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O pão de cada dia, símbolo de alimento

Principal derivado do trigo ainda é pouco consumido no Brasil

CEZAR MARTINS


Foto: Divulgação

Em Roma, ele era dado de graça ao povo pelos governantes como uma das estratégias para conseguir manter o domínio político sobre o maior império da Antiguidade. Há dois milênios, segundo a tradição da religião cristã, Jesus deu um pedaço dele a cada apóstolo durante sua última refeição antes de ser crucificado e disse, de modo simbólico: “Comam, esse é o meu corpo”. No final do século 18, a falta dele e a infeliz tirada da rainha Maria Antonieta, que supostamente teria sugerido aos franceses famintos trocarem-no por caros brioches, ajudaram a fazer eclodir a Revolução Francesa, uma das revoltas mais sangrentas de que há registro. O pão, além de coadjuvante na história da humanidade, é um componente fundamental na alimentação por ser rica fonte de carboidratos, responsáveis por dar ao corpo a energia necessária para o funcionamento das células. Tanto é que a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, na sigla em inglês) recomenda a cada pessoa comer no mínimo 50 quilos por ano. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) vai além, indicando um consumo anual de 60 quilos, ou uma porção diária de pelo menos três pãezinhos franceses, médias ou cacetinhos, nomes pelos quais é conhecido o tipo mais vendido no Brasil.

A nutricionista Sueli Rosa Gama afirma que entre 40% e 60% dos nutrientes existentes nos pães são carboidratos e, por isso, os números da OMS estão corretos. “Essa é a fonte de energia mais rápida que existe para o homem, essencial para evitar distúrbios alimentares e fadiga física e mental”, ressalta a especialista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. O alimento complementa ainda a dose diária de lipídios e proteínas de que o organismo necessita, além de ser rico em sódio, cálcio, fósforo e potássio.

Independentemente dos números, o fato é que o consumo ainda é pequeno no país, de acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (Abip). Os estados das regiões sul e sudeste têm um índice mais elevado, perto de 45 e 40 quilos anuais por pessoa respectivamente. No norte, porém, são aproximadamente 10 quilos apenas. O nordeste, com 22 quilos, e o centro-oeste, com 30, ficam no meio-termo. Os cálculos são feitos com base na quantidade de farinha de trigo adquirida pelo setor de panificação – não entra na conta o montante vendido a fabricantes de massas e biscoitos.

Uma das razões para o déficit no país é o elevado preço do pão, vendido por peso desde 2006 por conta de uma portaria do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). O valor médio pago na cidade de São Paulo é de R$ 7 por quilo. Nas outras capitais, ele difere pouco, de acordo com levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Uma família de quatro pessoas que quiser seguir as recomendações da OMS gastará quase R$ 1,7 mil em um ano, mais de três salários mínimos, um impacto significativo na renda de boa parte da população.

O fato de o Brasil ainda precisar importar metade do trigo que consome é parte da causa do problema. Todos os anos, o país necessita de 10,6 milhões de toneladas do cereal para a produção de farinha, farelo para ração animal e estocagem de sementes para a próxima safra. Apenas 5 milhões são colhidas aqui – e quase 90% disso nos estados da região sul, o que contribui para o encarecimento do produto nas regiões norte e nordeste. A Argentina é responsável por fornecer a maior parte da parcela importada, e o restante, cerca de um décimo, é complementado por Estados Unidos, Canadá e Rússia principalmente.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento defende que o país incentive o aumento da produção interna, pois há benefícios para quem investe nessa cultura. “Temos 180 mil produtores de trigo que, ao produzir no inverno, geram empregos e conseguem se capitalizar para o cultivo [nos meses quentes] de soja e milho”, argumentou o então ministro Reinhold Stephanes, em Brasília, no início do ano, durante evento de apresentação do levantamento da safra de grãos entre 2009 e 2010. Segundo técnicos do Ministério da Fazenda, no entanto, importar trigo, ainda a opção mais barata, ajuda a manter o preço do pão estável. Como contra-argumento a essa ideia, Stephanes apresentou um gráfico que mostra que, enquanto a tonelada do cereal caiu de R$ 750 em 2007 para R$ 450 neste ano, o quilo do produto final continuou praticamente o mesmo. “O trigo representa entre 10% e 16% do custo do pãozinho. Alguém está ganhando dinheiro, e não é o produtor”, alertou.

No começo do ano, a notícia de que o Brasil sobretaxaria as importações de trigo americano, como retaliação aos subsídios que o governo daquele país concede aos produtores de algodão, serviu para alimentar a polêmica. Um dos argumentos contrários à decisão da Câmara de Comércio Exterior era que o aumento da alíquota de 10% para 30% elevaria também o preço do pão, mas Stephanes classificou a ameaça como “terrorismo” de especuladores.

Além da dependência de importações de matéria-prima, o ramo da panificação convive com um desafio comum a todos os outros da economia brasileira, a alta tributação – os impostos são responsáveis por quase 8% da composição do preço do pão. Em fevereiro, os diretores das associações que representam o setor reuniram-se com deputados e senadores para expor a ideia de isenção fiscal total para o produto. “Fizemos um café da manhã em Brasília e apresentamos essa proposta, que pode ajudar a baixar o preço para o consumidor final. O pão é um alimento da cesta básica e deveria contar com esse subsídio”, justifica Alexandre Pereira Silva, presidente da Abip.

Mudança cultural

Antero José Pereira, presidente do Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sindipan), concorda que uma produção de trigo majoritariamente nacional e a isenção tributária contribuiriam para o barateamento, mas ressalva que o fator econômico não é o único a justificar o baixo consumo brasileiro. “Se a renda fosse o único motivo, a Argentina e o Chile não teriam os índices que têm”, argumenta. Segundo dados da Union Internationale de la Boulangerie et de la Boulangerie-Pâtisserie e da Confederación Interamericana de la Industria del Pan, utilizados pelo Sindipan em suas pesquisas, os chilenos apresentam um consumo de aproximadamente 98 quilos de pão por pessoa ao ano. Já os argentinos comem, em média, 73 quilos e os uruguaios, 51. “É também uma questão cultural. No nordeste, a farinha de mandioca está mais ligada aos costumes locais e é bastante utilizada em substituição ao trigo. O aumento da renda das classes mais baixas tem causado elevação do consumo de pão, mas é preciso fazer campanhas educativas e incentivar a compra nas padarias”, destaca Pereira.

Os números ajudam a corroborar a tese de que, nos estados em que a colonização de origem portuguesa, italiana e alemã foi mais influente, o consumo é mais elevado. Em São Paulo, região em que a colônia italiana e a portuguesa se fazem mais presentes, estão 12 mil das 52 mil padarias existentes no Brasil – o sudeste concentra quase 43% dos estabelecimentos do país. Na capital paulista são consumidos 15 milhões de pãezinhos diariamente. “Se entro num restaurante e não me oferecem uma cesta de pães para acompanhar a refeição, levanto e vou embora. Em outras capitais esse não é o costume”, exemplifica o presidente do Sindipan. O antropólogo Gilberto Freyre, em seu livro Casa-Grande e Senzala, já argumentava que o pão de trigo no Brasil era artigo raro e de luxo até o século 19 e, por isso, a mandioca e sua farinha, fabricada ainda hoje em cidades do interior com a mesma técnica dos índios, se constituíram como a base da alimentação brasileira. O biju de tapioca e o pirão de farinha de mandioca eram os alimentos mais comuns há dois séculos. No entanto, é impossível deixar de considerar a tendência natural que o estado bandeirante, dono da maior economia e da maior população urbana do país, tem para concentrar padarias.

Na opinião de Sueli Gama, da Fiocruz, é preciso levar em conta também a “mania light” que se disseminou na sociedade brasileira moderna. Baseada na experiência do atendimento à população, a nutricionista afirma que existe uma compulsão a substituir os pães por biscoitos que prometem ajudar a emagrecer, além de trazer benefícios para a saúde. “As pessoas passaram a ver o pão como o grande vilão da obesidade, mas isso não é verdade. Diferentemente dos biscoitos, é um alimento feito de maneira simples, sem conservantes e outros produtos adicionados que provocam o aumento de peso. O que engorda é a vida sedentária”, afirma.

Algumas ações de marketing e campanhas publicitárias encabeçadas pela Abip têm contribuído para a elevação do consumo nos últimos anos. Em 1984, o brasileiro comia em média 19 quilos de pão por ano – em compensação, desde 2000, quando a taxa chegou a 27 quilos, o aumento tem sido lento. Uma das estratégias foi patrocinar atletas brasileiros, como a ginasta Daniele Hypólito e a surfista Tita Tavares, para associar a imagem do pão a saúde e bem-estar. Outra iniciativa foi a instalação de uma padaria dentro da vila em que ficaram hospedados os atletas que participaram dos Jogos Pan-Americanos, em 2007, na cidade do Rio de Janeiro, onde foram servidos quase 2 milhões de pãezinhos durante os 18 dias do evento.

Apesar do crescimento lento, Alexandre Silva comemora a curva ascendente e afirma que uma das metas da Abip é, até 2015, elevar em mais 10 quilos o consumo per capita nacional. Ele diz que, além dos benefícios à saúde, o crescimento do mercado vai gerar mais empregos diretos. “O segmento da panificação tem a capacidade de absorver mão de obra com uma velocidade muito grande. Qualquer pequena ampliação em uma padaria representa a necessidade de contratar mais padeiros, ajudantes. O empresário também precisa se reciclar, porque não há como aumentar o consumo com estabelecimentos mal arrumados, que não atraiam o consumidor.” O setor, que atualmente é responsável por cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, movimentou R$ 50 bilhões em 2009, apesar da crise, e gerou 10 mil novos postos de trabalho.

De geração a geração

O aumento do consumo de pão no Brasil também será maior a partir do momento em que mais opções de produtos, além do tradicional pão francês, forem oferecidas aos consumidores, acreditam os diretores da Abip e do Sindipan. Dessa forma, será possível atingir um público mais exigente que vive nas metrópoles e atraí-lo para as panificadoras. O desafio está em fazer com que locais especializados nesse segmento sejam mais acessíveis do que os existentes nos bairros nobres das principais capitais.

Aos 70 anos, Clécia Casagrande é dona de uma loja especializada no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, cidade para a qual se mudou depois de casar. Ela admite que a maioria de sua clientela já conhece as massas e misturas especiais que prepara e que os novos frequentadores se devem ao boca a boca na região, uma das mais valorizadas do Rio de Janeiro.

Nascida em Porto Alegre, Clécia cresceu sentindo o aroma dos pães que seus avós italianos faziam artesanalmente em um sítio “sem geladeira nem luz, a 18 léguas de Caxias do Sul”. A saudade do ritual das mulheres reunidas em torno do forno e do cheiro perfumado que tomava conta da casa sempre aos domingos a fez se tornar uma especialista na fabricação de pães. “Eu queria o pão da minha avó, mas não conseguia encontrar. Isso me levou à profissionalização na década de 1980. Fui para a França fazer cursos e entendi como eram feitos os pães naquela época e os fundamentos da fabricação moderna. O pão, para mim, significa um lazer e um prazer enormes”, afirma. A tradição familiar ficou esquecida por uma geração, até que Clécia resolveu abdicar de uma carreira de 25 anos no ramo de confecção de roupas para entrar de vez no da panificação. Em Paris, andando pela rua, sentiu o mesmo cheiro que marcara sua infância e decidiu conhecer aquela pequena boulangerie (padaria, em francês). “Quando entrei, os homens estavam em torno da mesa amassando a massa artesanalmente, do jeito que eu via minha avó fazer. Era tudo igual e fiquei encantada.”

Os conhecimentos de Clécia, agora, já estão nas mãos de sua filha Elen, que decidiu acompanhar a empreitada culinária da mãe após 16 anos trabalhando como designer de moda. Autora do livro Pão – Alimento do Corpo e da Alma, lançado em 2009, ela conta que também aprendeu a respeitar e cultivar as tradições familiares. “Hoje vejo a história se repetindo através de meus filhos, Christian e Catherine. Ela ama fazer pães, biscoitos, pizzas e decoração de bolos, e até já tem uma especialidade, geleia de morangos”, descreve a chef, com uma pitada generosa de corujice materna.


Uma história de muitos séculos

Ninguém sabe ao certo onde o pão surgiu, mas sua invenção está intimamente relacionada ao momento em que o homem descobriu como cultivar e preservar o trigo, porque é com a farinha dele que se produz o melhor tipo de massa capaz de fermentar. A maioria dos pesquisadores acredita que o primeiro pão fermentado surgiu há cerca de 6 mil anos no Egito, onde já se sabia como controlar o processo graças à fabricação da cerveja. O verdadeiro berço, porém, pode ter sido a Etiópia, local mais provável para o desenvolvimento das primeiras espécies de trigo, segundo pesquisas realizadas no século passado pelo botânico russo Nicolai Vavilov. Só depois de alguns séculos é que uma variedade ainda rústica do trigo – diferente da cultivada hoje – chegou aos férteis vales do rio Nilo e permitiu aos súditos dos faraós descobrir um alimento nutritivo, leve e saboroso.

O pão aparece no relato de um dos eventos mais importantes da história da religião judaica, a fuga do povo hebreu, guiado por Moisés, do Egito. Segundo a tradição, não houve tempo para esperar a fermentação da massa, que deu origem então a um alimento de formato achatado. É esse o chamado pão ázimo, comido na celebração do Pessach, a páscoa judaica, quando se relembra a libertação dos antigos escravos.

Entre os egípcios, o pão era um dos traços culturais e de união do império, e os romanos assimilaram esse aspecto quando chegaram à África. Era comum, por exemplo, distribuírem pães aos soldados como complemento do soldo, um costume que se estendeu até a Idade Média. Em Roma, a importância dos fabricantes de pão aumentou progressivamente, até que surgiram associações profissionais de padeiros cuja influência podia ser determinante até mesmo em eleições. Os imperadores passaram a agregar os panificadores ao corpo de funcionários públicos, de modo a garantir uma produção regular destinada à população. Associando a distribuição gratuita a espetáculos sangrentos de duelo entre gladiadores, o governo criou uma política de “pão e circo” que ajudou a diminuir tensões sociais e ambições partidárias de mudança do status quo.

Após a queda do Império Romano, a fabricação de pães voltou a ser uma tarefa doméstica, cercada de dificuldades. O uso dos fornos e moinhos de tração animal para a produção de farinha era regulado pelos senhores feudais, e a maioria da população comia pães sem fermentação, achatados, parecidos com o pão ázimo. No século 16, o crescimento da economia da França permitiu ao país introduzir métodos mais modernos e alcançar a primazia mundial.

As primeiras sementes de trigo aportaram no continente americano junto com as caravelas capitaneadas por Cristóvão Colombo. Introduzidos no México por volta de 1500, os grãos foram levados ao Arizona e à Califórnia por missionários religiosos. No Brasil, chegaram logo à capitania de São Vicente e foram cultivados depois também em Pernambuco, Ceará, Paraíba e Maranhão. Impulsionada pelas técnicas de cultivo de colonos açorianos, a cultura se fortaleceu no país, que foi o primeiro da América a exportar trigo para a Europa. No século 18, boa parte do que era consumido em Portugal provinha de terras brasileiras.

 

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