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A tecnologia da superação

Produtos e equipamentos facilitam a vida de pessoas com deficiência

CELIA DEMARCHI


João Pacheco: apoio do computador
Foto: Celia Demarchi

O empresário João Pacheco Fernandes Neto, de 55 anos, trabalha diariamente no quarto de seu apartamento no bairro de Perdizes, em São Paulo, onde mora sozinho. Com seu sócio, Renato Bueno de Camargo Laurenti, de 48 anos, ele administra a Como Ir!, uma loja virtual que atende também por telefone. Seria uma atividade como qualquer outra, não fosse o fato de os dois sócios serem tetraplégicos – eles sofrem de paralisia nas quatro extremidades do corpo (direita, esquerda, superior e inferior). Camargo movimenta parcialmente braços e mãos, e Pacheco, apenas a cabeça. Eles, porém, conseguem trabalhar graças a produtos da mesma categoria dos que comercializam, da chamada tecnologia assistiva. Trata-se de uma farta e crescente variedade de itens – pratos e talheres adaptados, softwares que leem em diversas línguas a tela do computador, próteses programadas para se adaptar aos movimentos do corpo, implantes totalmente imperceptíveis de aparelhos para surdez, roupa que promete fazer paraplégicos voltarem a andar, entre outros.

São artigos cuja demanda vem crescendo nos últimos anos, em consequência de fatores relacionados à mobilização social das pessoas com deficiência, que seriam em torno de 14,5% da população, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000. Como atualmente o país tem 191,5 milhões de habitantes, haveria algo em torno de 27,7 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Esse número supera em quase 8 milhões o total de moradores da região metropolitana paulista, a mais populosa do país.

Com a mobilização social, as pessoas com deficiência – física e sensorial – conquistaram mais acessibilidade, empregos e, portanto, renda, tornando-se também mais visíveis na sociedade. Passaram ainda a se comunicar mais e se tornaram mais bem informadas, à medida que a tecnologia se desenvolveu e elas puderam engrossar o numeroso grupo de brasileiros com acesso à internet. Nisso foi pioneira, há dez anos, a Rede Saci (Solidariedade, Apoio, Comunicação e Informação), que funciona na Universidade de São Paulo (USP): “Usamos a internet desde o início para difundir informações e fazer com que as pessoas tenham acesso umas às outras, se comuniquem”, diz Ana Maria Barbosa, coordenadora executiva da rede.

Nesse cenário, os brasileiros com deficiência entraram no foco da mídia e conquistaram o horário nobre da Rede Globo por meio da personagem Luciana, da novela “Viver a Vida”, de Manoel Carlos, que começou a ser veiculada em setembro do ano passado. O tema da superação foi bem encaminhado pelo autor e o folhetim serviu até como vitrine: os apetrechos e equipamentos usados pela modelo tetraplégica tornaram-se mais conhecidos e desejados. Sua cadeira de rodas, por exemplo, passou a ser cobiçada, segundo Camargo: “Esses objetos facilitam o dia a dia das pessoas com deficiência, mas nem sempre elas os conhecem”.

Além de conhecimento, falta também poder aquisitivo – apesar da melhora dos últimos anos –, pois a maior parte desses produtos pode custar bem caro, inclusive porque muitos deles são importados e seus preços incrementados por impostos. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem uma política de atendimento e distribuição de vários itens, mas não consegue atender toda a demanda nem todos os tipos de necessidade.

Camargo, que ficou tetraplégico por causa de um acidente de automóvel há 26 anos, se locomove por meio de cadeira de rodas, usa canetas adaptadas (mais grossas), mesa de colo acolchoada e uma série de outros apetrechos que o ajudam inclusive a trabalhar. Pacheco, que sofreu uma fratura na cervical na altura do pescoço há dez anos, ao ser arrastado na praia por uma onda violenta, precisa de um auxílio extra para operar o computador. Ele usa uma espécie de capacete ao qual é acoplado um lápis sem ponta. Com movimentos precisos da cabeça, ele digita, com destreza, por meio do lápis. Assim, consegue desfrutar de todos os recursos do computador, inclusive os de acessibilidade do sistema operacional Windows, como o que lhe permite ampliar o tamanho de imagens e caracteres na tela de cristal líquido de 26 polegadas que fica aproximadamente 2 metros à sua frente.

O capacete é simples em relação aos softwares que possibilitam ao usuário com paralisia comandar o computador com movimentos mínimos do rosto, pela voz ou mesmo pelos olhos – os quais, no entanto, se mostraram menos eficientes no caso do empresário. “Eles exigem mais precisão de movimentos e até do som, no caso dos comandados pela boca. Já com este capacete posso usar o computador e ao mesmo tempo falar ao telefone”, diz Pacheco, que cuida da área financeira e ajuda no atendimento a clientes da Como Ir!, que comercializa cerca de 400 artigos, todos especificamente para pessoas com deficiência física. Ele conta com a ajuda de cinco “cuidadores”, profissionais de home care, que se revezam em turnos de 12 horas e são remunerados pela empresa de seguro-saúde da qual ele era cliente à época do acidente, benefício que conquistou na Justiça, de forma pioneira, há sete anos.

A tecnologia assistiva – nesse caso bastante sofisticada – também foi um divisor de águas para Suellen de Paula Guimarães Rodrigues, de 23 anos, de São José dos Campos (SP). Há aproximadamente quatro anos ela precisou amputar a perna direita, a partir do quadril. Seu drama começou quando, aos 16 anos, teve câncer no fêmur direito. A doença foi debelada com a substituição do osso por uma prótese, mas a violência da radioterapia a que se submeteu lhe causou uma gravíssima infecção na coxa, contra a qual ela lutou por pelo menos um ano e meio, sem sucesso. Suellen foi aconselhada, então, a amputar a perna para salvar a vida. Depois de pesquisar bastante e ouvir pessoas que usam próteses, ela entendeu que diante das circunstâncias a melhor decisão seria mesmo a amputação e que enfim a situação não seria tão ruim quanto imaginava: “Em menos de seis meses retomei praticamente todas as minhas atividades”.

Suellen, que além de trabalhar (é bancária), estuda inglês e cursa faculdade de administração, usou inicialmente uma prótese mecânica que atendia às suas necessidades, mas não lhe proporcionava um caminhar harmônico e lhe exigia muito esforço físico para locomoção, além de cuidado para não cair quando pisava em solo mais irregular. Em outubro do ano passado, porém, a fabricante da prótese a convidou a experimentar uma de suas maravilhas tecnológicas, constituída de fêmur articulado ao quadril, com joelho e pé também articulados. Suellen aceitou, embora pelo acordo ela tenha de pagar, em parcelas, metade do preço do conjunto, que custa R$ 200 mil.

Nessa nova prótese, o joelho é computadorizado e programado para funcionar conforme os movimentos e necessidades do usuário. Assim, na fase de treinamento, o joelho eletrônico é conectado a um aparelho blue tooth, o qual envia informações ao computador, enquanto o paciente se movimenta. Os dados são então aplicados à programação. Graças a isso, o joelho recebe informações do pé, “compreendendo” se vai precisar de mais ou menos esforço conforme o terreno, o ritmo das passadas e o tipo de movimento que está sendo feito, como, por exemplo, subir ou descer uma escada. “Agora que já estou me acostumando, posso me liberar para caminhar mais rapidamente”, diz Suellen, que também decidiu assumir o fato de usar uma perna mecânica: “Deixei de cobrir com espuma. Isso me libertou”.

Base tecnológica

Cristiana Mello Cerchiari, de 35 anos, que nasceu cega, não sabe calcular o valor da tecnologia em sua vida. Moradora do bairro da Pompeia, em São Paulo, ela sempre recebeu os tratamentos mais adequados. Conseguiu estudar normalmente e hoje é tradutora e professora de inglês, espanhol e informática. Trabalha desde quando se formou, há 12 anos.

Foi o acesso ao computador e à internet, porém, a partir do fim da década de 1990, que fez toda a diferença em sua vida. Desde então seu universo se ampliou, e muito. Os programas que leem texto na tela possibilitaram às pessoas cegas acesso a todos os tipos de conteúdo, pois reconhecem inclusive páginas escaneadas, além de sites, blogs e e-mails. Como dominam bem o teclado, os deficientes visuais também passaram a escrever em português – Cristiana está agora mesmo concluindo sua tese de mestrado – e a se corresponder por escrito inclusive com pessoas não cegas. “Antes, eu só podia ler e escrever em braille, o que reduzia meu campo de comunicação escrita apenas ao círculo dos que dominam essa linguagem.”

Quando Cristiana começou a usar computador, o Brasil mal tinha lançado seu primeiro programa específico para cegos: o sistema operacional Dosvox, desenvolvido a partir de 1993 por pesquisadores do Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Hoje, o Dosvox, que pode ser baixado gratuitamente do site do servidor Intervox, é utilizado por cerca de 20 mil pessoas e até por escolas de computação no Brasil, segundo José Antonio dos Santos Borges, pesquisador pioneiro do projeto. O sistema lê a tela, por meio de sintetizador de voz, e é comandado pelo teclado. Este tem teclas programadas para funcionar como menu, que é “lido”. O usuário escolhe então a opção desejada, como imprimir ou ler, acionando a tecla correspondente: “O cego aprende facilmente a manejar o teclado”.

Depois do Dosvox, hoje considerado um sistema para iniciantes, foram lançados inúmeros outros programas, que possibilitam maior interação com a máquina e o ambiente Windows. Cristiana usa o Virtual Vision, criado por uma empresa nacional, o NDVA, que está sendo desenvolvido em plataforma aberta, e o Jaws, concebido nos Estados Unidos. Este último ela considera o mais aprimorado, em especial pela qualidade de voz em inglês. Em português, é o Virtual Vision que apresenta essa vantagem. O NDVA, por sua vez, é gratuito e, como não requer instalação, pode ser carregado em um pen drive.

Cristiana também usa o Talks, software leitor de tela exclusivo para determinados modelos de telefone celular da Nokia, produzido por uma empresa americana. Com esse programa, ela tem acesso a todas as funções do telefone, como redigir e ler mensagens de e-mail, SMS e multimídia, fazer configurações e discar a partir da agenda de contatos.

A professora e tradutora só não aderiu até agora a aparelhos identificadores de cores ou de dinheiro, fabricados no exterior e já bastante difundidos no Brasil, por considerá-los caros (custam entre cerca de R$ 600 e R$ 1,2 mil): “É quase o preço de um laptop. Prefiro perguntar para as pessoas para saber as cores”, diz ela, acrescentando que os preços dos softwares também são “proibitivos e dificultam a contratação de deficientes visuais pelas empresas, que precisam fazer investimentos para empregá-los”.

O Virtual Vision, desenvolvido por uma empresa nacional, sai de graça apenas para pessoas físicas. Já o Jaws custa aproximadamente R$ 2,4 mil e o Talks, cerca de R$ 700, segundo Cristiana. Ela explica que, se quiser trocar de telefone, o cliente tem de comprar todo o conjunto novamente, pois, no Brasil, a licença vincula-se ao número do aparelho.

Dispositivos úteis

Um produto nacional de baixo custo que reúne duas funções (identificar cores e dinheiro) pode estar chegando ao mercado. Por enquanto trata-se de um protótipo, criado por estudantes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), mas já desperta interesse entre investidores nacionais e se classificou este ano no concurso do Unreasonable Institute, dos Estados Unidos, uma incubadora de projetos sociais. Ainda em 2010, essa ONG irá ajudar a empresa Auire, fundada para viabilizar a produção e as vendas, a transformar o protótipo em produto.

O aparelho tem dois botões: ao ser acionado, um deles revela, por meio de voz sintética, a cor de objetos e o segundo permite conhecer a cor de notas de real, possibilitando à pessoa cega saber seu valor: “É útil para a pessoa se vestir, combinar as cores e utilizar o dinheiro”, diz Nathalia Sautchuk Patrício, idealizadora do aparelho, lembrando que as notas de real devem começar a ser impressas em tamanhos diferentes, conforme o valor, justamente para que as pessoas com deficiência visual possam distingui-las. “Mesmo assim será útil, pois descobrir o valor de cada nota exigirá que se tenha em mãos notas de todos os tamanhos para fazer a comparação.”

Já as pessoas surdas têm perspectivas concretas de ouvir utilizando aparelhos de baixo custo. Um deles, que já chegou ao Brasil e deve começar a ser comercializado ainda este ano, é o Solar Ear, que foi desenvolvido por voluntários em Botsuana, na África, em 2002, e está sendo aprimorado no Brasil desde 2007.

Trata-se de um aparelho auditivo digital que utiliza baterias recarregáveis por meio de carregador solar que também pode ser ligado à rede elétrica. Ele embute uma tecnologia que mira, portanto, dois objetivos: um social, outro ambiental. A ideia é ampliar o acesso de pessoas surdas de baixa renda a aparelhos auditivos e reduzir o descarte da enormidade de baterias que esses artefatos demandam (a troca chega a ser semanal). “Para estimular a fabricação, os desenvolvedores abrem mão da patente, que é aberta”, conta Howard Weinstein, empreendedor social americano que atuou em Botsuana e apresentou a solução a pesquisadores brasileiros da USP.

Weinstein trabalha no Brasil em conjunto com a ONG Instituto Cefac, que está produzindo o Solar Ear. Segundo ele, os aparelhos auditivos comercializados no país precisam de softwares e os usuários têm de recorrer a profissionais, geralmente em consultórios de fonoaudiologia, para ajustá-los às suas necessidades específicas. Já o Solar Ear poderá ser manipulado pelo próprio usuário.

De acordo com Weinstein, os aparelhos comuns são caros, com preços, em média, de R$ 1,5 mil a R$ 5 mil. Além disso, mesmo que os recebam do SUS, as pessoas nem sempre conseguem usá-los, pois muitas vezes não podem bancar as despesas com baterias – que, segundo Weinstein, custam cerca de R$ 4, mas duram no máximo sete dias. Já o Solar Ear, cuja produção não visa lucro, será vendido a R$ 299 e suas baterias recarregáveis duram cerca de três anos.

O Cefac está pronto para atender à demanda. Tem aparelhos em estoque à espera apenas da autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que deve sair este ano. A produção está sendo feita em uma oficina no bairro de Perdizes, em São Paulo, por seis jovens surdos. Trabalhando em turnos de meio período, eles podem fabricar por mês 10 mil aparelhos ou 20 mil carregadores e 40 mil pilhas, segundo Weinstein.

As pessoas surdas também já podem se comunicar em tempo real por meio de celulares com tecnologia 3D, que fazem telechamadas. Isso lhes permite usar a linguagem de sinais, libra, que a maior parte delas domina melhor que o português. O custo das ligações, porém, é salgado: gastam-se em média R$ 100 para pouco mais de dez minutos de ligações.

Essas opções que se complementam, no entanto, poderão num futuro próximo se tornar obsoletas. Uma empresa americana criou e está testando para certos casos de surdez um aparelho auditivo totalmente implantável por meio de cirurgia, que permite torná-lo imperceptível. A prótese, que oferece ainda qualidade de som melhor que os aparelhos comuns, já foi colocada em pacientes dos Estados Unidos, da Europa, do Irã e do Brasil (no Hospital das Clínicas, em São Paulo, no ano passado).

Esse é apenas um exemplo. Os cientistas já fazem testes em estágio avançado de toda uma gama de órgãos artificiais – de pâncreas e coração a olhos biônicos –, diante dos quais até mesmo próteses sofisticadas como a usada pela universitária Suellen parecem soluções do passado. Basta citar o braço artificial da americana Amanda Kitts, de 40 anos. Trata-se de um robô, cujo desenvolvimento foi financiado pela Agência de Pesquisas em Projetos Avançados do Pentágono (Darpa, na sigla em inglês). Os fios do braço biônico são conectados diretamente ao sistema nervoso de Amanda, que controla seus movimentos por meio do pensamento.

O brasileiro Miguel Nicolelis, da universidade americana de Duke, na Carolina do Norte, responsável pelo desenvolvimento da tecnologia de reconhecimento dos impulsos nervosos e sua transformação em linguagem de máquina, assunto que pesquisa desde os anos 1990, quer agora ver paraplégicos andando. Para isso está desenvolvendo uma vestimenta robótica. Assim que a concluir, começará a testá-la clinicamente na Universidade Duke e no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Por meio de implante neural, os pacientes deverão controlar os movimentos da veste robótica e, assim, conseguir se erguer e andar. Se tudo der certo, disse ele à revista “Época” de 5 de fevereiro deste ano, poderemos ver paraplégicos voltando a andar em três anos, antes da Copa de 2014.

 

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