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A megalópole dos extremos
São Paulo, um desafio cada vez maior para a qualidade de vida
MIGUEL NÍTOLO
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Na década de 1970, Agnello Rossi, ex-arcebispo de São Paulo e, na oportunidade, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, no Vaticano, exibiu para um grupo de estudantes secundaristas de Roma uma foto da capital paulista. Perguntou aos adolescentes que cidade era aquela e recebeu em uníssono, como resposta, Nova York. De pouco adiantou o esclarecimento do sacerdote de que se tratava do maior aglomerado urbano brasileiro, porque aquilo era uma coisa impensável àqueles europeus acostumados a ver e ouvir coisas da grande metrópole americana. Definitivamente, eles nada sabiam sobre São Paulo. Passaram-se quase 40 anos, e a cidade continua a ser comparada visualmente à Big Apple, em especial pelos estrangeiros de passagem pelo Brasil, normalmente desinformados sobre as mazelas que afligem a vida da gigantesca concentração habitacional despretensiosamente fundada, em 1554, pelo jesuíta José de Anchieta.
São Paulo até pode lembrar Nova York pelos arranha-céus e algumas de suas áreas verdes, mas é só. Na realidade, embora seja única, sua identidade, lavrada pelos séculos de atraso da nação, carrega no DNA as marcas que estão presentes em basicamente todas as grandes cidades de países subdesenvolvidos. Mas o Brasil, dizem os analistas, vem paulatinamente galgando degraus, deixando essa fase ruim para trás e avançando posições no ranking mundial. Então, é natural que as cobranças no tocante à melhoria da qualidade de vida se avolumem na mesma proporção.
O que era apenas incômodo ontem tornou-se insuportável hoje, notadamente porque, além de o brasileiro estar exercendo seus direitos de cidadania agora com maior veemência, a cidade cresceu além da conta, empurrando seus limites para bem longe e multiplicando seus problemas. Nos primeiros 50 anos do século passado, a população de São Paulo se ampliou mais de nove vezes, saltando de 240 mil, em 1900, para 2,2 milhões de pessoas em 1950. Hoje, dizem os estudos, a cidade tem ao redor de 11 milhões de habitantes. As projeções indicam, é verdade, que a concentração de residentes não deverá ir além de 12,5 milhões nos próximos anos, podendo, finalmente, parar de crescer. O que está feito, porém, feito está.
Insatisfação
São Paulo inchou com tanto impulso e as chagas decorrentes do crescimento desordenado que caracterizou sua expansão afloraram com tal virulência que, mostram os levantamentos, a cidade estaria agora mandando mais gente embora do que recebendo. O fato é que muitos moradores da outrora terra da garoa estão descontentes com sua qualidade de vida, algo de que os números já não deixam dúvidas. O índice de paulistanos que mudariam se tivessem oportunidade subiu de 46%, em 2008, para 57% em 2009. Já a porcentagem de entrevistados que não pensam em sair de São Paulo despencou de 53% para 41%. Segundo os insatisfeitos, a violência, a carência em serviços públicos e a falta de consciência coletiva estão transformando a capital em um lugar quase intolerável.
Esses dados fazem parte da pesquisa Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município (Irbem), conduzida pelo Ibope Inteligência a pedido do Movimento Nossa São Paulo, uma ONG criada em maio de 2007, integrada por 600 organizações da sociedade civil e, segundo seus fundadores, idealizada a partir da “percepção de que a atividade política no Brasil, as instituições públicas e a democracia estão com a credibilidade abalada entre a população”. Feito por amostragem, no ano passado, o levantamento do Ibope ouviu pessoas de perfis diversos quanto ao grau de instrução, sexo, cor, estado civil e renda.
Segundo o economista Josef Barat, um dos principais especialistas brasileiros em transportes e infraestrutura, os resultados dessa pesquisa são preocupantes e mostram que a metrópole paulistana não corresponde mais aos anseios de qualidade de vida e realização pessoal de seus habitantes. Em outras palavras, os grandes atrativos da vida urbana que são oferecidos por São Paulo – oportunidades de trabalho, educação, cultura, entretenimento e lazer – parecem já não ser compensadores diante dos aspectos negativos relacionados a congestionamentos, poluição e violência. “Não é um número de estranhar, quando temos um mínimo conhecimento dos problemas amargados por São Paulo”, afirma Luciano Pires, escritor, radialista e palestrante, referindo-se ao percentual de paulistanos descontentes. “Apesar disso, sinto orgulho do lugar onde vivo e estou conscientizado dos obstáculos que terão de ser transpostos”, pontifica.
Problemas mal resolvidos são como feridas abertas, males que transformaram São Paulo, talvez injustamente, numa espécie de estereótipo de cidade pouco recomendada. “É um lugar com dois rios enormes e sujos, uma poluição tremenda e uma grande insegurança. Quem quer viver assim?”, pergunta Oded Grajew, da secretaria executiva do Movimento Nossa São Paulo, referindo-se ao Tietê e ao Pinheiros, os cursos de água mais importantes da capital e comumente rotulados de “esgotos a céu aberto”, um problema que, segundo ele, “diversos governos ainda não conseguiram resolver”. Oded salienta que a sobrecarga na infraestrutura, a preferência do paulistano pelo transporte individual, acarretando enormes engarrafamentos, e o abandono dos pobres tornam mais aflitiva a sensação de caos urbano.
“Os indicadores técnicos e oficiais continuam atestando a marca cruel da desigualdade social na capital paulista”, comenta, observando que entre os itens avaliados pelo Irbem está a “política de reurbanização de favelas”, que recebeu nota média 4. “Atualmente, a subprefeitura da Sé tem o melhor indicador da cidade e a de Campo Limpo, o pior. A diferença entre as duas (o que chamamos de desigualtômetro) é de 130,4 vezes. Vale lembrar que 0,31% dos domicílios são favelas”.
Perigosa e selvagem
Muitos, compreensivelmente, são os que lastimam esse triste panorama. “Já na terceira fase da vida, aos 73 anos, eu e minha mulher sonhamos com um lugar mais tranquilo para morar, onde seja possível passear sem medo de caminhar à noite pelas ruas”, diz Tom Zé, compositor e cantor, baiano de nascimento e na capital desde janeiro de 1968. Autor de São, São Paulo, música campeã naquele ano do IV Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record (“São, São Paulo, quanta dor, / São, São Paulo meu amor. / São 8 milhões de habitantes, / De todo canto e nação, / Que se agridem cortesmente, / Correndo a todo vapor...”), Tom Zé se diz angustiado pelo medo e pela privação de liberdade. “Quando cheguei, há 42 anos, São Paulo ainda era provinciana, mas já tinha uma fisionomia pré-metropolitana.” Ele lembra que em 1980 ficou admirado com uma cena noturna de uma São Paulo de outros tempos. “Numa rua de periferia, onde moravam Edvaldo Santana e outros músicos de sua banda, as portas das casas ficavam abertas, como no interior da Bahia, e a vizinhança circulava sossegada.”
Os tempos, porém, são outros. Tom Zé diz que está assustado com a metrópole, hoje “perigosa e selvagem” e, segundo conceitua, “prenhe de atividade cultural e industrial e dona de um trânsito desumano”. Ele revela que a cidade que vivencia é limitada, já que sua rotina está restrita a Perdizes, tradicional bairro paulistano de classe média. “E digo isso não em relação apenas à padaria, mas também à academia de ioga, ao cinema, ao dentista, ao médico e ao shopping center. Assim, posso dizer que não moro em São Paulo, mas em Perdizes”, sublinha.
Segundo Barat, as causas que colocam São Paulo na berlinda são múltiplas, interdependentes e acumuladas por “muitas décadas de descaso e falta de antevisão dos problemas”. As grandes ondas migratórias dos anos 1940 e 1950, decorrentes da rápida industrialização, o rebatimento no espaço urbano das abissais desigualdades de renda da sociedade brasileira, a incapacidade de ofertar os serviços urbanos essenciais na escala exigida pelo crescimento demográfico e a falta de controle sobre a especulação do solo “foram fatores cumulativos que moldaram o crescimento desordenado da cidade”, como enfatiza, ressaltando que no século 20 não há paralelo com o que ocorreu aqui em poucas décadas. “Mas se o rápido crescimento de São Paulo explica a gravidade dos problemas, não justifica a ausência, no longo prazo, de planejamento, estratégias e políticas públicas que, por sua continuidade e consistência, pudessem atenuar os efeitos deletérios de tal expansão”, assevera.
O que o homem comum pensa de tudo isso? O paulista Antônio Roberto Vulcano, de 62 anos, profissional da área financeira aposentado, vê a questão com olhos de quem venera a terra onde nasceu. “Jamais me mudaria daqui, a despeito de sonhar com uma vida mais quieta no interior ou no litoral”. Vulcano lembra que a metrópole abriga nativos e gente vinda de todos os cantos do Brasil e do exterior, e que, por isso mesmo, é notório, nem todos lhe tributam respeito com a paixão exigida. “Pelo contrário, maltratam-na, transformando-a naquilo que conhecemos hoje: uma cidade sufocada por contratempos e obstáculos de toda natureza”, afirma.
O escritor Luciano Pires completa o raciocínio, salientando que colocar sobre as costas das ações governamentais toda a culpa pelas dificuldades é uma atitude simplista. “É próprio do brasileiro transferir a responsabilidade dos problemas para o Estado, como se a população não tivesse nenhum dever.” Ele sustenta que os governantes têm sua culpa, mas que a população também deve ser cobrada por não adotar as mínimas práticas de civilidade e de convivência em comunidade. “São Paulo está se tornando uma cidade insuportável pela falta de educação do povo. Educação para cuidar da cidade onde mora, para eleger políticos melhores, para respeitar as leis. Não será um político que resolverá esse problema, nem um partido. As mudanças têm de começar pela mobilização das pessoas que amam a cidade”, ele prega, afirmando que “em outras grandes metrópoles de países em desenvolvimento, como a Cidade do México e Nova Délhi, na Índia, encontramos realidades até piores que a de São Paulo”.
O Movimento Nossa São Paulo acentua que há meios de mudar para melhor o triste panorama vivenciado pela cidade fundada por José de Anchieta. “Experiências vitoriosas já realizadas em Bogotá, na Colômbia, e em Barcelona, na Espanha, entre outras, se adotadas aqui poderão fazer de São Paulo uma cidade melhor. Mas isso é uma tarefa de todos”, sustenta em documento divulgado recentemente.
Muitas das pessoas que relataram aos pesquisadores o desejo de abandonar a cidade sabem que há uma longa distância entre o sonho e a realidade. Os moradores que vieram de fora têm melhores chances de retornar à região de origem. Grande parte dos habitantes da pauliceia, entretanto, estão enraizados na capital, presos a empregos e a negócios, e nem sempre conhecem outros lugares ou dispõem de informações sobre eles. Ter parentes fora da cidade pode, muitas vezes, funcionar como uma espécie de alavanca, capaz até de acelerar os planos de mudança. Veja-se o exemplo do projetista da indústria automobilística aposentado Francisco Sganzella Lopes, de 74 anos, que no início de 2009 decidiu transferir-se para o interior do estado, onde já morava um irmão seu que saíra de São Paulo há mais de 20 anos. A decisão de Lopes de deixar a capital, segundo ele mesmo, foi motivada exclusivamente pelo tamanho da metrópole. “Tudo ficou muito longe. Mesmo podendo circular de ônibus e metrô graciosamente pela cidade, direito dos cidadãos com mais de 65 anos, não estava suportando mais as distâncias”, ele justifica.
Há, porém, barreiras plantadas no caminho daqueles que manifestam o desejo de ir embora, e os laços de família podem ser apontados como uma das mais fortes delas. Algumas pessoas, ao contrário, se vão porque ficaram longe dos parentes, que moram fora da capital. Maria José Chinelatto Arduino veio para a cidade, em 1980, recém-casada. Em 1997 ficou viúva, com a companhia apenas da filha, então com 12 anos de idade, e começou a cultivar a ideia de voltar a Barra Bonita, sua terra natal, no centro do estado. O projeto de retorno veio ganhando corpo até que, em 2006, sentindo a falta da família e preocupada com a violência, ela colocou-o em prática. “A vida pacata do interior fez bem para nós”, conta Maria José.
Se uma pesquisa levada a efeito no interior de uma indústria com o objetivo de levantar as impressões dos funcionários sobre o local de trabalho apresentasse um índice elevado de descontentes, o desagrado certamente seria responsabilizado em parte pela queda da produtividade e dos níveis de qualidade e pelo aumento das faltas ao trabalho. Como, no caso de São Paulo, a insatisfação pode afetar o dia a dia dos descontentes? “O estresse é uma queixa corriqueira entre as pessoas que vivem na capital, e os sintomas mais comuns são a fadiga crônica, a sonolência, a diminuição ou o aumento do apetite, a insônia, a ansiedade, as dores de estômago, a hipertensão arterial e a imunidade baixa”, explica o psiquiatra Jair Borges Barbosa Neto, do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ele esclarece ainda que, devido à rotina estressante ou em decorrência de algum tipo de estressor extremo, não é raro o surgimento de outras doenças de maior gravidade, tais como depressão, síndrome de burnout ou transtornos de estresse pós-traumático, de ajustamento ou decorrentes do uso de substâncias como o álcool e as drogas. “Mas também podem aparecer doenças psicóticas como o transtorno psicótico breve e o delirante persistente tendente à esquizofrenia, entre outros”, elucida Barbosa Neto. E o que a cidade perde com isso? “Como diria Aabye Kierkegaard, o mundo do homem feliz é diferente do mundo do homem infeliz”, observa Luciano Pires, segundo o qual “o clima de infelicidade desmotiva as pessoas, destrói esperanças e torna os indivíduos pessimistas”.
Caminho da mudança
Não é o caso, porém, de propagar a sinistrose. São Paulo não é diferente de outras capitais e grandes cidades do país. É apenas maior e, justamente por isso, os números impressionam. Ações localizadas são essenciais, mas é mais importante adotar medidas de alcance nacional. “A capital paulista é a única metrópole brasileira capaz de, rapidamente, se ombrear à rede de metrópoles mundiais nos campos da indústria criativa, da pesquisa científica, da arte, da cultura e do conhecimento em geral”, afirma o economista Josef Barat, acrescentando que, por seu dinamismo e capacidade de superar problemas, “São Paulo é uma cidade com condições de enfrentar os desafios impostos pela globalização e disputar um lugar de destaque na economia urbana mundial.”
A capital dos paulistas desagrada a alguns, mas satisfaz a outros. “Amo esta cidade com uma paixão insana”, diz o escritor Raul Drewnick, nascido na metrópole e morador do Jardim da Saúde, na zona sul. “Amo suas ruas, seus tristes cartões-postais, onde os meninos oferecem balinhas nos faróis, onde as meninas apregoam chocolates nos cruzamentos e onde os mendigos, com a mão estendida, vendem alívio à minha alma.” Executiva de uma grande editora, hoje aposentada, Marilda Monteiro do Amaral Campos, que veio de fora, também tem um amor intenso pela metrópole. “Não que já não tenha passado pela minha cabeça deixar São Paulo para viver no interior”, ela observa, relatando que, na época em que ainda saía de manhã e só voltava à noite para casa, pensava em ir embora da capital quando deixasse de trabalhar. “Após a aposentadoria, entretanto, comecei a descobrir tudo o que a cidade tem de bom e de que eu não usufruía. São vantagens que talvez não encontre em nenhum outro ponto do Brasil.”
Marilda está se referindo a museus, teatros, cinemas e vias públicas famosas da capital, onde o comércio de rua explode com vigor incomum, basicamente a mesma descoberta feita pela professora aposentada Maria Helena Tereza Gonzales Lacerda, que se mudou para a capital, em 1984, vindo de Santa Cruz do Rio Pardo. “Vou a concertos, assisto a importantes peças teatrais, faço caminhadas no Parque do Ibirapuera e tenho à disposição uma diversidade de livrarias. Onde mais posso contar com tudo isso?”, ela pergunta. A mineira Maria José Alves Borges, de Governador Valadares, se contenta com menos. Há 40 anos em São Paulo, essa diarista garante também que não abandonaria a cidade por nada. “Não tenho casa própria, mas se um dia conseguir um teto só para mim, ele será erguido aqui”, diz. Maria José salienta que gosta de São Paulo porque, entre outras qualidades, a cidade tem muitos supermercados. “É bom para pesquisar preços”, finaliza.