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Os consumidores precisam de defesa
Lei que regula o consumo foi um avanço, mas está longe de eliminar todos os conflitos
ELISA ALMEIDA FRANÇA
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A grande concentração do mercado verificada em vários setores da economia resulta, invariavelmente, em dor de cabeça para o consumidor. Tomem-se como exemplo as instituições financeiras e as companhias telefônicas, que atendem milhões de pessoas no país, e vide o cadastro das organizações de defesa do consumidor, como o Procon-SP. No ranking da entidade relativo a 2009, divulgado em março deste ano, a Telefônica – detentora do monopólio no setor em São Paulo – foi o maior alvo de processos administrativos, repetindo a triste marca dos últimos quatro anos. Entre as outras nove empresas que mais se destacaram nesse quesito, duas se fundiram há pouco mais de um ano. O Itaú, segundo lugar na classificação (como ocorre há três anos), se juntou ao Unibanco, o oitavo da lista. Os processos das dez primeiras do ano passado no Procon-SP somaram mais de 7,5 mil.
Ainda em 2009, outro balanço confirmou como a crescente concentração se faz acompanhar de problemas. Na lista nacional divulgada em dezembro pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), ligado ao Ministério da Justiça, empresas pós-fusão ocuparam justamente os primeiros lugares entre aquelas com maior número de reclamações: Oi/Brasil Telecom (esta detentora da 11ª posição no ranking do Procon-SP) e Itaú Unibanco, nessa ordem, com 8,7 mil e 5,9 mil queixas, respectivamente, provenientes de 21 estados mais o Distrito Federal.
No momento em que a lei 8.078/90 completa 20 anos, a baixa concorrência aparece justamente como uma das grandes causas de problemas nas relações de consumo no Brasil. Mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), a lei foi sancionada pelo presidente Fernando Collor de Mello em 11 de setembro de 1990, com o propósito de dar mais equilíbrio à relação entre fornecedores e consumidores.
“Não há concorrência, mas sim grandes oligopólios, ou mesmo ‘concorrentes’ que são associados”, afirma o desembargador Luiz Antônio Rizzatto Nunes, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “E, toda vez que ocorre fusão de empresas, o consumidor sai perdendo.” Afinal, a concorrência estimula a competição, que, por sua vez, costuma melhorar a qualidade de serviços e produtos.
Mudanças
De maneira geral, os setores que mais geram conflito com o consumidor são os financeiros, os de serviços essenciais, planos de saúde, TV por assinatura, seguros e habitação, mas as reclamações também têm muitas outras origens. Nos supermercados de Goiás, ainda é comum ver produtos vencidos nas gôndolas ou discrepância entre o preço anunciado e o valor cobrado no caixa. “Estamos em 2010, isso é inaceitável”, afirma Letícia Franco, superintendente do Procon-GO.
Nem tudo, porém, são problemas. “Mudou muita coisa nestes 20 anos”, diz o advogado Marcos Diegues, que começou a atuar em direitos do consumidor em 1989, num dos primeiros órgãos municipais do país – o Centro de Informação, Defesa e Orientação ao Consumidor (Cidoc), de Santos (SP). “Antes do código, não havia prazo de validade, garantia, troca de produto defeituoso ou recall”, concorda Rizzatto Nunes.
A rotulagem, em respeito ao direito à informação previsto no CDC, também progrediu significativamente, em especial no caso de alimentos, roupas, acessórios domésticos, eletroeletrônicos e brinquedos. “Isso ajudou o mercado brasileiro, fazendo com que os fornecedores oferecessem produtos e serviços melhores”, diz o desembargador. “O CDC representou um avanço na qualidade”, confirma o economista Gilson Garófalo, assessor da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP).
Ao menos em algumas regiões do país, hoje os consumidores conhecem seus direitos e, em maior ou menor grau, questionam quando são desrespeitados. Segundo o advogado Josué Rios, que participou da criação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em 1987, “a principal virtude do código foi trazer uma mudança de comportamento”. Já na opinião de Archimedes Pedreira Franco, ex-superintendente do Procon-BA e atual presidente de honra do Fórum Nacional dos Procons, embora atualmente “muita gente conheça alguns de seus direitos”, o grande público “ainda sabe muito pouco”.
O fato é que, em alguma medida, o movimento do consumidor em busca de seus direitos cresce. No Procon-SP, em 1991 houve por volta de 123 mil consultas e reclamações; em 1997, foram quase 240 mil; em 2008, passaram de 530 mil.
As faculdades, aos poucos, foram incluindo o direito do consumidor entre suas disciplinas. Nos Juizados Especiais Cíveis (JEC) – antigos Juizados de Pequenas Causas –, a maioria dos processos refere-se a relações de consumo. Na Justiça comum, juízes e desembargadores paulatinamente incorporaram o espírito do CDC a seu trabalho, atentos aos princípios norteadores da lei: a boa-fé objetiva, o equilíbrio da relação entre consumidores e fornecedores e a possibilidade de revisão do contrato estabelecido entre as partes.
O Ministério Público (MP), por sua vez, é o maior responsável por mover ações civis públicas (as chamadas “ações coletivas”) em defesa do consumidor, ao lado de ONGs que atuam nessa área – principalmente o Idec. De acordo com o promotor Érico de Pina, do MP-GO, também cabe ao órgão estabelecer termos de ajustamento de conduta (TAC), com os quais as empresas se comprometem a sanar determinados problemas.
Na mídia em geral e em alguns periódicos em particular – especialmente, em São Paulo, no “Jornal da Tarde”, do Grupo Estado – o tema esteve sempre presente. Contudo, a situação é bastante diversificada, nas várias regiões do país. Na opinião de Pedreira Franco, a cobertura da mídia é fraca, pois dá pouca visibilidade ao assunto e, ainda por cima, divulga ideias equivocadas sobre o direito do consumidor.
Negociação prévia
Segundo Josué Rios, o CDC é a única lei no Brasil feita depois de 15 anos de prática no assunto, e por isso se tornou uma das mais populares do país. “A defesa do consumidor nasceu com alguns movimentos da sociedade civil, tal como ocorreu nos EUA e na Europa”, afirma, mencionando como exemplos duas associações criadas em 1974 e 1976, no Rio Grande do Sul e no Paraná, respectivamente. “Por isso o CDC é consenso.” O Procon-SP, o primeiro estadual, não demorou a surgir, no fim de 1976. Tanto a lei foi trabalhosamente acordada entre as várias partes envolvidas, que o código foi aprovado no Congresso por unanimidade.
Entre as principais novidades aportadas pelo CDC, segundo Antonio Herman Benjamin, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e coautor do texto que desembocou na lei, nela o contrato passa a ser considerado de forma relativa – levando em conta “a vulnerabilidade do consumidor”. Outros pontos importantes da lei são a responsabilidade objetiva do fornecedor, isto é, “independentemente da existência de culpa”, e a “responsabilidade solidária”. Com ela, os diversos fornecedores de um mesmo produto – o fabricante e o lojista, por exemplo – tornam-se igualmente responsáveis perante o consumidor. Um exemplo: um cidadão compra uma caixa de bombons e, ao chegar em casa e abrir a embalagem, vê que o produto está mofado. Ele tem o direito de exigir que a loja troque o artigo ou lhe devolva o dinheiro. Se, mais tarde, o estabelecimento quiser se entender com o fabricante, isso não diz respeito ao consumidor.
Além disso, o CDC impôs limites à publicidade e proibiu práticas como a “venda casada” – em que a empresa condiciona a compra de um produto à de outro. Também estabeleceu regras para o envio do nome do consumidor para bancos de dados, como os serviços de proteção ao crédito. “O CDC representou um enorme avanço no equilíbrio das relações de consumo em todas as esferas: na civil, definindo as responsabilidades e os mecanismos para a reparação dos danos causados; na administrativa, determinando os critérios para o poder público atuar nas relações entre consumidor e fornecedor; e na penal, estabelecendo novos tipos de crimes e as punições para eles”, explica Herman Benjamin.
Práticas ilegais, no entanto, existem aos montes. A companhia de internet só vende a banda larga junto com o telefone fixo. A financeira manda para a Serasa Experian o nome do consumidor sem nem ao menos notificá-lo. O banco envia um cartão de crédito sem solicitação ou cobra uma tarifa sem avisar. O plano de saúde recusa a cobertura de uma tomografia. O varejista não aceita receber o liquidificador com defeito, recém-comprado, para providenciar uma solução. A concessionária anuncia nos comerciais um financiamento com juros a 0,5%, sem dizer que se aplicam apenas a quem der 60% de entrada no carro. A distribuidora de eletricidade desliga a energia de sua casa sem prévio aviso. Dificilmente o leitor já não passou por alguma dessas situações.
Diante de tantos avanços trazidos pela lei consumerista, das mudanças na atuação das empresas e do número de consumidores que aportam nos Procons do país diariamente (só em São Paulo, são 1.250, em média), resta a pergunta: por que os problemas de consumo crescem e, pior ainda, são recorrentes? A maioria das empresas contatadas pela reportagem – as campeãs do Procon-SP no ano passado – não nos respondeu.
As exceções foram a Oi/Brasil Telecom, que se limitou a relatar que, “ao longo de 2009, a companhia investiu fortemente em expansão de serviços e qualidade”, e a Tim. Esta, além de informar que “busca ser uma empresa acessível e que respeita sempre as necessidades e os questionamentos de seus clientes”, comunicou que, no ano passado, “mudou a interface da área de satisfação do cliente”, a fim de “dar agilidade ao tratamento das solicitações”.
Novos recursos
Para Josué Rios, o que acontece é que as empresas não temem mais o CDC. “O atendimento ao consumidor hoje está pior do que antes”, afirma. “As empresas não estão nem aí, há uma esculhambação geral.”
Até o ministro da Justiça já afirmou que, para as empresas de telefonia, é mais fácil pagar multas do que respeitar a lei consumerista. A declaração foi feita em julho do ano passado, quando sua pasta – ao lado da Advocacia Geral da União, do Ministério Público Federal, de associações civis e dos Procons de quase todos os estados do país – entrou com duas ações inéditas na Justiça Federal: uma contra a Claro e outra contra a Oi/Brasil Telecom. Cada uma pede sanção pecuniária de aproximadamente R$ 300 milhões, a título de danos morais coletivos, por reiterado desrespeito ao decreto 6523/08, dos serviços de atendimento ao consumidor (SACs), um “filho” do CDC. As empresas não responderam à solicitação da reportagem para que comentassem o episódio.
Outros dois casos emblemáticos foram a suspensão da venda do Speedy (banda larga da Telefônica), em São Paulo, e a dos serviços da Oi/Brasil Telecom em Goiás, por problemas recorrentes, como cobrança indevida e má prestação de serviço. “O objetivo das sanções é sempre fazer com que as empresas mudem seus processos”, diz Letícia Franco, do Procon-GO.
Como as multas por si sós parecem não ter muito efeito, já que as empresas protelam quanto podem seu pagamento ou incorporam os valores a seus custos – há quem diga também que, dependendo da empresa em questão, os valores não são significativos –, medidas como essas podem ser sinal de avanço.
Além disso, é preciso haver mais ações coletivas na Justiça, para que de fato o impacto seja relevante. “Não tem nenhum sentido a existência de milhares de processos individuais relativos a um único problema”, diz Rizzatto Nunes. Na opinião da ex-procuradora Ada Pellegrini Grinover, que coordenou a comissão responsável por elaborar o anteprojeto do CDC, as ações coletivas evitam não só a repetição de processos como a ocorrência de sentenças contraditórias.
O papel das agências reguladoras, que poderiam ter uma atuação mais contundente e promover maior fiscalização, também é questionado quando se trata da prestação de serviços por parte do poder público. “Muitas vezes, elas protegem a empresa, com uma regulação que vai contra o CDC”, afirma Carlos Coscarelli, assessor-chefe do Procon-SP.
Outra lacuna é a de organizações da sociedade civil. Há entidades relativamente atuantes, regionalmente, em alguns estados. Todavia, em âmbito nacional, existem apenas duas: Idec e ProTeste. “Não assistimos ao fortalecimento das associações”, afirma Marcos Diegues, que também já trabalhou no Idec. “Ainda queremos que o Estado resolva nossos problemas.”
Os Procons, por sua vez, só estão presentes em pouco mais de 10% dos municípios e seria certamente interessante que se disseminassem. Assim como o DPDC e as entidades da sociedade civil, eles integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, previsto no código. Procons estaduais, vale dizer, já existem em todas as unidades da Federação, onde definem estratégias de atuação, além de atender também aos problemas cotidianos entre consumidores e fornecedores, como acontece em São Paulo. No entanto, segundo o DPDC, órgãos municipais exerceriam melhor esse papel, na medida em que estão mais próximos da realidade local, o que lhes conferiria mais agilidade e legitimidade. Embora não haja uma hierarquia, a proposta é que todos trabalhem em cooperação.
Segundo o diretor do DPDC, Ricardo Morishita, apesar da importância dos 20 anos do CDC, esse foi um período de enfrentamentos. “Para os próximos 20 anos, queremos mais soluções”, afirma. “Os investimentos também devem ser feitos em prevenção, já que evitar o conflito é muito mais barato.”
Resistência
Algumas áreas empresariais, no início, foram avessas à regulação de sua relação com o consumidor. Porém, mesmo tendo sofrido críticas de alguns setores, destacadamente o de alimentos, o publicitário e o financeiro, Josué Rios diz que, depois de aprovado o CDC, “ninguém mais perdeu tempo: as empresas promoveram cursos para os funcionários, investiram em melhorias”. Na opinião do advogado, os primeiros anos do código foram de respeito ao consumidor, até a metade da década de 1990. “Nesse período, o Procon-SP e o Idec faziam muito barulho, e a imprensa também era muito atuante.”
Hoje, a Fecomercio-SP manifesta explicitamente o apoio ao CDC, mas na época em que ele estava sendo elaborado, houve alguma resistência à sua criação. “Diante da mudança, sempre há relutância em determinado momento”, afirma Gilson Garófalo.
De acordo com o economista, os comerciantes temiam os custos que poderiam advir das novas exigências legais e preocupavam-se em que houvesse reciprocidade de seus próprios fornecedores, com relação a questões como prazo de validade, por exemplo. Afinal, seria justo exigir que o comércio não arcasse sozinho com o ônus de um produto entregue próximo ao fim da validade. “A Fecomercio-SP, porém, chegou a elaborar cartilhas e realizar eventos”, diz o assessor, “num trabalho de conscientização dos filiados”.
Segundo o ministro Herman Benjamin, do STJ, além da entidade do comércio, os atores que mais se opuseram à criação do código foram a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).
Embora o CDC seja uma lei moderna e abrangente, justamente por não ser muito específica em seus artigos, existe entre alguns especialistas a ideia de que, passadas duas décadas, precisaria de ajustes. Por outro lado, há quem tema que, com a proposta de interferir no texto, se abra oportunidade para que ele seja piorado. “Contudo, 20 anos decorridos, a sociedade é outra”, diz Pedreira Franco. “O direito tem de acompanhar essa evolução.”
O exemplo mais citado é a internet. O CDC até pode ser interpretado de maneira a pôr alguma regra nesse universo, quando dispõe que compras feitas fora de estabelecimento comercial (por exemplo por televendas ou lojas virtuais) dão ao consumidor o direito de arrependimento, possibilitando cancelar a compra.
Isso, porém, parece insuficiente, e, como dizem alguns, a internet precisa de mais regras. Há muitos sites inidôneos, e mesmo alguns administrados por empresas “reais” e consolidadas no mercado invariavelmente fornecem serviços de má qualidade. O blog Advogado de Defesa, do Grupo Estado, chega a recomendar que não se façam compras virtuais, por avaliar que os fornecedores não estão preparados para prestar o atendimento adequado.
As discussões vão longe
Acima de tudo, o CDC funciona na base da boa-fé. E há muitos casos, vale lembrar, de consumidores que não se norteiam por esse princípio. Exemplos reais: o rapaz compra uma camisa para usar em uma festa no fim de semana e na segunda-feira devolve o produto à loja, alegando algum defeito; ou uma senhorita adquire peças de lingerie para fazer uma surpresa para o namorado e, depois de usá-las uma vez, devolve o produto sob um pretexto qualquer.
Há também inúmeras ações na Justiça de consumidores que pleiteiam indenização por danos morais, alegando-se constrangidos devido ao acionamento indevido do alarme antifurto de alguma loja. Ou pessoas que criticam o Procon por proteger as empresas, quando aparece um preço errado na internet. Um exemplo: um televisor que normalmente custa R$ 3 mil num belo dia é anunciado no site do fornecedor a R$ 30. O consumidor compra e ainda reclama quando vê que a transação foi cancelada. Um pouco de bom senso não faz mal a ninguém. Atitudes como essa não contribuem em nada para o equilíbrio dessa delicada relação.
O código definitivamente não defenderá o consumidor em casos como esses. Mas está aí para resolver uma infinidade de outros problemas.