes. Representa a liberdade, contra a autoridade e o poder, e um mundo sedutor, que procurei abordar em minutos de filme. O mundo cigano difere do ocidental, que é politicamente correto e convive com todas as suas certezas. Ele faz um contraste com o mundo capitalista e sem piedade, onde a gente não come se não pagar.


Ordem é desordem


Os políticos não são tão importantes quanto eles eram antes. Eles são levados por algo mais forte do que eles. Os políticos sempre me pareceram estar em frente de uma barragem que iminentemente se rompe. Não existe grupo político que possa ensinar algo. Acabou o mundo das revoluções.

Olha a experiência soviética, que era a esperança do amanhã: todo mundo cantando de mãos dadas, assim como no catolicismo todos são irmãos. Mas isso é uma mentira ou é um sonho. A mudança começa por você mesmo ou pela maneira que tratamos o semelhante. Nunca acreditei em partidos políticos, mas há pessoas que pensam diferente de mim e respeito.

A divergência é ótima, pois há quem se organiza em volta do poder e há aqueles que são livres para fazer o que querem. Não tenho nada contra alguém que se engaja politicamente. Mas, para mim, a ordem é desordem. E a gente precisa de desordem. Se o mundo for ordenado, torna-se um desastre. Sempre haverá lugares para quem quer ordem e lugares para quem não quer.

Existe esse equilíbrio tênue, que faz a força da democracia. O grande perigo é a globalização, esse fascismo. É uma forma de ditadura, porque as pessoas se sentem culpadas por não penetrarem nesse universo de mercado.


Depois da chuva


O cinema é capaz de trabalhar a liberdade. Considero o cinema como a chuva, depois da qual não sabemos o que surge: se vão nascer ervas ou flores. Nunca é direto, nunca. Mas, além do cinema, sempre fui impressionada pela literatura. A minha moral vem da literatura, e não de um padre ou de um político. Tudo o que me alimentou chegou através da arte: literatura, cinema, música.

Há o lugar dos homens bons e o lado dos maus. Graças ao cinema e à literatura nunca escolhi o mau. Meu autor preferido continua sendo Dostoiévski [escritor russo Fiódor Dostoiévski, 1821-1881], pois ele consegue ser o melhor e o pior. Adoro essa ideia de o ser humano ter o melhor e o pior para oferecer. Há também Ilíada [poema épico grego do século VIII a.C., escrito por Homero], que foi uma das histórias que mais amei desde criança. Em Ilíada, vemos os vencedores e os vencidos de forma igual.  ::