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O baú de Joel
JORGE LEÃO TEIXEIRA
No dia 5 de fevereiro de 1937, o jovem Joel Silveira embarcou no "Itanagé", em Aracaju, rumo ao Rio de Janeiro, disposto a fazer carreira jornalística e literária na então capital federal. Partia rompido com o pai, levando duas notas de 500 mil-réis na carteira, presente da mãe, uma carta de recomendação que pouco lhe valeria e grandes esperanças no futuro.
Prêmio Machado de Assis 1998 da Academia Brasileira de Letras, Na fogueira (Editora Mauad, 655 páginas), primeiro volume das memórias de Joel, cobre o período da descoberta e conquista do Rio, nos anos de 1937 e 1938, com um singular entrelaçamento dos fatos políticos e literários com a geografia humana e urbana da cidade daquela época. Conforme o autor reconhece, muitos acontecimentos aparentemente banais guardaram para ele um valor que impediu seu esquecimento, alegrando-o ou entristecendo-o quando os recorda.
O terreno foi conquistado a duras penas, primeiro numa revista ferroviária. Depois, graças a uma carta aberta para Álvaro Moreyra, foram-lhe franqueadas as portas do "Dom Casmurro", semanário dirigido pela figura pitoresca de Brício de Abreu. A redação ficava na agitada Cinelândia, a dois passos do Senado, do Supremo Tribunal e do Teatro Municipal.
Ali conheceu gente já consagrada nas letras, como Murilo Mendes, Marques Rebelo, Joracy Camargo e Oswald de Andrade, assim como "os meninos do Brício", integrantes da redação ou seus colaboradores e freqüentadores: Dante Costa, Carlos Lacerda, Moacir Werneck de Castro, Odylo Costa Filho, Franklin de Oliveira e a poetisa Ione Stamato, entre outros. (Ione certa vez emprestou seu anel de brilhantes para que Brício o penhorasse e pagasse dez contos de réis que devia na praça.)
"Dom Casmurro" era divertido mas não passava de um bico incerto. Joel conseguiu colaborar em "Vamos Ler", revista onde Raymundo Magalhães Jr. e Clovis Ramalhete reconheceram imediatamente seu talento, dando-lhe a oportunidade para entrevistar alguns monstros sagrados do mundo literário. Graciliano Ramos, após muitas evasivas, confiou-lhe um texto que ganharia fama: sua autobiografia, curta e seca, pessimista porém escrita em estilo primoroso, que assim terminava: "Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo agora. Aqui fiz meu último livro, história mesquinha – um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos. Certamente não ficarei na cidade grande. Projetos não tenho. Estou no fim da vida, se é que a isto se pode dar o nome de vida. Instrução quase nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura, moderada, foi obtida em almanaque".
Joracy Camargo também se encanta com Joel e passa não só a ajudá-lo como a recebê-lo em sua alegre casa. O moço é exímio datilógrafo e Joracy lhe confere vários trabalhos. Apresenta-o, inclusive, a Procópio Ferreira, intérprete do grande sucesso teatral de Joracy, Deus lhe pague, deixando Joel deslumbrado com as primeiras edições luxuosamente encadernadas da biblioteca do ator, muitas delas adquiridas mais tarde por José Mindlin. Joracy chega até a colocar Joel como discotecário de rua, em plantão na Avenida Rio Branco, no carnaval de 1938, para reforçar seu magro orçamento.
Entre fevereiro e novembro de 1937, Joel morou em diversas pensões baratas no centro do Rio e no bairro do Catete. No dia 10 de novembro acordou cedo para assistir a uma aula na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, que encontrou fechada. Um colega informou-lhe que Getúlio dera um golpe e o Brasil estava sob a ditadura.
As trevas
A bordo de um bonde, Joel partiu para a Cinelândia. Exceto pelas tropas enfileiradas no Palácio do Catete e diante do Senado, era como se nada tivesse acontecido, para sua indignação e dos companheiros do "Dom Casmurro". Ele então se lembra da visita que havia feito com um grupo de estudantes a Jorge Amado, um ano antes, na pequena Estância, em Sergipe, no curso da qual o escritor garantira que Vargas estava com os dias contados, acrescentando: "Ou ele se integra ao regime democrático ou será chutado pelo povo". Um péssimo profeta...
A censura age para silenciar a imprensa, endeusar o ditador e gabar as virtudes do novo regime. Estrela do "Dom Casmurro", valente e de espírito rebelde, Murilo Mendes, excelente poeta e prosador – sempre elegante nos seus jaquetões escuros, alto e magro –, de há muito antecipava o golpe e escrevia ferozes artigos contra o integralismo.
Murilo vai à redação de "Dom Casmurro" e comunica que viajará para as cidades barrocas de Minas Gerais, onde permanecerá algum tempo. E redige uma nota em que explica que, por motivo de viagem, interromperá sua colaboração, gesto cavalheiresco para evitar represálias contra o semanário. Após apertar as mãos de todos os redatores, pára na porta, chapéu já na cabeça, anunciando, apocalíptico, em voz sonora e pausada: "São as trevas, meus caros! São as trevas!" Trevas que se prolongariam durante quase oito anos.
No ano de 1937 tudo estava acontecendo a Joel. Em oito meses ele vivera mais do que em todos os 18 anos anteriores. As coisas corriam como dizia o velho ditado: "Quem está na fogueira é para se queimar e quem está na chuva é para se molhar".
Uma visão intimista – é assim que Joel define o roteiro e o tom que imprimiu ao primeiro volume de suas memórias, traçando um retrato íntimo do seu comportamento e da vida daqueles personagens que a metrópole transforma em seres anônimos, pessoas que o jargão jornalístico costuma chamar ora de populares, ora de transeuntes, ora simplesmente de curiosos.
Pelas páginas escritas com a preocupação de manter a linguagem oral e da época, desfilam modestos funcionários, donos e donas de pensão, tipos excêntricos ou desgastados pela rotina de uma vida sofrida, provincianos tentando a mesma aventura do autor, misteriosos conspiradores. Com um irmão mais velho na militância do Partido Comunista, em São Paulo, ele mesmo um simpatizante do PCB, Joel se viu promovido a leva-e-trás de mensagens e pacotes, a fim de atender ao mano mais velho, envolvendo-se por vezes em episódios tragicômicos, perdido em ruas de subúrbios, lidando com gente de toda espécie.
Moço pobre sempre tem fome e pouco dinheiro para matá-la. A fome de Joel leva o leitor a botequins, casas de pasto mambembes e até a restaurantes melhores, conforme o bolso permitia. Itinerário que incluía o "automático", imitação do self service americano à base de moedas para fornecimento de sanduíches e pratos frios, o qual premiava de quando em quando os afortunados que apertavam o botão, sem colocar as moedas, recebendo o que comer sem gastar, por obra de defeitos no equipamento.
Os moços que chegavam ao Rio também tinham fome de sexo, e Joel não fugiu a esse figurino. Pelo contrário, seu apetite era grande. Entre as mulheres que o saciaram destacam-se duas figuras, como a fabulosa dona Natalina, cuja sensualidade ele iria descobrir e explorar numa relação a princípio quase incestuosa, tais os desvelos maternais com que ela o tratava, mas que depois evoluiria num crescendo de paixão carnal.
A outra, Zenaide, moreninha desenvolta, conhecida como Miss Marrecas – sua mãe era dona de uma pensão na Rua das Marrecas, fronteira ao Passeio Público – é uma presença que perpassa toda a segunda parte do livro. Na derradeira página, Zenaide, com sorriso triste no rosto ansioso, acena de uma janela para Joel, que alegando doença da mãe viajará para Aracaju, prometendo, contudo, que voltará breve. Sorriso e ansiedade de quem pressente uma piedosa mentira no ar, a qual também constrange o envergonhado viajante. Joel, em verdade, volta a Sergipe para casar-se com uma paciente noiva que lá deixou, Iracema, sua esposa até hoje.
O que acontecerá depois será narrado no segundo volume das memórias de Joel Silveira, Os anos sujos, sobre o período entre 1939 e 1945, cujo lançamento está previsto para o segundo semestre do próximo ano.
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