Postado em
Os sinos tocam em ritmo de festejo
Iphan declara arte sineira patrimônio imaterial
FRANCISCO LUIZ NOEL
|
Na torre da igreja barroca, o sineiro faz o instrumento dobrar três vezes, inclinando-o e soltando-o em direção ao badalo, e repica uma pancada no bronze para anunciar a morte de um irmão de fé. O aviso é de dois dobres e um repique se o enterro é de mulher e vira uma sequência de repiques se o caixão leva criança sem pecado. Quando morre um papa, soam 14 sisudas badaladas de hora em hora, mas, no Domingo de Páscoa, a torre quase vem abaixo no festejo da ressurreição de Jesus. Das dores e alegrias aos eventos da religião, incluindo missas, festas e procissões, os sinos anunciam de tudo na Minas Gerais histórica, pontuando a vida terrena nos 365 dias do ano.
Mais de dois séculos e meio após o apogeu do ciclo do ouro, que espalhou povoações e igrejas à custa do braço escravo nas terras mineiras, a linguagem dos sinos continua inseparável do dia a dia religioso e profano de São João del Rei e outras cidades históricas. Seus toques de muitos ritmos e afinações compõem o mais novo acervo cultural reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde dezembro, a arte dos sineiros é patrimônio imaterial do Brasil, a exemplo de manifestações populares como o paraense Círio de Nazaré, a pernambucana Feira de Caruaru e o samba de roda da Bahia.
A escalada da arte sineira rumo ao Livro de Registro de Celebrações do Iphan começou em 2001, a pedido da Secretaria de Cultura do estado de Minas. A demanda pelo reconhecimento oficial, que amplia a visibilidade das tradições culturais e abre caminho para o apoio a sua preservação, partira de sineiros e outros moradores sanjoanenses. A cidade conta com 31 sinos nas igrejas históricas do centro e mais de 50 sineiros, incluídos veteranos e aprendizes. Seja para fatos marcantes da vida diária, seja para eventos do calendário litúrgico, os sanjoanenses usam pelo menos 27 toques diferentes – alguns inspirados em ritmos da tradição afro-brasileira, como os conhecidos como batucada e batuquinho.
Linguagem centenária
“O grande mérito da iniciativa do Iphan foi dar reconhecimento a uma camada social que até então não era considerada. A medida corresponde a uma importante mudança de postura, porque antigamente só tombávamos grandes monumentos”, afirma o historiador Jairo Braga Machado, diretor do escritório local do instituto. “Os sinos são instrumentos nas mãos dos sineiros – muitos deles, meninos simples da periferia, que deixam suas marcas sonoras pela cidade. Todo sanjoanense tem orgulho dessa linguagem centenária, que faz parte de nossa identidade cultural, de nossa alma. Os sinos são arautos de bronze que, do alto das torres, estabelecem diálogo com a velha cidade barroca.”
A ascendência de São João del Rei sobre o mundo dos sinos em Minas é resultado da convergência de vários fatores. Um deles, destaca Jairo, está relacionado à condição de primeira cidade tombada pelo Iphan, em 1938, por ter preservado rico acervo arquitetônico do século 18. O lugar foi sede da comarca do Rio das Mortes, uma das mais importantes no tempo da mineração, reunindo grande número de escravos africanos, e no século seguinte polarizou a remessa de víveres da região ao mercado do Rio de Janeiro. “A preservação do patrimônio material contribuiu para a manutenção do imaterial”, assinala o historiador.
O enraizamento do catolicismo ao estilo antigo em todas as camadas da população teve influência decisiva na permanência dos toques dos sinos como elemento de uma religiosidade que conserva traços da arte colonial. “São João é barroca por excelência”, diz Jairo Braga. “Além do mais, ficou alheia a transformações do Concílio Vaticano II, que aboliu rituais tradicionais da liturgia católica.” Uma das marcas do catolicismo local é a manutenção de igrejas e velhos ritos por irmandades leigas, como a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a mais antiga de Minas, a do Santíssimo Sacramento e as ordens terceiras de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo.
Polifonia
Não é sem motivo que as torres do principal templo dos católicos sanjoanenses, a setecentista Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, enchem os olhos dos sineiros do lugar e de cidades vizinhas. A matriz do Pilar tem nada menos que sete sinos – um recorde no país. Na torre direita, o da frente é da Irmandade dos Passos, enquanto a da Boa Morte é dona dos outros dois – o menor dos quais tem o nome de João Evangelista. Na torre esquerda, o sino dianteiro, o mais importante da cidade, é da Irmandade do Santíssimo Sacramento; o do lado direito, da Irmandade das Almas, é conhecido como Daniel; o do fundo, da Boa Morte, é tocado em todos os dobres fúnebres e repiques festeiros; o outro, mais novo, é chamado de sino da Fábrica.
A regência de tantos bronzes é exercida há 19 anos por Fábio Adriano da Silva. Aos 37 anos, ele tem dois filhos e é contratado pela matriz. Até 2004, sua carteira profissional ostentava o ofício de sineiro, mas, na falta de chancela legal, a Justiça do Trabalho impôs que Fábio fosse registrado como ajudante de serviços gerais. Trabalhando diariamente nas torres com um auxiliar, a que se juntam mais de dez garotos voluntários nos fins de semana, Fábio deu sua primeira badalada na morte do presidente Tancredo Neves, em abril de 1985, quando a igreja montou um mutirão para fazer todos os sinos dobrarem várias vezes no dia. “Sino é informação para o povo. Se alguma coisa faz a gente tocar em hora diferente, as pessoas telefonam para saber o que houve”, conta o sineiro.
Para que os sinos ressoem em sua plenitude sonora, ecoando com o colorido da polifonia, uma torre deve ter três sinos – o grande, mais grave; o médio, conhecido como meião; e o pequeno, mais agudo. Com o trio, os sineiros podem, em grupo, executar seus dobres e repiques com destreza. Na linguagem falada pelos praticantes, o sino menor marca o ritmo, o médio pergunta e o grande responde. Associações entre séries de badaladas e frases da língua portuguesa são usuais entre sineiros, como onomatopeias, nas chamadas parlendas. Em Mariana, para fixar toques, a estudiosa Hebe Rola, professora emérita da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), ensina algumas às crianças, como a curta “Eu bem chamei / eu bem chamei” ou a prolongada “Ei! Vamos tomar banho / Ei! Vamos tomar banho / Ei! Vamos tomar banho / na lagoa do Pilar”.
Rivais eletrônicos
Os toques dos sinos de Minas foram registrados como patrimônio imaterial dos brasileiros em 3 de dezembro, quando o conselho consultivo do Iphan reuniu-se em São João del Rei para fechar os trabalhos de 2009. A decisão, aguardada com ansiedade, foi festejada pelos sineiros, que, emocionados, fizeram um carnaval nas torres. Além da cidade, outras oito compartilham o título de mais novo patrimônio do país – Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. A medida resultará em ações de proteção e de recuperação, já que há sinos rachados e sem badalo na região. Devido à dificuldade e ao custo de manutenção, eles vêm sendo desbancados por equipamentos eletrônicos em várias cidades de Minas e de outros estados.
É verdade que dispositivos automáticos para acionar sinos e dar descanso aos sineiros são conhecidos há séculos. Em Ouro Preto, há sistemas mecânicos em funcionamento nas igrejas de São Francisco de Paula e de Santa Ifigênia; nesta o mecanismo está instalado desde 1762, após ter sido importado de Portugal. Conhecido como “relógio” pelos padres e praticantes da arte dos sinos, o “sineiro automático” opera, em escala maior, como o dispositivo de corda dos antigos relógios de parede, mantido em atividade pelo peso de um objeto metálico em queda controlada, na ponta de uma corrente. No caso dos sinos, os badalos são acionados de hora em hora pelo peso de pedras com mais de cem quilos, elevadas uma vez por dia, para reinício do ciclo.
A praticidade da eletrônica tem sido, porém, um auxílio providencial para vigários e párocos menos sensíveis à causa do patrimônio cultural. Enquanto os sinos de bronze pesam centenas de quilos e ocupam torres de acesso nem sempre facilitado, as geringonças eletrônicas são leves, programáveis para tocar a qualquer hora e armazenam um sortido repertório de músicas sacras. No dossiê de estudo que embasou o tombamento da tradição sineira, o Iphan lamenta não só o advento dos sucedâneos tecnológicos – citando como exemplo a aposentadoria dos sinos numa igreja de Fortaleza – como a falta de uma disciplina específica no currículo dos seminários. “Os padres não entendem de sinos”, conclui o instituto.
Sineiros e padres nem sempre comungam, de fato, do mesmo apego à tradição. Em Ouro Preto, relata o jovem sineiro Danilo Henrique Teodoro, de 18 anos, há sinos às vezes relegados ao silêncio quando um religioso decide proibir o acesso às torres. “Tem padre que diz que fazemos muito barulho e que ficamos muito tempo tocando”, relata o rapaz. “Se ele está de mau humor, não deixa nem a gente subir.” Entre religiosos e sineiros, muitos católicos tendem a se inclinar pelos segundos, em nome do ritual do catolicismo à antiga. “A comunidade acha ruim quando não tem sino. Se não toca, tem gente que não vai à missa porque acha que não vai ter”, testemunha a avó de Danilo, Ivone Vilas Boas Teodoro, de 71 anos.
Estudante de supletivo e pintor de paredes, Danilo desponta como grande promessa entre os sineiros de Ouro Preto. A exemplo da maioria dos praticantes, ele apaixonou-se pelos sinos aos seis anos, levado por um tio sineiro a uma das torres da Igreja de Santa Ifigênia, no bairro Alto da Cruz, durante uma quermesse. “Passei a bater em poste de rua e a furar panelas de minha avó para colocar badalos de pau. Como era novinho, não dava para subir toda hora na torre”, lembra. Danilo logo se juntou aos “fominhas” da cidade – garotos que fazem a “via-sacra” de igreja em igreja, aos domingos, para tocar os sinos antes das missas. “Às vezes éramos 15. Uns oito se espremiam na torre, onde o certo é ter só três, e quem sobrava corria para outra igreja.”
Tradição medieval
O nome do instrumento de bronze que se associa de modo inseparável ao catolicismo, ensina o dossiê do Iphan, vem do latim signum, que quer dizer sinal. Forte ou fraco, agudo ou grave, afinado por uma das notas da escala musical, o som dos sinos é produzido pelo badalo, acessível por meio de uma corda manipulada pelo sineiro. Os registros mais remotos sobre toques de sinos em igreja datam do século 5, por obra do religioso Paolino de Nola, cuja diocese ficava na província de Nápoles, na região italiana da Campânia. Desse local, explicam os estudiosos, deriva a palavra “campana”, sinônimo de sino, e o correlato “campanário”, torre em que ele é instalado.
O catolicismo português codificou a fala dos sinos no século 18, no livro A Linguagem Sineira, editado pelo Cerimonial Seráfico da Ordem Franciscana, com a descrição e o significado de mais de 50 toques. No Brasil, de acordo com o dossiê do Iphan, os primeiros bronzes desembarcaram no século do Descobrimento, conforme atestam documentos sobre a chegada de sinos junto com o bispo dom Pero Sardinha, que assumiu em 1552 a diocese de Salvador. Na colônia, quando a atividade de fundição era exercida somente com autorização da Coroa, os primeiros sinos foram produzidos em 1589 na metalúrgica do português Afonso Sardinha, em terras do atual município paulista de Iperó.
Para formular um plano de salvaguarda dedicado ao mundo dos sinos, a superintendência estadual do Iphan começa a realizar encontros com os sineiros nas nove cidades. A iniciativa vai permitir ao instituto aprofundar as questões levantadas durante a elaboração do dossiê que fundamentou a decisão tomada no fim de 2009. Na pauta das reuniões locais, estão temas como a conservação dos bronzes e das torres, a documentação dos toques e ofícios sineiros, o incentivo à prática cultural e a transmissão de seus saberes. O Iphan encerrará o diálogo com um seminário regional para consolidar as diretrizes e ações do plano, a ser posto em prática a partir de 2011.
Atração dos jovens
A exemplo de outras manifestações populares, a arte dos sinos precisa da juventude para seguir em frente. “Os jovens demonstram grande interesse pela atividade, em todas as cidades onde a tradição se mantém. Essa atitude não se associa diretamente, porém, à função comunicativa e religiosa dos toques, mas a sua dimensão lúdica”, diz a coordenadora de Patrimônio Imaterial do Iphan em Minas, Corina Moreira. “Sabemos que só isso não basta para garantir a continuidade do elo de transmissão desse saber. Por essa razão, o plano de salvaguarda deve garantir que os jovens se aproximem do ofício de sineiro, se apropriem dele e permaneçam nele.”
O ensino da teoria e da prática sineiras tem exemplo em Mariana. Na cidade, a tradição explode em sons no dia da padroeira, Nossa Senhora do Carmo, celebrado em 16 de julho, e nas festas de São Roque e São Francisco, em agosto e outubro. Desde 1987, a professora Hebe Rola realiza cursos sobre o tema em escolas e igrejas. “Muitas gerações passaram por minhas aulas”, orgulha-se. Os alunos são procedentes também de outros municípios e estados. Hebe adestra os aprendizes em igrejas como a de São Francisco de Assis, onde está sepultado o pintor Manuel da Costa Ataíde, um dos ícones do barroco mineiro.
“Cresci ouvindo os sinos da igreja de São Francisco e do Santuário de Nossa Senhora do Carmo e senti que essa linguagem estava desaparecendo”, explica a pesquisadora sua dedicação à tradição sineira em Mariana, onde há 13 igrejas históricas e mais de 20 sineiros. Para dar vida às aulas dadas a turmas de meninos e meninas a partir dos sete anos, Hebe mobiliza também músicos e historiadores, além de lançar mão de pequenos sinos, outros instrumentos e de seu livro infantil O Bem te Sino. “A união de ritmos musicais, apresentações sineiras e histórias, que facilitam a inserção no mundo infanto-juvenil, atrai a curiosidade das crianças”, assinala ela.
Além de comunicar ofícios religiosos do dia a dia e celebrar as datas católicas, os sineiros de Mariana continuam fiéis ao rito de anunciar as mortes na cidade. “Os toques de nascimento e casamento não são mais usados”, lamenta Hebe Rola. Nem por isso, ela destaca, o convívio com a sonoridade dos sinos deixa de compor a identidade local. “Para nós, é imprescindível preservá-los, pois fazem parte da vida da cidade e são instrumentos de comunicação muito democráticos”, diz.
Crendices e sineiras
A hegemonia masculina é histórica no mundo dos sinos, mas eles também são tangidos por mãos femininas. Aos 78 anos, com seis filhos, 15 netos e três bisnetos, Délcia Maria Soares foi uma das que desafiaram o reinado dos homens nas torres e as lendas marcadas pelo machismo – entre elas, a de que mulher que toca sino não casa e de que o contato do cabelo feminino racha o bronze. “Toquei sino durante 22 anos e só parei porque os médicos disseram que era bom não subir escada”, conta ela. Vizinha da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, no bairro Cabeças, em Ouro Preto, a sineira observa que as mulheres tendem a ficar longe dos sinos devido ao peso de alguns deles, como os grandes da Igreja Matriz do Pilar. “Os de Matosinhos, menores, sempre puxei tranquilamente”, conta a sineira.
Os sinos também dobram pelo gosto da execução e da audição. Em São João del Rei, os sineiros travam “combates” anuais, entrincheirados nas torres de Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de Assis, no quarto fim de semana da Quaresma. “Na sexta-feira, Carmo comanda. O que fazem lá, temos de fazer igual no Pilar”, conta o sineiro Fábio Adriano. No sábado, cabe à turma do Pilar desafiar a de São Francisco, que comanda no domingo, em disputa com os outros dois grupos. “Nem precisa de juiz”, explica o sineiro do Pilar. “Nós mesmos sabemos quem ganhou.” Por ordem do bispo, cada “combate” dura 30 minutos, às 12, 15 e 18 horas. “Antigamente o pessoal abusava e tocava o dia inteirinho”, lembra Fábio. “O povo não aguenta.”