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Ilustrações de Marcos Garuti
 

Cultura “fast-food”

Por meio de ações de marketing, publicidade e outras técnicas de comunicação, a indústria cultural condiciona e dita o consumo das massas, fazendo com que obras, ?como as  cinematográficas e literárias, sejam produzidas em curto espaço de tempo e em quantidade exacerbada.

Essa dinâmica, no entanto, traz resultados considerados negativos, pois destitui o caráter essencialmente crítico da arte. A seguir, o crítico literário Fábio Lucas e o professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Fabio Akcelrud Durão, analisam a questão e as suas consequências.

Os malefícios da indústria cultural no âmbito da literatura
por Fábio Lucas

A musa da indústria cultural é a publicidade. Do ponto de vista da crítica literária, a publicidade antecipa o juízo crítico, visa predeterminar a opinião pública, acerca da edição da obra, mesmo antes de ela circular, de tornar-se acessível ao leitor, ou de ser lida.

A indústria da cultura foi gestada no seio da cultura de massa, esse descontrolado movimento da população afluente ao mercado a ditar as decisões do consumo na sociedade industrializada, isto é, marcada pela produção em série. Vale dizer, da produção fora da esfera do artesanato, ou da oferta de objetos dotados do estilo de seu criador.

Daí a observação de Herbert Marcuse no sentido de que a cultura de massa dessublimizou a obra de arte. Aliás, Jean-Jacques Rosseau, John Stuart Mill e Antonio Gramsci já assinalaram a trivialidade da cultura no período da modernidade. Na verdade, tais observadores constituirão uma reação aristocrática e elitista contrária à mentalidade iluminista. Tratava-se de combater a mentalidade de rebanho e o materialismo grosseiro da razão tecnológica.

Parece vivermos a era das teorias socioanalíticas da cultura. A “cultura”, no entanto, tornou-se o estuário de todas as especulações, autênticas ou não. Com a crise do capitalismo, esgotada a sua fase construtiva, observa-se o agravamento de suas tendências de origem: o monopólio e a dominação hegemônica, violenta e predatória. O homem e a natureza tornaram-se reféns da arrancada lucrativa dos empreendedores, confinados sob o manto do jogo (jugo) financeiro.

A indústria cultural pertence à estratégia expansionista da produção de símbolos. Vem sendo analisada ao longo do século 20. Implantou-se desde as décadas de 1920, 1930 e 1940, nos primórdios da Segunda Guerra, até o pós-guerra e a Guerra Fria. Hoje domina a mídia e impõe sua ética, que se confunde com sua estética. Implica o barateamento do produto, na sua mais ampla expansão e, de modo indireto, o controle da informação.
A indústria cultural tornou-se sequela da cultura de massa.

Eis que circulam os termos-chave de nossa era: indústria, cultura e massa. A racionalidade e o pragmatismo da produção não suportam a natureza crítica e analítica da obra de arte. Muito menos a coletivização do saber. A obra literária é, por natureza, rebelde e apologista da liberdade.

Eterna protagonista dos protestos. Deu-se, com a indústria cultural, o banimento da crítica da literatura nos chamados suplementos literários, hoje reduzidos a meros encartes publicitários de algumas editoras mais bem-sucedidas.


“Deu-se, com a indústria cultural, o banimento da crítica da literatura nos chamados suplementos literários, hoje reduzidos a meros encartes publicitários de algumas editoras mais bem-sucedidas”


Para efeito comercial, alguns autores preferem explorar os textos repugnantes, impregnados de linguagem tatibitate, de cenas de violência e de sexualidade explícita, fisiológica, apoiada em palavrões, distante do jogo amoroso.

Dirigem-se os autores a um público massificado, destituído de formação mais refinada.
Evita-se a visão armada, apta ao exercício da escolha, já que o gosto literário se tornou manipulado pelo monopólio da informação. Os veículos, por sua vez, são dominados pela mesma lógica do mercado: na ânsia de reduzir os custos de produção, massificam a recepção dos textos, submetidos à criminosa uniformização da linguagem.

As redações hoje em dia estão povoadas de “técnicos” que processam a canonização dos textos sem estilo, carregados de simplicidade palmar, neutralidade e redundância. A linguagem uniforme e banal, repetitiva, cuida de explorar emoções explícitas e fisiológicas, pois favorece a memorização e a lei do menor esforço. Urge captar o consumidor neutro, despolitizado, pouco afeito à discórdia e à opção de escolha.

É no ambiente massificado que se fortalece o conservadorismo retrógrado e manipulador. A publicidade tornou-se o principal instrumento da cultura de massa. Consequentemente, da indústria cultural.

Substitui o gosto pela informação formatada segundo os parâmetros da demanda. Assim, o consumismo kitch, baranga, achatadamente cafona, comanda o espetáculo global, que horizontaliza a indústria do espetáculo e infiltra-se?nos arcanos da própria criação literária.

A sociedade do lazer, emergente com os progressos das máquinas e da tecnologia, presumiu-se que iria oferecer tempos novos para a arte, o entretenimento e o esporte. A revolução dos meios, todavia, foi incapaz de estimular a revolução dos conteúdos, que padecem da estagnação ou do regresso ao nível mais baixo. A internet e a globalização prestigiam e aguçam o poder da massa de semialfabetizados.

A disponibilidade do saber não significa o saber. No passado, milhares de consumidores adquiriram dicionários e enciclopédias a prazo, a fim de preencherem os vazios dos móveis das salas de visitas. Quantas vezes compulsaram-se aquelas fontes de sabedoria? Hoje se abriram as avenidas da informação. O ciberespaço tornou-se viável a mentes desfavorecidas. A internet possibilita viagens surpreendentes ao desconhecido. Intensificou-se o intercâmbio de mercadorias e de material simbólico.

Mas o que se observa é que a publicidade, musa dos negócios, tornou cada vez mais análogos o pensamento e as utopias dos cibernautas. A massa infindável e envolvente de informações está a serviço de um planejamento da dominação das mentes e das vontades, cujo primeiro efeito, evidente, é a despolitização global da população. 

A “política” que é jogada na mídia não passa do lixo da conduta humana. Tornaram-se banais a violência e a corrupção, ao lado do conformismo mais basbaque. Os lugares cibernéticos da sociedade dos espetáculos passaram a ser os hospitais, as delegacias de polícia, os campos de futebol, as passarelas da moda e a teia desmedida de comentaristas.

Autoridades, políticos e administradores aparecem segundo a faceta patológica, a que aponta os crimes, os erros, os desvios da boa conduta, as alianças operacionais para fins utilitários, enfim, as várias maneiras de associações delituosas.

A literatura, salvo ligeiras exceções, ainda não incorporou esse modelo para o exercício da crítica. Ao mesmo tempo, há forte tendência de o lirismo descambar para a mais excrementosa pornografia. Seria o império da ligeireza e da incompetência.

Cremos estar no pórtico de nova era. Os valores hibernados pelo delírio tecnológico deverão repousar sobre as conquistas materiais e científicas, como é do espírito da visão humanista cuja primazia será sempre o ser humano e não os objetos de que se serve.

Trata-se de descoisificar a espécie humana, retirando-a do mercado. O culto da arte literária, além de trazer ao escritor os cabedais para a sua subsistência digna, haverá de inscrever-se no rol das atividades não utilitárias, mas plenas de sentido, indispensável à convivência da humanidade no seu mais alto nível.

A arte, em todos os tempos, representou as fraturas e oposições ao totalitarismo. E a cultura de massa corre o risco de propor o ordenamento e normatização da atividade intelectual.

No Brasil, tenta condicionar uma conduta coletiva que desconheça criticamente o passado e menospreze o futuro, pois hipostasia o presente, mutilador da razão e dos sentimentos nacionais, metido no modelo de dependência colonial, na degradação sistemática da identidade brasileira.

O nosso pragmatismo cotidiano, que inspira a má literatura, mostra-se pleno de autoajudas, de uma tresloucada paixão futebolística, de baixo padrão da música popular, de filmografia policialesca, enfim, de massiva exportação da pior imagem brasileira.

É bem verdade que a cultura de massa auxilia na erosão da História monumental, a serviço da glorificação dos poderosos. Mas não contribui para o salto qualitativo da arte erudita, nem da popular. Alguns cordelistas se salvam pela originalidade provinda de modo especial do veio humorístico ou brandamente satírico. As histórias em quadrinhos trazem surpresas na expressividade, ora cândida, ora intencionalmente agressiva, dos desenhos.

Mas são lamentáveis as transposições das obras clássicas para as tiras narrativas. Durante a ditadura militar, no
entanto, foram os cartunistas e os letristas da música popular que souberam, com arte e engenho, furar o cerco da censura.

Houve época em que se assinalou a “ocularfobia” das humanidades, desenvolvidas a partir do século 19. Certo menosprezo pelo visual. Hoje a visualização do corpus cultural brasileiro está pejada de infiltrações degradantes, desvios da melhor imagem.


Fábio Lucas é ensaísta e crítico literário. Autor de Literatura e Comunicação na Era da Eletrônica (Cortez, 2001), entre outros livros




Indústria Cultural e qualidade artística
por Fabio Akcelrud Durão


A indústria cultural é maléfica para as obras porque impõe um princípio heterônomo à sua construção. Isso não é difícil de explicar. Uma forma de conceber a história da arte é usar como fio condutor seu processo de libertação de elementos restritivos, que se estendiam desde fatores exteriores, como o sistema de mecenato, até componentes imanentes às obras, como a adequação a prescrições religiosas ou aos bons costumes.

No limite, até a noção de gênero viria a ser problematizada por uma arte emancipada, pois a obra ambiciosa iria recusar-se a se submeter a qualquer padrão que não fosse seu: ela gostaria de ser plenamente autárquica, de fornecer ela mesma os parâmetros que a organizariam e aos quais obedeceria. Desde o modernismo, a arte não mais precisa se adequar a qualquer princípio preexistente: ela pode ser imoral ou amoral, ser sacrílega e iconoclasta, violenta, abjeta e até mesmo ofensiva.

Essa liberdade de utilização de qualquer coisa, de todo e qualquer material composicional (inclusive de outras artes), faz com que o mérito da obra só possa ser vislumbrado a posteriori. O uso da escatologia em determinada pintura ou romance, por exemplo, se justifica? Ele contribui para que a obra surja como uma totalidade (ainda que fraturada internamente), ou figura apenas como puro exibicionismo, uma barata estratégia de choque?


“A indústria cultural não é má, não tem por detrás de si uma mente malévola que a controlaria com um objetivo específico; sua dominação ocorre por meio da cristalização de hábitos e expectativas (...)”



Duas conclusões iniciais podem ser tiradas daqui: em primeiro lugar, que a conquista da autonomia estética foi resultado de uma longa e dura história, e que essa conquista é precária e frágil, não podendo ser tida como certa, pois nada impede que ela simplesmente desapareça do horizonte.

Em segundo lugar, a libertação da arte de quaisquer amarras sociais ou psicológicas teve um caráter ambíguo na medida em que, se por um lado permitiu uma individuação e profundidade sem precedentes, por outro, elevou o patamar daquilo que realmente merecia existir por si só, sem os andaimes da exterioridade.

Em outras palavras, justamente porque a liberdade tornou-se extrema, ficou muito mais difícil para a obra de arte aparecer como algo realmente digno de sua própria ambição de singularidade.
A indústria cultural submete tudo aquilo que produz ao princípio da lucratividade. Como os investimentos em tecnologia são cada vez maiores, é cada vez mais necessário calcular muito bem as possibilidades concretas de obter um retorno satisfatório.

Essa dinâmica encoraja a utilização de fórmulas, de pré-moldados representacionais de sucesso já comprovado, que acabam levando à rigidificação dos gêneros e a uma lógica de repetição com pequenas variações – como exemplo, pense na noção de amor romântico no cinema ou na canção, segundo a qual uma pessoa complementa perfeitamente a outra em uma vida harmônica a dois.

É claro, nada poderia estar mais distante das relações afetivas reais, permeadas de conflitos, decepções e necessidade de ajustes contínuos. No entanto, deve-se ter muito cuidado com a ideia – verdadeira – de que a indústria cultural é manipuladora.

Como, nas sociedades capitalistas atuais, a ideologia é secundária em relação à obtenção de lucro, há algum campo de manobra para a confecção de obras que pareçam conformar-se a fórmulas extrínsecas, mas que, em uma camada mais profunda, desenvolvam outros sentidos. A bem da verdade, existem até mesmo momentos, ainda que raros, em que a indústria cultural exibe verdades enfáticas e mensagens cujo espírito vai contra ela mesma.

A indústria cultural não é má, não tem por detrás de si uma mente malévola que a controlaria com um objetivo específico; sua dominação ocorre, em vez disso, por meio da cristalização de hábitos e expectativas, reflexos mais ou menos condicionados, mesmo que historicamente variáveis, no âmbito da recepção.

Se desenvolvidos a um grau extremo, esses hábitos e expectativas podem até mesmo cristalizar-se em uma estrutura que não apenas antecede o contato com as obras, mas que interfere no próprio sujeito, já pré-formando o aparato sensorial. A experiência de choque e a crescente aceleração do cinema e da música talvez possam servir de exemplos.

É isso que responde ao argumento ideológico de que a indústria cultural só fornece aquilo que deseja o público, pois o desejo do público não é fruto da espontaneidade, do gosto individual e autônomo, mas resultado de um longo processo de socialização por meio dos próprios produtos da indústria cultural. Considere, por exemplo, o curioso funcionamento da palavra “sucesso” quando associada a canções no rádio.

O que ela deveria designar seria algo como: “dentre tantas outras, esta música foi escolhida pelos ouvintes como a que mais os agrada”, mas na realidade ela significa: “esta música será incessantemente tocada e se você quiser interagir bem com as outras pessoas, que a estarão ouvindo, é melhor você gostar dela”. O mesmo vale para o anúncio da verba recorde de determinado filme.

Longe de ser uma simples informação, a cifra é como uma profecia que se realiza ao ser pronunciada, já anunciando a inescapabilidade do objeto. Sem dúvida, há muitos casos de produtos mal-sucedidos, que mesmo após ampla divulgação ficam aquém do que era esperado deles.

Mas isso se deve menos ao exercício de um juízo de gosto do que a outras causas, como a competição com outras mercadorias. Mas tudo isso não estaria se modificando na era da internet e dos computadores? Eles não teriam levado a um barateamento da infraestrutura comunicacional; não estariam colocando a indústria cultural em cheque? Sim e não.

Por um lado não resta dúvida de que passamos hoje por um período novo, repleto de potenciais positivos, como a dificuldade, maior do que nunca, para o exercício da censura. Também é inegável que, para quem tem TV a cabo e internet (de preferência banda larga), a oferta de entretenimento é maior, e a interatividade vem se tornando uma possibilidade cada vez mais real.

Mas é também necessário perceber que a história está em curso e vários mecanismos, tanto técnicos quanto jurídicos, vêm sendo desenvolvidos para assegurar e expandir a noção de propriedade privada de conteúdos, dificultando assim a circulação gratuita e irrestrita de material audiovisual. Por outro lado, é importante não se deixar ofuscar por uma imagem falsa de liberdade.

O fato de a sociedade estar mais complexa leva à pulverização dos conteúdos em nichos múltiplos, onde pareceria reinar o princípio fundamental do respeito à diferença. Em relação a isso é necessário observar que: a) a dispersão dos públicos não impede que haja uma homogeneização horizontal, que os perpassasse respeitando sua lógica interna (para tomar o exemplo: o amor romântico em séries de televisão para homossexuais); b) a dispersão de produtos coexiste, por um lado, com a manutenção da concentração (compare a audiência de The L Word com a do Fantástico) e, por outro, com a imensa expansão da conectividade. É muito mais difícil atualmente ter silêncio e conseguir ficar alheio à indústria cultural, às televisões nos restaurantes ou ônibus, o resto de música nos iPods dos outros etc.

Hoje em dia, está mais difícil do que nunca se relacionar com a indústria cultural. Manter-se à margem, por aquilo que requer de esforço e pelo afastamento que gera da sociedade, não é desejável; submergir completamente, na esperança de poder julgar a tudo que se vê e ouve, é impossível, por causa da avalanche de mensagens, muito maior do que a capacidade de concentração de qualquer ser humano. Talvez a melhor postura seja aquela de quem não se fecha para o mundo, não abre mão do exercício da crítica: que se recusa a ser simplesmente entretido, se a condição para isso for o abandono do pensamento.

 


Fabio Akcelrud Durão é professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de Modernism and Coherence (Peter Lang, 2008) e coeditor de A Indústria Cultural Hoje (Boitempo, 2008), entre outros