Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Arte da sutileza

Modalidade poética japonesa, o haicai é extremamente simples e sintético

OLGA SAVARY


Foto: Divulgação

Se a literatura é considerada fator primordial para o conhecimento profundo de um povo, mais ainda se poderá dizer da poesia – a mais requintada forma de expressão humana. Há mais de 300 anos, surgiu no Japão, em estreita ligação com o zen-budismo, uma modalidade de composição poética peculiar que até o presente é motivo de grande interesse: o haicai. Diferentemente da poesia ocidental, muitas vezes adiposa, discursiva, essa vertente poética prima pela síntese: é a forma mais resumida de poesia que se conhece. Embora à primeira vista pareça algo enigmático, é de extrema simplicidade. Contudo, não se deva tomar essa característica por ingenuidade.

Sequência de três imagens combinadas, o haicai é uma espécie de desenho verbal, uma pequena cápsula carregada de poesia. Como não utiliza rima nem versificação acentual, apoia-se no recurso da medida silábica: é composto de versos de cinco, sete e cinco sílabas. Essa limitação, no entanto, não é sinônimo de pobreza, pois o japonês é rico em onomatopeias, aliterações e jogos de palavras que são também combinações insólitas de sons. É importante observar que essa métrica dificilmente é seguida nas traduções e composições feitas em outras línguas.

Em sua forma clássica, conhecida como tanka, os poemas tinham duas estrofes: a primeira de três versos, de cinco, sete e cinco sílabas, e a segunda com dois de sete. Essa estrutura permitia que dois poetas participassem da criação, um escrevendo as três primeiras linhas e o outro as duas últimas. Com o passar do tempo, em lugar de um só poema, começaram a surgir séries inteiras, ligadas levemente por temas como a natureza, as estações do ano etc. Essas composições, chamadas renga, eram tidas como brincadeiras de salão e feitas mais ou menos no molde dos desafios dos violeiros nordestinos, em que um participante inicia seu verso onde o outro terminou. O poema solto, desprendido do renga, recebeu inicialmente o nome de haicu e depois de haicai.

O mestre

Matsuo Bashô (1644-94), o mais conhecido e principal haicaísta do Japão, não inventou a forma do haicai, tampouco a alterou, simplesmente transformou seu sentido, trazendo essa modalidade de poesia para o campo da arte. Foi a forma escolhida por ele para buscar o mesmo que os antigos mestres: o instante poético. Discípulo de um monge japonês e ele mesmo um ermitão que alternava poesia e meditação, Bashô fez do haicai um exercício altamente espiritual, e a filosofia zen-budista transparece em sua obra.

A própria brevidade do haicai obriga o poeta a transmitir muito dizendo o mínimo. Em termos de conteúdo, sua estrutura divide-se em duas partes: uma se relaciona à condição geral e à situação temporal e espacial (outono ou primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou uma pedra) e a outra, relampejante, deve conter um elemento ativo. A percepção poética surge do choque entre ambas. O mais conhecido poema de Bashô e talvez o mais famoso haicai existente ilustra bem essa afirmação:

Sobre o lago morto
salta o ruído da rã
ao baque da água.

 Furu ike ya
 kawasu tobi-komu
 mizu no oto.

Poderíamos considerar prosaica essa enunciação de fatos: o lago, o salto da rã, o ruído do baque na água. Nada menos poético: palavras comuns que descrevem um fato insignificante. Bashô, no entanto, nos dá um simples esboço, como se nos mostrasse com o dedo duas ou três realidades desconexas, cujo sentido cabe a nós descobrir. É o leitor quem deve recriar o poema. Dessa forma, ele nos faz participar da criação, tornando-nos também poetas, que é o que todo leitor de poesia deve ser.

Na primeira linha encontramos o elemento passivo: o lago morto, ou seja, parado, e seu silêncio. Na segunda, a surpresa do salto da rã, que rompe a quietude. Do encontro desses dois elementos vai surgir a iluminação poética, a qual consiste em voltar ao silêncio do ponto de partida, só que agora carregado de significação. À maneira das ondas na água, nossa consciência deve expandir-se em sucessivas associações.

Pertencente à casta dos samurais, Bashô passou quase toda a vida como professor de poesia, instrutor e mestre de poetas que o acompanhavam para receber seus ensinamentos sobre haicai. Ele escreveu já maduro e perambulou por todo o Japão, dormindo em ermidas e pousadas populares. Bashô fez algo mais que uma obra literária; a ele devemos a dignificação do haicai, que até então era tratado como frívola diversão social, em que os versos tinham pretensões ao humor e ao trocadilho.

No Ocidente, depois de algum preconceito inicial contra o poema curto, o haicai conquistou o status do soneto e de outras formas clássicas. Por sua brevidade, podemos ver nele um parente próximo do epigrama, a mais diminuta forma poética greco-romana, cultivada no Ocidente durante o Renascimento e o Barroco. O epigrama – que em grego quer dizer “escrito sobre” – parece ter sido usado principalmente para o epitáfio, inscrição em lousas funerárias.

Bashô, o maior e mais renomado poeta do Oriente, e Goethe, o grande nome das letras da Alemanha, foram ambos aficionados do gênero diário. Goethe viajou durante dois anos pela Itália, e em suas anotações registrou vários dísticos, minipoemas de dois versos, inspirados na tradição do epigrama. Considerado gênero literário maior no Japão, o diário foi usado por Bashô para relatar suas viagens aos confins do país no belo Sendas de Oku, obra recheada de exemplar filosofia humanística entremeada de haicais. Estabelece-se assim um paralelo entre epigrama e haicai.

Passados mais de 300 anos, os haicais de Bashô continuam modernos, e seus ensinamentos podem ainda ter significado. Como ele próprio diz, na coleção de pensamentos denominada Regras para Peregrinar: “Não mostre seus versos se não for solicitado. Solicitado, nunca recuse”. E nos dá uma importante lição para melhor entender sua arte: “O caminho do haicai começa na concentração e na ausência de distração. Olhe bem para dentro de si”. Essa aula é a chave de tudo: silêncio e tranquilidade. A arte poética deveria ter o zen como religião.

O haicai no Brasil

A Semana de Arte de 1922, com a modernização que trouxe à poesia, preparou um terreno fértil onde poderia germinar o haicai, que apesar de sua estrutura originalmente clássica e rígida tem uma característica que o aproxima da poesia moderna: ambas as modalidades preferem a liberdade à ditadura da rima, que pode até acontecer, porém sem obrigatoriedade. Oswald de Andrade, um dos expoentes entre os modernistas, talvez tenha se inspirado no haicai para compor seus poemas curtos.

Até onde se sabe, o precursor do haicai no Brasil foi Afrânio Peixoto, um baiano de Lençóis, nascido em 1876. Médico, professor, político, crítico literário e historiador, ele já havia publicado quatro romances antes de se envolver com poesia. Ocorre, porém, que o haicai que apresentou aos brasileiros não veio diretamente do Japão, ou seja, era na verdade uma retradução da versão feita para a língua francesa. Muitos dos haicaístas que vieram depois dele também adquiriram grande parte de seus conhecimentos sobre essa arte em fontes de língua francesa e inglesa.

É generalizada, porém, a opinião de que a tradução fiel de um haicai japonês para outros idiomas é praticamente impossível, já que esse trabalho supõe vencer dificuldades muitas vezes insuperáveis para transpor conceitos e ideias próprios daquela cultura. Em sua forma original, essa arte chegou ao Brasil, segundo alguns registros, a bordo do navio Kasato-Maru, junto com a primeira leva de imigrantes japoneses que aportaram em Santos (SP) em 1908.

Libélula voando
para um instante e lança
sua sombra no chão
                        
Goga Masuda

Durante o século 20, o haicai conquistou inúmeros adeptos no Brasil, e muitos deles tiveram importante papel em sua divulgação. Entre estes estava justamente um japonês, que merece destaque por sua dedicação à tarefa de estudar e tornar conhecida essa modalidade poética. Goga Masuda, nascido em 1911, chegou ao Brasil em 1929 como imigrante e em 1962 naturalizou-se brasileiro. Em 1935, quando trabalhava numa fazenda de café no interior de São Paulo, ele conheceu Nempuku Sato, que se tornaria seu mestre na composição de haicais em japonês.

Brisas refrescantes
esgueiram-se ao sol ardente...
Penumbra do tato...
                
Jorge Fonseca Júnior

Três anos depois, ainda residindo no interior, Goga dá início a pesquisas sobre o haicai em português juntamente com Jorge Fonseca Júnior, advogado, jornalista e professor, além de importante nome entre os haicaístas brasileiros. Em 1948, Goga se muda para a capital paulista e vai trabalhar no diário nipo-brasileiro “Jornal Paulista”, onde chega ao cargo de redator-chefe.

No início da década de 1950, ele conhece Guilherme de Almeida, com quem teve a oportunidade de travar discussões interessantes sobre o haicai em português. Advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor, Almeida já era um haicaísta experiente quando encontrou Goga. Suas composições traziam uma inovação, o uso de título e rima, inexistentes no formato japonês. É motivo de polêmica, no entanto, sua primazia no emprego desses recursos.

Avesso a restringir-se aos limites da comunidade nipônica, Goga manteve intensa troca de informações com poetas e intelectuais brasileiros, sempre defendendo a importância de conservar os valores da arte tradicional. Em 1987, ele participa da fundação, em São Paulo, do Grêmio Haicai Ipê, entidade que se tornou referência no estudo e na divulgação do haicai em português. Sob a coordenação de Goga, seus participantes promoveram o encontro de duas correntes de produção distintas, uma delas baseada na forma poética transmitida por autores europeus – marcada pela visão ocidental – e outra no haicai original, que tem como principal fundamento uma atenta observação da natureza.

soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento
                          
Paulo Leminski

Mestre Goga, como era chamado por seus admiradores, faleceu em maio de 2008, deixando um legado de respeito ao haicai. No Brasil, essa arte conquistou inúmeros adeptos, e importantes autores, como Haroldo de Campos, Paulo Leminski, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros, a incorporaram em sua obra.

Apesar da predominância masculina, as mulheres também foram atraídas por essa modalidade poética. Em 1941, o livro Paisagem Interior, da paranaense Helena Kolody, trazia três haicais, tornando-a pioneira, no país, na publicação de poemas nesse formato. A primeira autora, porém, a lançar uma obra exclusivamente de haicais foi Fanny Dupré, em 1949, com Pétalas ao Vento.

Palavras, antes esquecê-las
lambendo todo o sal do mar
uma única pedra.
                            
Olga Savary

Na minha vida, essa arte entrou bem cedo. Em 1943, aos 10 anos de idade, eu já fazia, artesanalmente, um jornalzinho com haicais, poemas e desenhos, que depois vendia a vizinhos, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Ao longo de minha carreira como poeta, contista, romancista, crítica, tradutora e ensaísta, essa modalidade poética esteve sempre presente. Tive oportunidade de traduzir obras de Bashô e de outros mestres japoneses e também de publicar três livros unicamente de haicais, que considero poesia em seu estado mais puro, uma experiência criativa rica de significado, beleza, síntese e sutileza.

 

Comente

Assine