Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Entrevista




Com o olhar agudo voltado à produção cultural, o filósofo e poeta fala sobre os rumos da literatura, da canção e do pensamento crítico na sociedade contemporânea

 

O filósofo e poeta Antonio Cicero nasceu em 1945, no Rio de Janeiro. Sem deixar de lado a publicação de suas obras, como Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras, 2005), desde a juventude seus versos ficaram conhecidos em letras de músicas, muitas delas cantadas por sua irmã, Marina Lima.

Com o tempo, foi fazendo novos parceiros, entre eles Lulu Santos, Adriana Calcanhoto, Orlando Moraes e João Bosco. “Amo e admiro meus parceiros, mas gosto de escrever textos que sejam fins em si, sem estarem ligados à música”, pondera Antonio.

Amante dos grandes filósofos, como Platão e Kant, Antonio Cicero nesta entrevista à Revista E analisa a qualidade da poesia atual, a relação das utopias diante do consumismo de mercado e os rumos da filosofia contemporânea. Nesta última questão, Cicero explica como Nietzsche é contraditório e se transformou em postulado pop.

“Nietzsche virou uma moda filosófica francesa, lançada por pensadores badalados. Ele não se importa de se contradizer, podendo-se extrair qualquer coisa do seu pensamento”, diz.

Antonio Cicero, junto com o professor Alex Varella, foi ainda Coordenador de Estética e Teoria das Artes no Galpão das Artes do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Entre 1991 e 1992, ele ministrou diversos cursos e pronunciou inúmeras palestras na instituição.

Em 1993, organizou junto com o também poeta Waly Salomão três ciclos de conferências tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, reunindo poetas como João Cabral de Mello Neto, John Ashbery e Haroldo de Campos; diretores como Peter Sellars e José Celso Martines Correa; e pensadores como Richard Rorty, José Arthur Giannotti e Darcy Ribeiro.

A seguir trechos da conversa na qual o intelectual – que atualmente se dedica a escrever poemas e ensaios – discorre sobre o valor da poesia, a utilização da filosofia na contemporaneidade, o sentimento de conformismo e as possíveis utopias da sociedade.

Em entrevista à Revista E, a professora Walnice Nogueira Galvão afirmou que a poesia tem sorte. Por não ser um objeto de consumo, pouco vendida, os poetas a fazem sem o peso da indústria cultural, que a tudo comercializa e esteriliza. E que por isso a qualidade da poesia é superior à da prosa. O que você pensa a respeito dessa visão?


É verdade que não se faz poesia por dinheiro. É mais comum fazê-la por amor. Isso é sem dúvida uma peculiaridade importante da poesia. Contudo, ocorre, em primeiro lugar, que mesmo algo que não seja desprovido de valor comercial pode ser feito apenas por amor.


Tanto que não é possível dizer que nenhum dos romances que foram best-sellers tenha valor estético. Ou que as telas que Picasso pintou na década de 1950, as quais já valiam fortunas, não tenham valor estético.

O fato de que algo não tenha valor comercial não significa que ele não possa ser feito em troca de outras moedas ou dinheiro, como os aplausos, a fama, o prestígio. Há, por exemplo, poetas que escrevem para adular determinado público ou para ganhar elogios – de acordo com as exigências de determinados críticos e modas.

Não devemos, portanto, confundir ética com estética. É verdade que, como diz Augusto de Campos [poeta e ensaísta brasileiro], o poeta não deve ir atrás de recompensas.

De maneira geral, a heteronomia atrapalha. Mas, para o bem ou para o mal, a verdade escandalosa é que, em matéria de arte, nem as boas intenções, a boa fé, a honestidade, a ética, o amor garantem coisa nenhuma. E nem as más intenções estragam tudo. 
 
A reunião da obra, em bons volumes, de poetas antes citados como marginais, caso de Roberto Piva, Chacal e mesmo Paulo Leminski (escritor e poeta brasileiro, 1944-1989), mostra que essa geração passou a ser mais bem compreendida e suas rebeldias foram deglutidas?


Creio que, em longo prazo, a rejeição provinciana de tudo o que não se conforma às convenções em voga tende a ser superada. E os bons poetas tendem a ser reconhecidos. De todo modo, os poetas ditos marginais eram muito diferentes uns dos outros.

A marginalidade que tinham em comum era, sobretudo, uma marginalidade em relação ao circuito editorial. Pensando bem, o fato, observado pela Walnice Nogueira Galvão, de que praticamente nenhum livro de poemas é objeto de consumo comercial, faz da própria poesia uma atividade relativamente marginal. 




“A leitura de um poema, mesmo quando efetuada em voz baixa ou interior, não se compara às demais experiências de leitura. Não se lê um poema como se lê uma notícia de jornal, uma bula de remédio, uma carta, um ensaio”

 
Já há algum tempo a poesia praticada no Brasil não está sintonizada com nenhum movimento literário. Cada um faz a sua poesia em seu canto. Como leitor, você enxerga alguma característica marcante nesta produção? Seria ela mais lírica?

Não enxergo nenhuma única característica marcante. Pode ser que no futuro se enxergue. Hoje não é possível. Há de tudo. Penso que o resultado da experiência das vanguardas, independentemente das intenções delas, foi o de mostrar que não é possível a priori receitar ou rejeitar as formas em que os bons poemas devem ser feitos.

Um soneto pode ser mais criativo que um poema hologramático. É preciso julgar caso a caso. Os poetas contemporâneos não podem deixar de saber disso.
 

A poesia é um gênero mais sofisticado que a prosa, pois requer um entendimento mais elaborado do leitor. Você acredita que uma das razões de a poesia ser pouco lida está no fato de ser pouco ministrada na escola? Poesia se aprende na escola?



Em princípio é possível ensinar a ler poesia na escola. A maior parte das pessoas é analfabeta em relação à leitura de poesia. A leitura de um poema, mesmo quando efetuada em voz baixa ou interior, não se compara às demais experiências de leitura.

Não se lê um poema como se lê uma notícia de jornal, uma bula de remédio, uma carta, um ensaio. Lido desses modos, um poema é uma chatice. A leitura de um poema, mesmo em voz baixa, mesmo “para dentro”, deve levar em conta a sua sonoridade.

E ela deve ser progressiva e regressiva, prestando atenção a todos os elementos semânticos e sintáticos, formais e materiais, descritivos e alusivos de que o poema é composto.

O bom leitor permite que o bom poema o transporte para uma temporalidade diferente da temporalidade cotidiana. Os professores devem ser preparados para ensinar essas coisas aos alunos.
 

De repente, um poeta como o inglês W. H. Auden se torna popular, ou quase, porque foi citado num filme como Quatro Casamentos e um Funeral (1994). É válido esse tipo de carona para se popularizar a poesia?

Sim. Por que não? Muita gente diz que passou a gostar de poesia a partir de uma experiência dessa natureza. Outros dizem que passaram a ler poesia depois de prestarem atenção a letras de canções.

A partir dessas experiências, cada qual abre – ou não – o seu caminho pela poesia. 
 

A filosofia está na moda? Autores como o suíço Alain de Botton e o francês Luc Ferry se tornaram best-sellers ao apresentar aspectos da filosofia numa forma mais acessível.


Não sei. A palavra “filosofia” quer dizer muitas coisas. Pensar, de maneira geral, sobre o sentido da vida, por exemplo, é chamado de filosofia.

Acho que esses autores talvez ajudem as pessoas a fazer a transição entre tal filosofia espontânea, prática, e a filosofia teórica. 



“Há sempre uma visão obscura do presente e relativamente clara do passado. Por isso, o passado nos parece cheio de pessoas e ideias geniais, enquanto o presente nos parece vazio”


 
Parece que a filosofia – já houve essa acusação – está sendo usada como instrumento de autoajuda. Para se compreender o amor, o desamor e até angústias contumazes do ser. Você vê algo de ruim nesse tipo de utilização?

O filósofo Boris Groys [pensador e escritor alemão] pensa que hoje só há lugar para esse tipo de filosofia, e não mais para a filosofia crítica. Quando digo filosofia crítica não me refiro necessariamente à Escola de Frankfurt, que é apenas uma espécie de filosofia crítica.

Seria um desastre se as coisas fossem conforme diz Groys. Pois, do meu ponto de vista, a verdadeira filosofia teria deixado de existir. Penso como Heidegger [filósofo alemão, 1889-1976], que o sentido da filosofia não é tornar as coisas mais fáceis, porém mais difíceis.

Mas não creio que Groys tenha razão. Pouco me importa que haja quem use a filosofia como autoajuda. Cada um use como quiser os textos que estão no mundo. Por outro lado, reservo-me o direito de eventualmente criticar um ou outro desses usos. A mim interessa principalmente a filosofia crítica.
 

Um filósofo e escritor como Nietzsche transformou-se num verdadeiro postulado pop – é citado por poetas, músicos etc. Suas ideias parecem encontrar uma forte ressonância em nossos tempos. Você saberia dizer o porquê de tanto sucesso do bom Nietzsche?

Sem dúvida, há muitas razões para esse sucesso. Nietzsche [o alemão Friedrich Nietzsche, 1844-1900] se tornou uma moda filosófica francesa, lançada por pensadores badalados, como Deleuze [Gilles Deleuze, 1925-1995] e Foucault [Michel Foucault, 1926-1984].

Como tantas outras modas filosóficas francesas, importamos essa também. E ela colou porque algumas proposições de Nietzsche são tomadas precisamente como receitas de autoajuda.

Nietzsche é também um grande escritor e poeta, cujos textos são quase todos claros, em comparação com os textos dos filósofos sistemáticos. O vitalismo e a afirmação de vida nietzscheana agradam exatamente a quem não tem a paciência do conceito.

Ele soa paradoxal, iconoclástico e revolucionário. E, por fim, o seu perspectivismo corresponde ao relativismo dominante atual. Nietzsche não se importa de se contradizer e muda frequentemente de ponto de vista. Assim, pode-se extrair praticamente qualquer coisa que se queira do pensamento dele.

Há outras razões, é claro, mas essas me são bem evidentes. Tome-se, por exemplo, a afirmação, que se encontra em Além do Bem e do Mal [livro de anotações e reflexões de Nietzsche, publicado em 1886], de que “a falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele” [...].

No entanto, a questão é saber em que medida ele promove ou conserva a vida. A ideia de ter a vida como critério não é exatamente uma receita de autoajuda? E trata-se de um texto claro, vitalista, paradoxal, iconoclástico, revolucionário, relativista, que defende a falsidade, logo, a autocontradição, como condição de vida.

Por falar em Nietzsche, acaba de ser publicada em português a obra monumental do Nietzsche: O Rebelde Aristocrata [Editora Revan, 2009], de Domenico Losurdo.

Ela deve mexer um pouco com os nossos revolucionários nietzscheanos, pois Losurdo prova documentalmente algo que qualquer um que tenha lido o próprio Nietzsche, e não apenas os seus epígonos, deveria saber, mas não sabe: que ele foi “o mais reacionário dentre os pensadores”. 
 

Qual é o seu filósofo predileto? Por quê?

O que mais gosto de ler é Platão [filósofo e matemático da Grécia Antiga], pela sua prosa maravilhosa. Na verdade, gosto de ler todos os grandes filósofos, mas penso que o maior é Kant [o alemão Emmanuel Kant, 1724-1804].

Ele levou às últimas consequências a razão crítica liberada pela filosofia moderna. Entre outras coisas, Kant fundamentou o princípio do direito como liberdade, instituiu a estética moderna e estabeleceu a autonomia da arte. Ninguém jamais o superou em agudeza analítica ou imaginação criativa.



“Nietzsche não se importa de se contradizer e muda frequentemente de ponto de vista, de modo que se pode extrair praticamente qualquer coisa que se queira do pensamento dele”


Costuma-se dizer que as décadas de 1980 e 1990 foram períodos consagrados ao Eu, enquanto os primeiros anos deste século foram marcados pelo consumo e mercado. Você acredita que nesse contexto haja ainda espaço para utopias?


Pelo menos as utopias tradicionais perderam o sentido, independentemente de egoísmos ou consumismos. Depois de tantas experiências políticas frustrantes e desastrosas, que custaram milhões de vidas e imenso sofrimento, a ideia de transformar rápida e radicalmente o mundo já não encanta tanta gente.

Isso não significa que o mundo não possa ser mudado. Não só ele pode ser mudado, mas tem mudado o tempo todo. Agora mesmo, nos Estados Unidos, conseguiu-se algo que parecia impossível – dada a organização e agressividade das forças reacionárias daquele país.

Foi aprovado o plano de seguro social universal defendido por Obama. Isso é uma mudança para melhor dos Estados Unidos. Penso que, no lugar das utopias tradicionais, temos de garantir a possibilidade de um reformismo permanente.

Afirma-se que nossa época seja marcada pelo conformismo, ditado pelo excesso de consumo e baixa discussão política. Seria essa uma das razões para explicar um momento cultural nomeado pela crítica como vazio e sem grandes desafios?

Tem-se sempre uma visão obscura do presente e relativamente clara do passado. Por isso, o passado nos parece cheio de pessoas e ideias geniais, enquanto o presente nos parece vazio.

Otto Weininger [filósofo austríaco, 1880-1903], por exemplo, dizia que o final do século 19, época de Mallarmé [poeta francês, 1842-1898], Cézanne [pintor pós-impressionista, 1839-1906], Husserl [matemático e filósofo alemão, 1859-1938], Freud [médico neurologista e fundador da psicanálise, 1856-1939] entre outros, foi uma época em que “tudo se tornou economia e técnica; época que declarou o gênio uma espécie de loucura, mas que não possui mais nenhum grande artista, nenhum grande filósofo, cuja época está desprovida de originalidade”.
 

De outro lado, sempre é lembrada a década de 1980 como um período culturalmente rico. Você acredita que isso tenha ocorrido pela luta política contra a ditadura e, portanto, a cultura, nos tempos atuais, esteja meio sem alvo a ser contestado?



Durante a própria década de 1980, ninguém a achava um período culturalmente rico. Ao contrário, ela era tida como a época do triunfo da ideologia yuppie [derivação da sigla YUP, cuja expressão significa Young Profissional Urban ou Jovem Profissional Urbano], época absolutamente frívola e sem esperança. 
 

Você morou nos Estados Unidos. Queria que você comentasse um pouco desse período e se algo o marcou.


Vivi lá na adolescência. O melhor foi ter aprendido bem inglês e a literatura de língua inglesa, mas não me adaptei ao high school. Eu praticamente não tinha vida social com os colegas. Meu pai tinha uma grande biblioteca e eu gostava de ficar em casa sozinho, lendo.

Mas alguns dos momentos mais marcantes que passei nos Estados Unidos se deram quando meu pai [o economista Evaldo Correia Lima, um dos fundadores, na década de 1950, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – Iseb] recebia seus amigos brasileiros que passavam por Washington, entre os quais Hélio Jaguaribe, Celso Furtado e Rômulo Almeida.

Todos eles moravam em diferentes cidades dos Estados Unidos, e de vez em quando todos se encontravam lá em casa. Para mim era uma festa. Eu era ouvinte entusiasmado das conversas deles. 

“Depois de tantas experiências políticas frustrantes e desastrosas, que custaram milhões de vidas e imenso sofrimento, a ideia de transformar rápida e radicalmente o mundo já não encanta tanta gente”


 
Você mantém alguma relação intelectual com a poesia norte-americana das décadas de 1970 e 1980?

Já li ou leio alguns poetas dessa época, como John Ashbery – que uma vez eu e Waly Salomão trouxemos ao Brasil, para participar de uma mesa com João Cabral [o poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto, 1920-1999] e Joan Brossa [poeta catalão, 1919-1998], no MAM [Museu de Arte Moderna] do Rio. 
 

Você mantém a produção de letras de música? O interesse por esse veículo artístico permanece?

Interessante é. Mas gosto mais de escrever poesia para ser lida. Amo e admiro meus parceiros, mas gosto de escrever textos que sejam fins em si – sem estar ligados a música nenhuma. Os poemas são autotélicos, isto é, têm sua finalidade em si, enquanto as letras são heterotélicas. Ou seja, elas têm sua finalidade noutra coisa, que é a canção. 
 

Dos seus companheiros de viagem, como letristas, na música brasileira, com quem melhor você se identifica: Cazuza ou Arnaldo Antunes?

Uma parte de mim se identifica com um e outra, com o outro. Gosto de ambos. 
 

Letra de música é poesia? Ou é apenas letra de música?

Letra de música é letra de música. Agora, nada impede que haja letras de música que, quando lidas, sejam poemas. E mesmo grandes poemas, melhores do que a maior parte dos poemas feitos para serem lidos.

Não nos esqueçamos de que os poemas líricos gregos eram letras de música. Hoje consideramos os poemas de Safo [poetisa grega, nascida entre 630 e 612 a.C.] ou Teógnis [poeta lírico grego, do século VI a.C.] obras-primas. Ora, eles foram feitos como letras de música.

Mas as letras que servem para a leitura não são necessariamente melhores do que as que não servem para tanto. Uma boa letra de música é simplesmente uma letra que, junto com a sua melodia, constitui uma boa canção.

Por outro lado, um poema bom para ser lido pode, ao ser musicado, tornar-se uma letra boa ou ruim. E pode ser uma letra ruim, mesmo que seja um poema bom. 
 

A pergunta que não quer calar: Caetano ou Chico?

Gosto muito de Chico, mas, para mim, Caetano é o maior de todos. 
 
Chico ou Aldir Blanc?

Chico. Mas algumas letras de Aldir, como Incompatibilidade de Gênios, são geniais. 
 

Fala-se sempre de romance de uma geração. No seu caso, existe alguma letra de música de sua geração? Algo que você leia, ou ouça, e flagre como um momento de seu tempo?


Sim. Vapor Barato, do Waly Salomão. A música é do Macalé e a gravação que me arrepia é a da Gal Costa no disco do show Fatal. ::