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Inéditos
Ilustração Marcos Garuti
Amor antigo
por Roniwalter Jatobá
Ele encontra a antiga namorada no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação, bem em frente ao cinema HSBC Belas Artes. No primeiro momento, o encontro inesperado serviu pelo menos para uma séria constatação: os anos passam. Enquanto a cumprimenta, ele a vê bem mais jovem, em antigas lembranças, caminhando pela margem esquerda do rio Sena, em Paris, quando ali vivia num exílio voluntário, anos e anos atrás.
Recorda bem: ela estava vestida numa indumentária de renda, branca e transparente, o que realçava o corpo moreno numa tarde de verão. Trazia em volta do pescoço um exótico colar de conchas e, nos pés nus, uma trançada sandália de couro pintada de branco. Ele a vê também no boulevard de Vaugirard, caminhando ao seu lado, em direção à gare Montparnasse, onde já no começo do inverno se despede para a viagem a Lisboa, o começo da volta ao Brasil.
Lábios quentes, olhos em lágrimas, ele tem tudo nítido na memória.
Agora, no instante do reencontro em território paulistano, três décadas depois, os dois inicialmente fingem não existir o passado. Frente a frente no meio da multidão, as palavras demoram em concretizar frases curtas.
– Como vai você? – ele diz.
– Há quanto tempo, hein? – ela indaga.
Na realidade, nenhum deles parecia querer alongar a conversa. Mas era impossível fugir um do outro. Embora fossem agora apenas dois conhecidos, cada um tinha gravado dentro de si os dias e noites na feira matinal, nos bares, nos restaurantes e na alcova da rua Mouffetard, no Quartier Latin, quase esquina com rua Ortolan.
– Para que remoer uma paixão que teve seus dias para terminar –- e terminou? – ela pensa.
Por outro lado, ele imagina dar uma desculpa, inventar um compromisso e se safar logo dali. Medo? Mas, de súbito, ela se recorda de uma promessa de, um dia, escreverem um livro juntos.
– Já pensou em retomar aquele projeto tão sonhado? – ela sugere enquanto caminham em direção ao metrô na esquina da rua Augusta.
– Lembra do título? – ele diz. – Pomposo: “Trabalhadores esquecidos, ofícios e profissões desaparecidas em São Paulo de 1850 a 1920”. Viu como lembro?
Ele tem tudo isso anotado. Todo o projeto está guardado em uma pasta bem escondida num armário de seu apartamento.
– Os primeiros seriam os gasistas ou gaseiros, responsáveis pela iluminação a gás – ele recita.
– Claro, mas a gente ia também tratar dos condutores ou motorneiros dos bondes – ela replica, e ri.
– Não eram os carroceiros e os cocheiros? – ele acrescenta.
Os dois agora riem a valer. Os transeuntes naquele domingo olham e acham estranho o casal que gargalha em plena avenida Paulista. Eles também imaginam o mesmo e riem mais. Depois, se despedem e prometem se encontrar qualquer dia.
Já longe dela, ele recorda uma noite fria, os dois olhando pela janela a Mouffetard, os últimos boêmios no silêncio da rua, enquanto bebem vinho e alegria. No vagar da madrugada, falam de coisas agradáveis. Na cama, ela pergunta por que anda tão alegre.
Diz que, nos últimos tempos, tem visto a cidade com outros olhares. Fala de um jardim, que espera em breve nascer quase ao lado do prédio residencial, e até pensa em viver ali o resto da vida.
– Comigo? – ela quer saber.
– Claro – ele diz e a abraça com força.
Agora, apenas com suas recordações, ele desce do metrô na estação Brigadeiro e volta para casa. Começa a escurecer quando abre a porta do apartamento. Escancara todas as janelas para entrar um pouco de sol, réstias que chegam do lado oeste da metrópole.
Na sala, procura no esconderijo a velha pasta, mas não tem nenhuma vontade de abri-la. Guarda-a no mesmo lugar e se volta para uma antiga e solitária pesquisa que aponta os fatos mais marcantes do último ano do século 19.
***
São Paulo, 1899
Em janeiro a polícia localiza e prende os impressores de notas falsas e rótulos de produtos estrangeiros, além de reprimir o jogo do bicho. Também foram sorteados terrenos na Vila América, esquina da rua Augusta e da alameda Lorena.
Em fevereiro a Câmara reclama do prefeito Antônio Prado que as galerias dos rios Anhangabaú e Saracura não comportam as águas das chuvas e provocam enchentes. Um jornal registra que as festas de Carnaval têm ocorrido sem animação.
Em abril o último lançamento do imposto predial apontava que existiam 21.656 casas em São Paulo. Eram 18.010 térreas, 1.866 assobradadas, 1.678 de um andar e 102 com mais de um andar.
Em maio, na rua São Bento, começam a funcionar modernos aparelhos: rotoscópio e poliphônio. O primeiro servia para exibir panoramas em tamanho natural e o segundo para reprodução de vozes.
Em junho os moradores da rua Augusta e Vila América reclamam do governo do município a falta de iluminação e água encanada.
Em julho um decreto presidencial autoriza o funcionamento da The São Paulo Railway, Light & Power Co. Ltd.
Em agosto o circo da Cia. dos Irmãos Pery estreia na cidade, montado na praça da República.
Em setembro é inaugurada a linha de bonde a burro da avenida Paulista ao cemitério do Araçá. No jardim da Luz, um grande público vem se divertindo com um “panorama”, que exibe vistas de cidades europeias.
Em outubro são detectados em Santos alguns casos de peste bubônica.
São Paulo está alarmada. Em novembro é registrado o primeiro caso da doença na capital. Com receio, estudantes de Direito pedem o fechamento da faculdade e adiamento dos exames. O Desinfectório Central incinera ratos, pagando trezentos réis por roedor trazido pela população. Em apenas um dia, 594 deles foram queimados.
Já no pavilhão da hospedaria de Imigrantes, foi inaugurado o serviço de desinfecção individual para a prevenção da peste. Consiste em banho de água sublimada e tratamento das roupas. Passageiros procedentes de Santos só poderiam prosseguir viagem depois de oito dias de observação.
Em dezembro é divulgado que próximo ao ano-novo poderá ocorrer, como em 1799, 1833 e 1866, uma chuva de meteoritos. A população está atemorizada e crê no fim do mundo devido à colisão de um asteroide com a Terra.
***
– O mundo não acabou em 1899, mas muitos conseguem morrer em vida – ele diz para si mesmo em meio a um riso triste.
Aí, nota que a cidade vista do oitavo andar havia escurecido e já estão acesas as luzes das ruas, dos prédios vizinhos e da torre de televisão que paira sobre o edifício da TV Gazeta, na avenida Paulista.
– O amor duraria tanto tempo? – ele se indaga ao apertar o interruptor da lâmpada da sala.
Não sabe dizer. Caminha pelo apartamento e vai acendendo as luzes de todos os cômodos como se tentasse iluminar, para destruir, a imagem do rosto dela de trinta anos atrás fixado no coração e aquela partida de Paris, inesperada e sem sentido.
Lembra de uma pesquisa realizada pela equipe da professora Cindy Hazan, da Universidade de Cornell, em Nova York. Depois de entrevistar mais de cinco mil pessoas, a conclusão foi que uma paixão não dura mais do que dois anos e meio.
De acordo com Cindy, há uma série de evidências de que o que chamamos de grande amor é criado por um coquetel de substâncias químicas cerebrais e, em determinado momento, o efeito acaba.
– E o pequeno amor – ele ainda se pergunta – pode durar décadas?
Ele tenta se esquecer do estudo norte-americano e, noite adentro, continua relacionando as dezenas de notícias, as mais significativas do ano de 1899, talvez para esquecer o encontro daquela tarde. Até que venha o sono e ele não tenha mais que pensar nela – a possível coautora de uma história que nunca, jamais, vai ser escrita a dois.