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As bandeiras da menina despachada

Há cem anos nascia Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia

CECILIA PRADA

A fazenda, de nome carinhoso e insólito, “Não Me Deixes”, é um lugar delicioso, com casa-grande, muito simples e acolhedora, de aparência bem antiga, embora seja apenas da década de 1950, mas com as linhas da arquitetura tradicional, térrea, de muitos cômodos, dotada é claro de um alpendre, suas redes, seu sossego. A ela se chegava, em outros tempos, vindo a pé ou de charrete de uma estação ferroviária meio distante, mas englobada pelo grande latifúndio cearense da família Queiroz – o Junco. Dessas terras foi separada a gleba, escolhida no espólio dos pais pela filha mais velha, a que recebera o nome de Rachel em homenagem à avó paterna, que fora prolífica senhora de dez filhos, ramificados devidamente em pencas de descendentes.

O nome da fazenda – hoje transformada em reserva particular do patrimônio natural por disposição testamentária – reflete a pouca vontade de deixá-la que sempre teve sua proprietária, a dona Rachel de que hoje nos ocupamos, uma senhora gorda, de risada grande e óculos enormes, doméstica, e que se suporia mãezona e avó quituteira, devota, indulgente. E certamente sentimental, de lágrima fácil, como toda senhora idosa que se preza. Pois isso é o que, à primeira vista tão somente, nos dizem os retratos abundantes dessa fazendeira-escritora que foi a primeira mulher a ser admitida na Academia Brasileira de Letras: Rachel de Queiroz, cujo centenário de nascimento se aproxima, a 17 de novembro deste ano.

A festa sertaneja, podemos imaginá-la: toda a parentela próxima ou longínqua acorreria de muitos pontos do território nacional, de outras fazendas do Ceará e de estados vizinhos, e também de lugares mais ao sul – daquela cidade do Rio de Janeiro que foi tão amada por ela e que tanto lhe deu, também. Uma grande reunião seria, por certo. Semelhante àquela outra festa descrita por ela em seu livro autobiográfico Tantos Anos – a da colocação da viga da cumeeira na casa-grande: “Mandei fazer vários potes de aluá, uma quantidade imensa de cocada, bolo de milho, essas iguarias sertanejas todas. Contratamos um tocador até meia-noite, mas então o pessoal não se conformou e dançou até de madrugada”.

Foram, porém, muitas e duras as peripécias existenciais em que se envolveu, Brasil afora, aquela menina cearense rica e mimada, que poderia ter passado a vida toda anonimamente feliz e resguardada em seu feudo natal, fazendo tricô e queijo de coalho, nadando no açude, cavalgando e cuidando da família, entre a gente boa da sua querida Quixadá. E que ao morrer – dormindo numa rede, em seu apartamento em Copacabana – deixaria como legado, a par de suas terras, os frutos de uma carreira literária profícua e ininterrupta, dez obras de ficção, cinco de crônicas, 45 volumes traduzidos, além de peças teatrais e três livros autobiográficos, escritos em parceria com sua irmã mais nova e filha adotiva, Maria Luiza de Queiroz Salek.

Por trás da dama sorridente

“Na literatura”, dizia o velho Stendhal, lá pelos idos de 1830, “a política é como um tiro de pistola no meio de um concerto.” Nenhum escritor brasileiro ilustra tanto esse dito como Rachel de Queiroz – poucos mostraram a voracidade, o partidarismo (sob várias e mutáveis nuances, embora) dessa autêntica Donzela Guerreira vinda do sertão e que se manteve montada e armada sobre seu cavalo a vida toda, atirando, muitas vezes com maestria e outras nem tanto, contra seus numerosos inimigos políticos – infelizmente, algumas vezes contra si própria.

Essa característica, porém, acabou por lançar sombras sobre sua carreira de escritora. Em um quadro de intensas lutas ideológicas, de radicalismos de esquerda e direita, como o da segunda metade do século passado, não foi ela a única intelectual engajada a oscilar entre os dois históricos polos. A maioria deles teve, entretanto, como vetor o sentido direita/esquerda – os simpatizantes do integralismo passados à simpatia e até à militância comunista nos anos 1960 –, enquanto Rachel de Queiroz, adepta feroz do comunismo nas décadas de 1930 a 50, passou nos anos 1960 a se alinhar com a direita.

Estreou na literatura aos 20 anos, com o romance O Quinze, em que descrevia a seca do ano de 1915 no Ceará, obtendo logo grande sucesso entre os intelectuais cariocas. Já era “muito comunizada”, como dizia, quando no ano seguinte foi ao Rio de Janeiro para receber um prêmio. Inscreveu-se então no Partido Comunista e voltou a Fortaleza com o encargo de organizar ali um novo núcleo. Em 1932, porém, rompeu com o partido quando seu novo romance, João Miguel, apesar do fiel conteúdo ideológico que continha, foi censurado por um comitê de companheiros, que exigiam dela importantes modificações no enredo e na psicologia dos personagens. Diz Rachel: “Os operários que compunham a aristocracia dos grupos marxistas exigiam de nós obediência cega”.

Salvando o livro e a si própria, a escritora tornou-se trotskista, aproximando-se dos intelectuais de São Paulo e do Rio. Desenvolveu uma carreira jornalística e literária das mais fecundas, impondo-se um ritmo constante e exigente de produção; a cada semana, invariavelmente, publicava em jornais e revistas artigos, contos ou crônicas – tornou-se uma celebridade nacional ao manter, durante todo o tempo de existência da revista “O Cruzeiro” (30 anos: 1945-1975) uma coluna semanal. Mostrou sempre a mesma energia física, o mesmo empenho político, a mesma linguagem, viva, de franqueza sertaneja – lutando contra o fascismo e o integralismo, o getulismo. Em 1937, no Estado Novo, chegou a ser presa em Fortaleza, incomunicável, por três meses, e seus livros foram queimados em praça pública.

Nunca foi pessoa de meias-tintas, nunca se acovardou. Há até episódios pitorescos, de sua época de mocinha: quando determinado crítico de Fortaleza ousou menosprezar O Quinze, não hesitou. Encontrando-o em uma rua deserta, numa tarde, avançou para ele e deu-lhe uma tremenda surra. “Ele parou, assim de repente, não sei se tinha percebido que era eu quem estava ali. Sei que fechei a sombrinha, segurei o cara pela gola do paletó e bati nele nos ombros, na cabeça, até quebrar a sombrinha”, contou, mas somente no fim da vida, dizendo que o fazia em um tardio remorso, querendo se penitenciar.

Só que, décadas mais tarde, mudando radicalmente de ideário político, tornou-se articuladora, com generais amigos, do golpe militar de 31 de março de 1964. Sempre mostrou orgulho disso, deixando testemunhos escritos de suas atividades políticas. Há, no citado livro autobiográfico, um capítulo intitulado “A Revolução de 1964”, onde nos conta como começou a conspirar no momento em que, pela renúncia de Jânio Quadros, o “caudilhesco e getulista” vice, Jango Goulart, deveria assumir – coisa que não apetecia a ela e a seus amigos: “...estabeleci muitas ligações com oficiais que participavam das nossas mesmas ideias: os generais Newton Reis, Herrera, Muricy, Golbery, Sizeno, todos amigos de Adonias [Adonias Filho, romancista, ex-integralista]”. As reuniões conspiratórias ocorriam em sua própria casa, e ela era usada como jornalista, por opinar muito e ser muito lida, executando inclusive artigos de encomenda, “de pregação, de jornalismo de combate, de nos trazerem assuntos para a gente falar”. Quanto ao general cearense Castello Branco, era um seu aparentado e velho amigo de família, há muito. Durante seu governo, Rachel serviu-lhe de confidente, e ele ia frequentemente visitá-la na fazenda Não Me Deixes. Voltando de uma dessas viagens, quando já deixara a presidência, Castello, que era um representante da ala moderada do exército, contrário aos da chamada “linha dura”, morreu em um desastre aéreo cuja causa não foi até hoje suficientemente esclarecida.

Conta Rachel que “o presidente [Castello] até me obrigou a fazer um artigo sobre o primeiro mês do governo Costa e Silva, artigo imparcial e até elogioso”, apesar de ela nunca o ter sequer conhecido. No governo Médici, a conselheira também foi chamada ao palácio para discutir medidas políticas, como as relativas ao Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural).

A essa altura, a imagem dos governos militares já estava bem manchada de sangue, com o que se sabia – o povo sabia – do que acontecia com a repressão muito organizada e armada do governo, nas torturas realizadas nos esconsos dos quartéis e da polícia. Mas dona Rachel, até ali tão atuante, participante, faz cara de paisagem diante dessa realidade – e, na mesma atitude tão frequente até hoje em nosso meio político, diz que não tinha conhecimento de nada. Literalmente: “Depois, veio a repressão contra a guerrilha urbana, mas, aqui fora, a gente não sabia de nada. E creio que o próprio Médici ignorava os detalhes mais sórdidos”. Em uma entrevista a Hermes Rodrigues Nery, em 1989, ela não hesita mais uma vez em nos chocar, quando diz que a mais terrível ditadura foi a getulista, pois “nestes últimos 20 e tantos anos de ditadura militar não se cometeu um caso como o de Olga Prestes. Não se entregou a mulher de um cidadão brasileiro, grávida de uma criança brasileira, para ser sacrificada nos fornos crematórios...”

Dona Rachel parecia insistir até o fim da vida em ignorar não uma, mas as muitas mulheres grávidas estupradas, torturadas, inutilizadas para a vida ou mortas, nos sinistros porões do DOI-Codi e dos quartéis.

O juízo da posteridade

Um escritor, porém, não deve ser julgado por atitudes ou ideologias endossadas em vida, mas unicamente pela obra em si. As circunstâncias esvaem-se com o tempo, o que há de eterno na criação artística permanece. Dante Alighieri, que teve a vida despedaçada na luta política entre guelfos e gibelinos (quem são eles, hoje?) e que embebeu sua Divina Comédia de religiosidade cristã, continua a ser lido e admirado por crentes e descrentes do mundo todo. O conservador T. S. Eliot, um burguesão banqueiro, Prêmio Nobel de Literatura de 1948, legou-nos poesia da maior transcendência. O mesmo acontece com a obra de Ezra Pound, cuja vida foi marcada pelo desacerto de ter aderido ao fascismo no tempo da 2ª Guerra Mundial. Condenado por crime de alta traição a seu país, os Estados Unidos, teve de passar 13 anos recluso em um manicômio judiciário. E o melhor exemplo de imparcialidade crítica pode ser encontrado nos estudos literários do filósofo marxista Georg Lukács, que reconheceu o valor revolucionário das obras de Honoré de Balzac e de Walter Scott, sem demonizá-los como “reacionários” e monarquistas convictos. Na primeira metade do século 19, Balzac nos deu, com sua vasta Comédia Humana, o mais completo retrato da sociedade francesa de seu tempo.

Voltando a nossa Rachel de Queiroz – há mais algumas guarda-chuvadas históricas, em sua biografia. Fez questão de se manter à parte e contrária ao movimento feminista dos anos 1970 e incompatibilizou-se com suas líderes, pois dizia: “Quase todos os meus amigos são homens, eu não confio muito nas mulheres”. Isso, dito por aquela que foi a primeira mulher a furar a crosta preconceituosa de nossa Academia, e também a primeira a receber, em 1993, o Prêmio Camões, o maior da língua portuguesa... No entanto, e isso é o que importa, seus livros retratam a luta da mulher – que empreendeu e realizou sozinha, num meio mais do que hostil. E apesar de sua rudeza sertaneja (seu “ríspido estilo”, como reconhecia) foi afetuosa, dedicada à família – casou-se duas vezes, teve a infelicidade de perder sua única filha, Clotilde, aos dois anos de idade. Viveu um grande amor com seu segundo marido, o médico Oyama de Macedo, durante 42 anos. E criou como filha a irmã Maria Luiza, mais nova do que ela 16 anos, vindo a considerar-se uma feliz avó de seus filhos.

Há, no entanto, mais choque em estoque. Na citada entrevista de 1989 a Hermes Nery, à pergunta “Qual o sentido da literatura na sua vida?”, responde: “Eu não tenho paixão pela literatura. Eu não acho a literatura essencial na minha vida. Nunca pus a literatura à frente dos outros problemas da minha vida. [...] É o que sei fazer, o que tenho mais jeito para fazer e disso vivo. Não é mais do que isso. Eu não sublimo a literatura no meu ideal de vida. Eu passaria muito bem sem fazer literatura”.

Ah, dona Rachel! Essa, não. Não perdoo. Mentira sua. Não acredito. De outra forma, como explicar seu tão persistente mourejo pelos prados literários, desde os 18 anos até os 90, saltando de uma sebe a outra, da crônica para o artigo, o romance, o conto, a novela, o drama, os livros infanto-juvenis, infatigável, conquistando seu público e deixando filtrar – mesmo na produção jornalística – esse seu grande, inegável talento de narradora, que acabou nos dando, quando já contava 82 anos, essa obra-prima de romance que é Memorial de Maria Moura? Transformado em minissérie pela Rede Globo, não perdeu nada de seu valor literário e marcou um tento – em 1994, depois de exibida a série no Brasil, teve início seu périplo vitorioso por nada menos que 14 países, na América Latina, na Europa, na África, chegando até a Indonésia.

E como explicar o êxito ininterrupto de público, o interesse que ainda provoca O Quinze – seu primeiro romance, publicado aos 20 anos (em 1930), no qual conseguiu abordar pela primeira vez com objetividade, mas também com emoção, o problema máximo de sua região, a seca? Uma obra que a tornou, a justo título, criadora, com José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira, do ciclo do romance nordestino. Lamentável, apenas, que alguns de seus romances – principalmente os dos anos 1930 – se ressintam do inevitável esquematismo de personagens e enredo causado pela pressa de divulgar um ideário programático; prejudicados, enfim, por aquele “tiro de pistola” stendhaliano de que falamos. Lembro também que, quando adolescente, li um artigo em que se lastimava o fato de Rachel ter de trabalhar tanto como jornalista e tradutora, e assim não ter tempo para se dedicar mais a seus romances.

Seus grandes livros ainda são o primeiro e o último, O Quinze e Memorial de Maria Moura, mas o conjunto da obra que nos legou Rachel, em especial o enorme material reunido genericamente como “crônicas” em cinco volumes, é impressionante, impregnado da força narrativa de que foi dotada. Páginas vivas em que sobressaem, inesquecíveis, personagens e fatos extraídos dos extremos geográficos entre os quais alternou sua vivência, sertão e metrópole, Quixadá e Rio de Janeiro, aquela menina despachada que – como a sua Maria Moura – saiu guerreando contra as circunstâncias de seu meio e tempo, levando desfraldada na ponta de sua lança uma bandeira meio tosca, de cores cambiantes, rasgada às vezes no furor das batalhas, mas que devia certamente ostentar, em letras mal esboçadas em carvão, a palavra “Liberdade”.


Sexismo pitoresco

No prefácio escrito em 1953 por Olívio Montenegro à sexta edição do romance Caminho de Pedras, encontramos: “Vamos ser positivos: a literatura de ficção, de autoria feminina, entre nós, tem sido quase sempre de um calete [termo obsoleto, correspondente a ‘compleição física’] fraco. Sentimental e pueril. E quando aparece com uns estremecimentos maiores de emoção, no fundo é histerismo. A exaltação não é da imaginação: é do desejo. São autoras mais fiéis ao sexo do que à literatura. Entretanto, não é a literatura o melhor derivativo para o sexo, nem o mais são. Seria a maternidade bem compreendida e bem aproveitada”.

Segundo diz, Rachel seria uma honrosa exceção, pela sua “personalidade viril”. Atesta: dos novos romancistas dedicados aos temas sociais, “nenhum mais homem, mais deliberadamente homem” do que ela. Expressa seu grande pasmo: “E este autor é uma mulher!”

Mas o crítico, pobre dele, estava bem por fora das coisas: em 1953, uma de nossas maiores glórias – Cecília Meirelles, que desde 1934 era reconhecida, inclusive em Portugal, como “uma das maiores expressões da poesia lírica em língua portuguesa” – estava no auge da carreira, contava com 15 livros publicados, numerosas premiações, inclusive da Academia Brasileira de Letras, e naquele ano publicara sua obra-prima, o Romanceiro da Inconfidência. E, no campo da ficção, pelo menos duas de nossas maiores escritoras, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, já tinham três livros publicados cada uma.

 

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