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por Júlio Medaglia


Jurado dos legendários festivais de MPB dos anos de 1960, o maestro paulistano Júlio Medaglia diz sentir falta da genialidade que permeou a criação artística em boa parte do século 20. Aliás, ele se confessa cético em relação à produção artística atual, pressionada pela “ditadura do mercado”. “Ela inibe a atividade criadora”, disse durante encontro organizado pelo Conselho Editorial da Revista E.

O maestro, um dos imortais da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira número 3, teve seu primeiro contato com a música quando ainda era criança, por meio de uma funcionária da família, que o presenteou com um violino infantil. Formado em regência sinfônica na Alemanha, Medaglia viveu no país – onde regeu orquestras de renome como a própria Filarmônica de Berlim – por mais de dez anos.

Compositor de mais de 200 trilhas sonoras, o criador da Amazonas Filarmônica (1998) e autor da façanha que levou a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, para a Bulgária já trabalhou com diretores de cinema, teatro e televisão.

Hoje, aos 72 anos de idade, o maestro está à frente da reestruturação dos programas de formação musical da prefeitura do município de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Coordenador do Centro Livre de Música, da Orquestra Filarmônica e das bandas sinfônica, jovem e mirim da cidade, Júlio Medaglia também apresenta o programa Prelúdio, na TV Cultura. A seguir, trechos.

Carência da vanguarda


Nós viemos do século mais deslumbrante da história da humanidade. Uma época em que tudo se inventou e tudo se descobriu. O início do século 20 estava voltado para as ideias, para a cultura, para o delírio. Era o frenesi dos anos de 1920, os chamados anos loucos. Nunca se revolucionou tanto, nunca se viu a rápida sucessão de tantos ismos.

E, ao mesmo tempo em que nas primeiras décadas se experimentava toda aquela criatividade cultural, a tecnologia era algo que praticamente ninguém levava a sério. Henry Ford [empreendedor norte-americano, 1863-1947] não conseguia financiamento para o seu projeto de produção em linha de automóveis – “não há como substituir as carruagens”, diziam os banqueiros.

O presidente do departamento de patentes dos Estados Unidos pedia demissão em 1898, pois afirmava que não havia mais nada a ser inventado. O próprio Santos Dumont precisou fazer um happening em Paris com o 14 Bis para ser levado a sério, enquanto na outra ponta, a parte cultural vivia a mil por hora.
 
Entretanto, com a evolução tecnológica a partir da segunda metade do século, a situação começou a se inverter. Passamos a observar o delírio tecnológico, de modo que foram desaparecendo aquelas provocações de ideias que existiam no início. E os últimos anos foram realmente melancólicos. Não existiam mais tendências, e usar a palavra vanguarda ficou até ridículo.

Hoje estamos vivendo o período da tecnologia como o grande barato, ela tomou o lugar daquilo que foi o delírio artístico do começo do século 20. Observo um retrocesso das ideias de qualidade, e isso no mundo todo. Não há tendências curiosas, vejo as pessoas cada vez mais voltando os olhos para o passado. Cada vez mais se cultiva a qualidade em vez do risco, da ousadia.

Estamos vivendo um momento em que a criação artística saiu da mão do artista e foi para a mão do produtor, do diretor de marketing. As gravadoras não têm mais aquela relação visceral com a música. Algumas vendem discos aqui, aviões ali e salsicha acolá. Querem trabalhar com a produção cultural com os mecanismos que usam para a produção de celulares. Só que um celular se joga fora depressa e as coisas da alma não.


Provocações


A internet tem uma presença muito forte nos dias de hoje, mas não sei até que ponto ela tem aquela capacidade provocadora de que precisamos. Eu acho a internet profundamente inteligente e profundamente burra também. Você encontra ali Crítica da Razão Pura, de Kant [filósofo alemão, 1724-1804], mas nem por isso multiplicou-se o número de filósofos no mundo e nem as pessoas se tornaram filósofas da noite para o dia.

Existe uma relação meio complicada das pessoas com a internet. Elas estão mais sensíveis às provocações da grande mídia eletrônica industrializada, apesar de terem, ao toque dos dedos em suas casas, milhões de dados e as mais ricas informações.

Essa carência fica mais latente quando voltamos os olhos para trás. Gil e Caetano nos anos de 1960, por meio da linguagem, provocaram muito mais do que muitos outros tentavam fazer através da língua. Tanto é que os milicos viram que ali é que estava o perigo.

Enquanto a juventude que aparentemente estava “ligadona” vaiou os dois no Tuca [Teatro da Universidade Católica de São Paulo] quando cantaram É Proibido Proibir, os militares viram que lá estava a contradição que o tropicalismo implantava na música, na cultura e na sociedade brasileira. Naquele tempo, artistas como Gil, Caetano e Chico Buarque estavam com as antenas ligadas de tal maneira que tudo que faziam era extremamente contestador, mesmo não sendo panfletário.
 


“Viemos de um tempo em que se fazia uma música de alta qualidade. Nos festivais dos anos de 1960, quanto mais subia a qualidade, mais crescia a audiência. O público não quer porcaria”


E quando eu me deparo com o cenário de hoje, acho que está pior. Naquele tempo havia a ditadura militar, hoje existe a ditadura do mercado e ele inibe a atividade criadora. Viemos de um tempo em que se fazia uma música de alta qualidade e ela era extremamente comercial. Nos festivais dos anos de 1960, quanto mais subia a qualidade, mais crescia a audiência.

O público não quer porcaria. Lembro de um festival em 1967 que tinha Domingo no Parque, Alegria Alegria, Eu e a Brisa, Roda Viva, Ponteio... Era a melhor música popular que se fazia no mundo e a audiência da TV Record chegou a 94%, indo parar no Guinness Book of Records [Livro Guinness de Recordes] naquele tempo. Acho que o desafio para os próximos anos é ver a maravilha do mundo tecnológico moderno fazer as pazes outra vez com a inteligência e o talento.


Capital da arte


É interessante observar como, em todas as artes, São Paulo sempre exerceu esse papel de liderança no século 20. Isso vem desde a Semana de 22, quando se revolucionou o posicionamento cultural brasileiro diante da herança europeia do nosso folclore, mostrando como nossa arte era nacionalista e universal ao mesmo tempo.

Não é à toa que Villa Lobos [maestro e compositor brasileiro, 1887-1959] se tornou um gênio internacional, o mais executado músico brasileiro no exterior, incluindo-se os de música popular. Mais tarde, quando se tentou fazer um cinema industrial, foi aqui também, na Vera Cruz, em São Bernardo.

O teatro, por sua vez, foi um capítulo à parte, vivenciou-se uma revolução universal com o TBC, politizadora com o teatro de Arena e o Oficina. No campo da literatura, a poesia concreta foi o campo do mais radical movimento literário da época, com os irmãos Campos e Décio Pignatari. E o próprio grito silencioso de João Gilberto durante a Bossa Nova foi veiculado popularmente através de programas de TV e ouvido pela primeira vez em São Paulo.

 



O arranjador e maestro Júlio Medaglia esteve presente na reunião do Conselho Editorial ?da Revista E em 15 de abril de 2010