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Raul de Souza




O trombonista Raul de Souza fala das dificuldades do começo da carreira até chegar ao sucesso internacional e das parcerias determinantes na sua trajetória


Ele queria um sax, mas ganhou um trombone. Assim começou a trajetória do músico Raul de Souza, de 75 anos, mais de 50 deles dedicados à música. “Eu era jovem e queria o saxofone, queria tocar cachimbo. Mas meu pai só podia comprar um trombone”, lembra Raul aos risos, durante depoimento concedido à Revista E no seu apartamento em São Paulo. “Fui embora meio triste sem o sax, mas ao mesmo tempo com muitas notas na cabeça.”

Até a juventude, Raul de Souza era conhecido pelo nome de batismo, João José Pereira de Souza. Recebeu o artístico no programa de calouros de Ary Barroso, que o apelidara de Raulzito.

O pai estudava para ser pastor, e, por isso, o menino aprendeu a tocar diversos instrumentos de metal na Assembleia de Deus. Aos 16 anos apenas, como integrante da banda Fábrica de Tecidos Bangu, daria início à carreira que seria reconhecida na década de 1970 no exterior. “Com Deus, eu saí do Rio e fui vencer nos Estados Unidos”, disse o jazzista, com uma voz gutural que lembra seu trombone.

Em solo norte-americano, Raul de Souza se projetou internacionalmente com o LP Colors, lançado em 1973 pela Milestone. O disco reuniu nomes expressivos do jazz, como o trombonista J. J. Johnson, o baterista Jack De Jonette e o saxofonista Cannonball Adderley. Depois, vieram outros três discos pela Capitol Records: Sweet Lucy (1977), Don’t Ask My Neighbors (1978) e Till Tomorrow Comes (1979). Conhecido pela versatilidade, Raul inventou o Souzabone: um trombone de quatro válvulas – normalmente o instrumento tem três. A seguir, trechos.

Cachimbo musical


Acredito que sou um músico autodidata. Nunca tive professor. O músico precisa estar livre de preocupação. Deve pegar o instrumento, desenvolver-se tecnicamente e tocar. Eu fiz isso na minha vida. Meu pai era estudante para pastor da Assembleia de Deus. E foi na igreja, aos quatro anos, que comecei a ouvir trombone, trompete e todos os instrumentos de metal. Logo passei a tocá-los.

A minha juventude foi difícil. Nasci em Campo Grande, mas cresci entre Padre Miguel e Bangu, no Rio de Janeiro. Com Deus, saí dali para vencer nos Estados Unidos. A primeira intenção era ter um saxofone. Eu era garoto, achava bonito aquele instrumento em forma de cachimbo. Meu pai, no entanto, não tinha dinheiro. E tivemos de comprar o trombone. Sem meu sax, fui meio triste para casa. Mas, ao mesmo tempo, caminhei com muitas notas na cabeça.

Em seguida as coloquei todas no trombone. Só que havia um problema, o instrumento não comportava tantos recursos. Então comecei a me adaptar. Cheguei a ser o trombonista mais rápido do mundo. Aliás, tem músico norte-americano que não gosta da maneira que toco. Eles falam: “Tem muitas notas aí”. Eu respondo: “Tem muitas notas, mas muitas notas certas”.

Para obter mais recursos musicais, inventei o instrumento Souzabone. Criei uma válvula a mais no trombone. Fiz o desenho e encomendei. Ele é o único do mundo nesse formato. E está patenteado por mim. Os músicos olham e acham incrível.

Ouvido apurado


Conheci um mecânico que morreu aos 18 anos. Foi a primeira pessoa que me ensinou alguma coisa no instrumento. Ele já fazia algumas frases, e eu gostava delas. Claro, também gostava dos hinos da igreja. Mas as frases eram mais interessantes e criativas.

Ele nunca repetia nenhuma. Fiquei amigo dele. Um dia tomei nota. Peguei o instrumento na posição correta e ele passou a me ensinar as notas dó maior e ré maior. Foi somente com essas duas escalas que comecei a estudar. O resto aprendi de ouvido porque meu amigo faleceu logo. Peguei todas as tonalidades do trombone. Sempre tive um ouvido apurado.

Quando deixei a igreja, entrei na banda Fábrica de Tecidos Bangu. Os músicos da banda eram todos velhinhos, aposentados do exército. Eu era o mascote da turma, com 16 anos. Não me deixavam beber nada de álcool. Ficavam me policiando. Na banda, tive o primeiro contato com o trombone de válvulas. Depois dessa experiência, quis colocar em prática tudo que vi.


Noites de gafieira


Comecei a fazer música nas boates. Havia muitas delas espalhadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era nas boatezinhas que os músicos e cantores tinham a chance de mostrar algo. Por isso, toda noite tentava um espaço nos palcos para tocar. Quando eu improvisava, os donos da casa interrompiam meu show. O som precisava ser linear. As pessoas tocavam e misturavam música com apresentações de comédia.

Mas, numa noite dessas, o Altamiro Carrilho [flautista e compositor] me chamou. Disse que eu sempre falava de improvisações, do Miles Davis [trompetista norte-americano, 1926-1991], do J. J. Johnson [trombonista norte-americano, 1924-2001]. Ele queria me convidar a gravar algumas músicas improvisadas. Assim, fizemos dois discos em 1955 com a Turma da Gafieira, na qual tocavam o Edson Machado [baterista], o Baden Powell [violonista], o Zé Bodega [sax tenor].



“Na minha carreira, toquei de tudo. Não sei definir se é jazz, samba, funk. ?A sorte nunca me faltou. Sempre tive um grupo para tocar”


Os discos, porém, não foram editados. Só tenho as cópias comigo. Às vezes falo ao Altamiro que precisamos lançá-los. Digo que as gravações representam o cartão-postal da música instrumental brasileira. Nós fomos pioneiros nela. Acredito que o material sirva de parâmetro para o músico que deseja improvisar. O interessante é que fazíamos esses improvisos lá atrás, na década de 1950. 

O reconhecimento


De 1958 a 1963, permaneci na Força Aérea Brasileira (FAB), em Curitiba. Tocava na banda da corporação. Depois, trabalhei com o Sérgio Mendes [músico e compositor brasileiro muito conhecido fora do país] e participei do LP Bossa Rio. Já em 1965, lancei meu primeiro disco solo, À Vontade Mesmo.

Ao lado do Sérgio, no entanto, fiz minhas duas primeiras viagens à Europa. E, na segunda delas, trabalhei como músico no Cassino de Monte Carlo, em Paris. Lá conheci músicos, como Keny Clarke [baterista, considerado um dos pais do estilo bop]. Quando voltei ao Brasil, integrei o RC-7 e fiz arranjos para o Roberto Carlos.
Mas ao gravar Colors, obtive projeção internacional.

Havia gravado os primeiros versos dele no Brasil, antes de viajar. Os melhores músicos estão no álbum, como J. J. Johnson, que fez os arranjos, e Cannonball [o saxofonista Cannonball Adderley, 1928-1975]. Recentemente, o disco foi regravado e editado na Inglaterra. E não recebi nada por isso. Mando e-mail e ligo, mas ninguém me responde.

Durante a primeira gravação no exterior, nem sabia qual nome artístico eu devia adotar. Pensei em Ralph Philippe Johne. Mas todos deram risada e disseram que havia muito Ralph por lá. Então desisti e fiquei com Raul de Souza, um apelido dado por Ary Barroso. Na minha carreira, toquei de tudo. Não sei definir se é jazz, samba, funk. A sorte nunca me faltou.

Sempre tive um grupo para tocar – seja ele quinteto ou sexteto. Atualmente integro o NaTocaia, com o qual me apresentei em março no Sesc São Paulo. Intercalo minha agenda entre Brasil e Europa, onde resido também em Paris. Hoje em dia fico mais aqui no país, pois está bem melhor para produzir música. ::