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Em busca de um salto de qualidade
Encontro discute propostas para resgatar o ensino público no país
CARLOS JULIANO BARROS
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"Não me lembro, nos últimos anos, de ter ouvido falar de um evento com a importância que tem este.” O discurso entusiasmado do presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Angelo Vanhoni (PT-RS), na abertura da Conferência Nacional de Educação (Conae), dá a dimensão da relevância dos debates feitos pelos 3,6 mil delegados e observadores que se deslocaram de norte a sul do país até Brasília, entre os dias 28 de março e 1º de abril. Eram os representantes escolhidos por mais de 3 milhões de pessoas que participaram das etapas municipais e estaduais da conferência, realizadas ao longo do ano passado. Pesquisadores, estudantes, ativistas, administradores públicos e profissionais da educação que se reuniram na capital federal, em dezenas de colóquios e plenárias, para tratar dos mais variados assuntos – da política salarial de professores ao financiamento do sistema de ensino. “Essa conferência foi convocada pelo Estado brasileiro e tem a participação da sociedade civil organizada e do poder público. A discussão do próximo Plano Nacional de Educação (PNE) e do Sistema Nacional Articulado de Educação (SNE) são os dois pontos essenciais”, resume Francisco das Chagas, secretário executivo adjunto do Ministério da Educação (MEC) e coordenador geral da Conae.
As propostas debatidas na conferência vão orientar os poderes Executivo e Legislativo na redação do próximo PNE, uma lei que em tese deveria ser apreciada pelo Congresso Nacional ainda neste ano, a fim de apontar claramente os objetivos a ser atingidos pelos três entes federados – União, estados e municípios – no decênio de 2011 a 2020. Do atual plano, que se encerra exatamente em 2010, o poder público brasileiro cumpriu tímidos 33% das 295 metas estipuladas no começo da década. Para algumas delas, nem mesmo existem indicadores, mas para outras o resultado é para lá de preocupante: o compromisso de garantir matrícula em creches para ao menos metade dos brasileiros de 0 a 3 anos, por exemplo, ficou somente no papel. Hoje, apenas 18,1% das crianças nessa faixa etária têm acesso à escola. No ensino superior, os números não são mais animadores: o intuito de colocar ao menos 30% dos jovens nas universidades parou na casa dos 13,7%. E o sonho de erradicar o analfabetismo também patinou: ainda existem 14 milhões de cidadãos com mais de 15 anos que não sabem ler e escrever. “Mas o PNE que está por ser forjado não pode mais se fixar, como o plano em vigor, em metas meramente quantitativas. Não basta atender, é preciso fazer isso bem, além de fixar os meios de alcançar os objetivos. Se não dispusermos dos recursos necessários, vamos lamentar em 2020, com metas parcialmente cumpridas”, diz o ministro da Educação, Fernando Haddad.
Já a construção do chamado Sistema Nacional Articulado de Educação não é de compreensão muito simples. Na realidade, trata-se da regulação do artigo 211 da Constituição Federal, que diz que os três entes federados devem organizar suas redes de ensino em regime de colaboração. “A ideia é que com esse sistema as coisas sejam mais bem coordenadas. Hoje, uma decisão do Conselho Nacional de Educação (CNE) raramente é implementada pelos conselhos estaduais e municipais porque se argumenta que ele determina normas válidas somente para as instituições federais. E isso é um problema, porque se cria um vácuo jurídico em termos de resolução”, explica Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma rede que reúne 230 entidades espalhadas por todo o país.
Na prática, o que ocorre atualmente é que diferentes esferas de governo acumulam as mesmas atribuições. E assim prefeitos empurram a responsabilidade para os governadores, que, por sua vez, devolvem a culpa para os próprios prefeitos ou a transferem até mesmo para o presidente. É o que se verifica, por exemplo, com relação ao transporte escolar para os alunos da zona rural. “Até muito pouco tempo atrás, essa era uma responsabilidade apenas do município. Em 2005, mudamos a lei, para que a União pudesse participar da manutenção do transporte escolar. Mas isso não respondeu à questão se o aluno matriculado numa escola do estado pode ou não entrar num ônibus do município, e vice-versa. Esse tipo de situação precisa ser resolvido com clareza”, explica o deputado Carlos Augusto Abicalil (PT-MT).
A Conae, porém, teve outra importância fundamental: ampliar o ainda incipiente “controle social” na área da educação. No campo da saúde, por exemplo, existe espaço para participação mais intensa de organizações da sociedade civil na formulação e no monitoramento das políticas públicas. Essa é uma das explicações para a realização tardia da Conae, no apagar das luzes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de ela ter sido reivindicada desde os primeiros dias do mandato do presidente. “Diferentemente das outras áreas sociais, em que as conferências nacionais acontecem há muito tempo, os gestores da educação resistiram longamente à realização da Conae. Foi uma luta”, resume Denise Carreira, coordenadora do Programa Diversidade, Raça e Participação da ONG Ação Educativa. Por essa razão, outro importante clamor da Conae é a criação do Fórum Nacional de Educação, espaço de diálogo permanente entre o poder público e a sociedade civil, que terá entre outras atribuições a missão de organizar periodicamente novas conferências.
Financiamento
Dentre as inúmeras propostas discutidas durante a Conae, uma das mais importantes e inovadoras é a adoção do chamado Custo Aluno-Qualidade (CAQ) como referência para o financiamento da educação básica – aquela que compreende os ensinos infantil, fundamental e médio. Segundo o professor José Marcelino de Rezende Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), para entender o funcionamento desse índice é preciso partir de uma pergunta bem simples: “Quanto custa um aluno numa escola com condições de oferecer um ensino de qualidade?” O cálculo foi idealizado pela coordenação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, e o valor por ele sugerido deve ser garantido a todo aluno, independentemente da localidade em que ele viva.
Na conta do CAQ, entram gastos com os insumos materiais necessários à manutenção de prédios dotados de bibliotecas, laboratórios de ciências, salas de informática, dentre outros equipamentos, mas o que realmente pesa na balança são as despesas com o pagamento de salários dos profissionais da educação. “O grande nó da questão do custo está em pessoal. Numa escola qualquer, em torno de 85% a 90% são gastos com remuneração dos profissionais. A discussão, em última análise, é de salário”, completa Rezende Pinto.
Alguns dados mostram a distância entre o que o CAQ aponta como necessário para garantir uma educação de qualidade e o que é realmente investido pelo Estado brasileiro. A diferença é especialmente gritante na educação infantil, a etapa mais cara de todo o ensino básico. Para manter uma creche em qualquer cidade brasileira, o CAQ indica um valor mínimo anual de R$ 5.266 por criança atendida. Porém, o que o poder público investe, em média, fica na casa dos R$ 1.485,10. Já no ensino médio, o desembolso do Estado brasileiro está pelo menos 18% abaixo do recomendado, segundo o índice defendido pelos participantes da Conae.
Por essas razões, é impossível descolar qualquer debate sobre educação da questão do financiamento. De acordo com dados oficiais divulgados pelo MEC, o Brasil investe hoje 4,7% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em todos os níveis de ensino. No entanto, há quem conteste esse dado e o considere inflacionado – não passaria de 4%. Discussões à parte, uma das metas mais ambiciosas originadas na Conae é aumentar de forma escalonada essa proporção até atingir 10% em 2014. “A média dos países mais desenvolvidos está entre 5,6% e 6,2% do PIB. Quais são os países mais desenvolvidos em termos de educação? Coreia do Sul, Finlândia e Irlanda. No passado, eles investiram esse patamar de 10% do PIB – em alguns momentos, até mais do que isso –, criaram boas redes de ensino e depois puderam reduzir os recursos voltados a essa área”, explica Daniel Cara.
Não é a primeira vez que se tenta implementar um dispositivo dessa natureza. A lei que estabeleceu o atual Plano Nacional de Educação previa a destinação de 7% do PIB para a educação. Porém, logo de início, o então presidente Fernando Henrique Cardoso vetou essa possibilidade sob o argumento de desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal – que, entre outras coisas, impede os governantes de assumir novos gastos sem indicar a fonte dos recursos necessários. “O mais importante não é aprovar um percentual do PIB, mas discutir as fontes dos recursos necessários”, adverte Chagas, do MEC. Uma das ideias defendidas pelos participantes da Conae é a destinação de pelo menos 50% do fundo social que será criado a partir da exploração do petróleo das reservas do pré-sal para a educação.
Contudo, para incrementar a educação pública no Brasil, a União é que terá de abrir os cofres. E isso requer uma nova engenharia do próprio pacto federativo. Apesar de o governo federal ficar com 60% da arrecadação de todos os impostos, contribuições e outras taxas pagos pelos brasileiros, são os estados e, principalmente, os municípios que respondem pela educação básica, que concentra a esmagadora maioria dos alunos da rede pública. “Com a Constituição de 1988, o governo federal passou a arrecadar muito com as contribuições, além dos impostos. Esses recursos, porém, ficam única e exclusivamente na mão da União, que só reparte os impostos com estados e municípios”, explica Carlos Eduardo Sanches, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “Precisamos inverter essa situação, que hoje é desfavorável para os municípios, porque o maior volume de serviços públicos é oferecido por eles”, acrescenta.
Na realidade, já existe um mecanismo de repasse de verbas da União para prefeituras e governos estaduais que não conseguem pagar o salário dos professores e investir na infraestrutura das escolas. Trata-se do Fundeb, fundo criado para auxiliar todas as etapas da educação básica, e que passou a vigorar em janeiro de 2007 em substituição ao antigo Fundef, focado apenas no ensino fundamental. Apesar de o montante desembolsado pela União ter crescido dez vezes com a substituição do Fundef pelo Fundeb, o governo federal contribui com apenas 10% do total – o grosso ainda é constituído por recursos de estados e municípios.
O fundo também banca o repasse mensal de um mínimo fixado por lei para cada aluno, mas que ainda está bem distante do CAQ. “Esse patamar mínimo, na prática, se transforma no máximo. E não se considera se ele garante uma escola de qualidade”, analisa Rezende Pinto. “Hoje, R$ 200 é o teto real do Fundeb. Mas isso é a metade do nosso sonho”, afirma o professor da USP. Em alguns dos estados mais pobres do país, localizados nas regiões norte e nordeste, a situação é ainda mais dramática: o valor fica na casa dos R$ 118. “O Fundeb não significou de fato o aumento dos recursos. Houve ampliação do montante, mas o atendimento também cresceu demais. É preciso aprimorá-lo”, ressalva Dermeval Saviani, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Além disso, há outro agravante a ser considerado: o prazo de validade do fundo expira em 2020. “O grande desafio é implementar uma política permanente, porque a que está aí é transitória. Nas condições atuais há um desequilíbrio tremendo entre quem mantém o aluno (os estados e, sobretudo, os municípios) e quem tem os recursos (a União), e o Fundeb impede que a situação exploda. Mas temos uma bomba-relógio”, alerta Rezende Pinto.
Salário
“Hoje, o grande desafio da educação pública no Brasil é resolver a questão da aprendizagem, que, a meu ver, passa pela da valorização do professor. O primeiro ponto é como atrair os jovens mais talentosos do ensino médio para a carreira do magistério”, afirma Mozart Neves Ramos, presidente executivo do movimento Todos pela Educação. “Tem de haver salário inicial atraente, comparável ao das demais carreiras mais valorizadas. Esse seria o primeiro passo. É preciso, também, existir perspectiva de carreira”, complementa.
Há dois anos está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a lei, já aprovada no Congresso Nacional, que cria o piso salarial nacional para o magistério. A proposta foi contestada por cinco governadores, articulados pelo paulista José Serra (PSDB), por supostamente ofender a autonomia dos estados de legislar sobre o assunto, como prevê o atual sistema federativo. “A lei do piso salarial diz que os municípios e estados teriam até 31 de dezembro de 2009 para adequar seus planos de carreira. Isso não aconteceu na imensa maioria dos municípios brasileiros, até porque o piso está sub judice no STF. Agora, organizamos um grupo de trabalho com o MEC para tentar tirar a questão do impasse em que se encontra”, explica Roberto Franklin Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). De acordo com a entidade, o salário inicial de um professor deveria ser de, no mínimo, R$ 1.312,85. O MEC, porém, trabalha com o valor de R$ 1.024,00. “Também teremos de avançar no tema do piso nacional pelo menos em dois sentidos. Em primeiro lugar, reconhecer que ele não atende às necessidades da categoria e aprovar no Congresso as diretrizes nacionais de carreira. Em segundo lugar, por que não fixar uma meta de aumento real do piso salarial no próximo Plano Nacional de Educação?”, sugere o ministro Haddad.
Outro ponto defendido pelos participantes da Conae, mas questionado pelos governadores que contestaram a lei do piso nacional no STF, é a reserva de pelo menos um terço das 40 horas semanais de trabalho dos professores para atividades extraclasse. “Os governadores queriam essas 40 horas em sala de aula. Isso é um absurdo, porque, no ciclo educativo, o professor tem de no mínimo planejar, executar, avaliar e reformular”, argumenta Iria Brzezinski, presidente da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope). Relacionado à questão, existe ainda outro imbróglio jurídico que precisa ser equacionado: há quem entenda que o estabelecimento do piso bate de frente com a Lei de Responsabilidade Fiscal – que limita o gasto com funcionalismo público a 60% do orçamento gerido por qualquer mandatário –, engessando assim a construção de uma política salarial que realmente valorize os profissionais da educação. “Creio, no entanto, que estamos em outro momento: o piso é incontestável. Temos a população toda a favor, menos alguns governantes”, declara Iria.
Responsabilização
Outra ideia aprovada durante a Conae é a criação de uma Lei de Responsabilidade Educacional. Em linhas gerais, o objetivo é punir até mesmo com a perda de mandato os administradores públicos que desviarem os recursos específicos da educação para bancar despesas de outras áreas – mesmo que não se trate de corrupção propriamente dita. Na realidade, o debate em torno desse assunto encontra-se avançado no Congresso Nacional. “Já há um projeto de lei em tramitação, da deputada federal Raquel Teixeira (PSDB/GO), que tem o apoio do Executivo, de vários movimentos sociais, da Unesco e da Unicef. Houve uma adesão espontânea e quase unânime dos parlamentares”, afirma Ramos, do Todos pela Educação.
Porém, para que a lei saia do papel, é preciso corrigir outro problema grave que se verifica em boa parte dos municípios brasileiros. “O artigo 69 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) diz que os recursos da educação devem ser geridos pelo secretário de Educação, em uma conta separada. Mas isso não acontece em 99% dos casos no Brasil”, afirma Sanches, da Undime. Dessa maneira, é muito comum prefeitos misturarem as verbas da educação no bolo total de recursos da administração municipal, utilizando-as como consideram mais conveniente.
A verdade é que não será nem um pouco fácil persuadir o Executivo e muito menos os parlamentares a acatar as diversas propostas decididas na Conae. Certamente, a maior dificuldade será convencer o Ministério da Fazenda e setores menos progressistas do Congresso Nacional a destinar mais recursos para a educação. Porém, sem dinheiro para investir na infraestrutura das escolas e, principalmente, para valorizar a carreira do magistério, será impossível dar um verdadeiro salto de qualidade na educação pública brasileira, garantindo que as metas do próximo PNE sejam alcançadas. “O principal motivo do não cumprimento do atual plano é a pouca atenção que recebeu do Estado. A tendência do novo PNE é tornar-se mais relevante, porque nasce dentro de uma conferência, com um lastro social maior”, conclui Daniel Cara.