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João Spinelli
Arte sobre foto de Lili Antonelo
Criador e professor do curso de pós-graduação em arte pública da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), e do Instituto de Artes (IA), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), João Spinelli conhece bem o contexto social, econômico e cultural de estátuas e monumentos espalhados por São Paulo – sobretudo na região central da cidade.
Crítico à ocupação desenfreada dos espaços públicos, o especialista chama a atenção para a grande quantidade de personagens “desconhecidos” que povoa determinados locais. “Quantos bustos espalhados pela cidade são de pessoas que nós não sabemos o que fizeram?”, comentou durante conversa com o Conselho Editorial da Revista E.
“Mas estão no local porque os homenageados tiveram algum poder econômico, embora nem sempre um papel político recomendável.” Também doutor pela ECA, João Spinelli dedicou-se a inúmeras curadorias dentro e fora do país e organizou montagens em vários espaços, como a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Durante o bate-papo, Spinelli falou ainda sobre o impacto da arte pública em seu entorno e sobre a importância de seu referencial para qualquer cidade. A seguir, trechos.
Figuras ocultas
Quando a gente fala de arte pública não se pode esquecer as centenas de implicações políticas, sociais, econômicas que interferem na própria qualidade da arte pública. A arte é sempre polêmica e sempre política, a não ser aquela feita por artistas comerciais que querem vender a obra.
Infelizmente, uma grande parte da arte pública no mundo é composta de obras burocráticas, ou seja, pertence à esfera pública. E o poder público tem interesse muitas vezes em elogiar pessoas, que nem sempre dignificaram a sociedade, o ser humano e a sua comunidade.
Quantos bustos espalhados pela cidade são de pessoas que nós não sabemos o que fizeram? Mas estão no local porque os homenageados tiveram um poder econômico, embora nem sempre um papel político recomendável. Não há arte pública, porém, em cidades do interior do estado. Mas há um busto de uma figura que pertenceu a uma família, que doou aquela obra. Sim, porque muitas vezes eles são doados pela própria família, que não o quer.
Bustos na periferia
Não se coloca arte pública na periferia porque não há visibilidade, não dá retorno econômico, político, e muito menos pessoal para a família. Assim, o busto fica instalado numa região central, sendo que ele foi importante no Tatuapé, em Itaquera, Guaianases.
Porém, quando eu coloco uma obra de arte pública, mesmo sendo metafórica e simbolicamente, ela tem de remeter – historicamente – ao que aquele espaço significou. Precisa fazer a ponte entre o passado e o presente. Não pode perder a historicidade.
"Quando eu coloco uma obra de arte pública, mesmo sendo metafórica e simbolicamente, ela tem de remeter – historicamente – ao que aquele espaço significou"
Os artistas têm sido conclamados – de umas três décadas para cá – a pensarem obras para a periferia. Primeiro porque não há mais sentido concentrá-las numa única região. No Largo do Arouche [região central de São Paulo], há uma quantidade de bustos, um próximo do outro, que é das coisas mais medonhas na cidade. Se fizermos um levantamento das obras públicas da cidade de São Paulo, por exemplo, vamos constatar que mais de 90% delas estão numa região circunscrita e muito limitada, entre o centro e suas imediações.
Semblante estático
Antigamente, quando se falava em arte pública, considerava-se apenas a arte comprada ou encomendada pelo governo. E, por isso, de maneira nenhuma elas poderiam ser transgressivas, pois estavam sendo pagas pelo poder público. Na segunda metade do século 20, isso aos poucos se dissolveu. Os artistas começaram a recusar convites porque não havia mais sentido, em 1950, depois de todos os movimentos de vanguarda, pensar ainda em fazer estátuas.
Eu pergunto hoje: tem sentido, para a arte, uma estátua de algum ex-governador ou ex-presidente? Não, porque hoje o pensamento e a arte trabalham com metáforas, não apenas com elementos figurativos e evidentes. A arte trabalha com simbologias. Ou seja, ela interpreta as ações dignificantes, não o semblante do personagem retratado e o seu aspecto físico.
Por exemplo, existe uma estátua muito feia em homenagem ao governador Franco Montoro [1916-1999] que está próxima à Assembleia Legislativa. A obra foi feita por um artista desatualizado esteticamente, e o retrato é desproporcional.
Marco da cidade
As cidades anteriormente tinham seus espaços marcados por elementos “devocionais” ou artísticos. Se eu não sei o nome da rua, digo: “Ah, eu vou perto da estátua do Borba Gato”. Mesmo sem saber o nome das ruas, eu me guio por isso. Porque o elemento artístico é mais forte que o endereço. No entanto, uma cidade que não tem pontos marcantes fica extremamente impessoal.
A Praça da Sé, por exemplo, tinha prédios em estilo neoclássico belíssimos. Mas parte dela foi derrubada para a construção de uma estação de metrô. Qualquer engenheiro sabe que é possível construir passagens e estações sem destruir um prédio sequer. Em Paris, não derrubaram prédios de 100, 200, 300 anos para construir as estações. O preço vem depois. Perdemos uma praça que era das mais interessantes da cidade. Aliás, quando a gente fala da Praça da Sé é sempre com pesar.
A Catedral de São Paulo [Catedral Metropolitana de São Paulo ou Catedral da Sé], que tem uma das cúpulas mais altas do mundo, podia ser avistada da periferia. Infelizmente, prefeitos inescrupulosos e ignorantes permitiram que prédios mais altos fossem construídos em volta da catedral. E nós perdemos um marco, independentemente da religião.
Gravados na lápide
Hoje precisamos, porém, pensar mais em memorial do que em monumento. O memorial aos mortos da guerra do Vietnã, por exemplo, em Washington [capital dos Estados Unidos], é uma obra emocionante. Há na grande lápide negra o nome de todos os soldados americanos que morreram no conflito.
Para aquela mãe que perdeu o filho na guerra e vê o nome dele gravado para sempre no mármore, isso tem um poder incomparável. E não fica datado, em relação à maioria dos monumentos que tinham significado apenas na época em que foram construídos – há 80, 90 anos.
Mas outra questão da arte pública não diz respeito apenas à idealização da obra, da execução, do material a ser utilizado. Mas, sim, à sua instalação. Por exemplo, quando Brecheret [Victor Brecheret, 1894-1955, escultor italiano radicado no Brasil] instalou o seu Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, ele exigiu que a parte frontal da obra fosse voltada para o Pico do Jaraguá [na serra da Cantareira], pois o Pico era uma referência aos bandeirantes que voltavam a São Paulo depois das expedições.
A Estátua da Liberdade é outro exemplo da importância da instalação, já que ela parece convidar os imigrantes que passavam por problemas políticos em outros países. Erigida na Ilha de Manhattan – local proeminente na cidade de Nova York –, ela parece receber esses imigrantes. Se fosse instalada no Central Park [principal parque da cidade], teria uma visitação maior.
Em contrapartida, não teria o mesmo significado simbolicamente. A mesma coisa aconteceria se o Cristo Redentor [no Rio de Janeiro] não tivesse sido instalado naquele local [morro do Corcovado], com aquela visibilidade. Nesse caso, ele seria mais uma escultura. No entanto, a escultura tem resistido ao tempo, por ser simplificada. O artista resolveu com poucas linhas a simbologia do Cristo com os braços abertos. ::