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O mal do milênio
CECÍLIA ZIONI (Colaborou Salete Silva)
O comércio entre os povos é tão antigo quanto a história da humanidade. Foi o grande responsável pelos descobrimentos, pela integração entre as nações e mais modernamente pela globalização. E também por inúmeras escaramuças, guerras e retaliações, na disputa por mercados cativos ou emergentes.
Nos dias atuais, a concorrência entre os mercados acentuou-se significativamente, o que acirrou profundamente a competição. Felizmente, os desentendimentos não são mais resolvidos por meio de guerras, que foram, no entanto, substituídas por trincheiras burocráticas e outros movimentos de defesa, na tentativa de proteger os produtores internos contra a agressividade mercantil vinda de todos os cantos do planeta.
É o protecionismo, um tema sempre presente nos encontros internacionais de negócios, alvo de debates e questionamentos intermináveis, em que o consenso, embora pareça ao alcance das mãos, na prática sempre se torna distante.
Nessa discussão há, felizmente, opiniões construtivas, como a de Alan Greenspan, o todo-poderoso e internacionalmente respeitado presidente do Federal Bank. Para ele, o protecionismo comercial é "pouco inteligente" e "autodestrutivo".
Barreiras ao livre comércio, processos antidumping e imposição de tarifas compensatórias são, diz ele, na maior parte dos casos, "meros disfarces da incompetência e tentativas para inibir a concorrência". Em vez de ações equivocadas para proteger o emprego local, recomenda, o que se deveria fazer é garantir maior fluxo internacional de mercadorias, para estimular o avanço da tecnologia e a produtividade do trabalhador.
"Protecionismo só piora o nível de vida em todo o mundo", conclui Greenspan, nas vestes de profeta dos novos tempos, neste período tomado por dois importantes encontros internacionais cuja agenda é discutir o livre comércio. Depois da cúpula de 48 chefes de Estado e de governo da União Européia (UE), América Latina e Caribe, em fins de junho, no Rio de Janeiro, chamada Cimeira ALC-UE, em dezembro vão se reunir 134 chefes de Estado dos países da Organização Mundial do Comércio, para a Rodada do Milênio.
A palavra "protecionismo" engloba um enorme conjunto de medidas que confrontam diretamente os objetivos de livre comércio fixados como prioritários nas conversações internacionais do pós-guerra.
O comércio mundial é estimado em US$ 5,3 trilhões. Boa parte desse valor deve-se ao setor agrícola – só em 1998 foram US$ 580 bilhões. A maior fatia dessa parte do bolo, mais da metade, fica com a Europa (38,3% do total) e os Estados Unidos (13,3%). A do Brasil é de apenas 3%, correspondente a US$ 18 bilhões, valor pouco representativo ante o total, mas importante para o país, pois equivale a 30% de todos os embarques nacionais – que, entretanto, não chegam a 1% do comércio global.
Esses números mostram por que as políticas adotadas em relação ao setor agrícola e ao protecionismo são vitais para que o Brasil, como outros países ditos emergentes, avance no mercado, gerando trabalho e renda para a necessária retomada de seu crescimento.
Os 16 países que compõem a União Européia investem por ano US$ 200 bilhões nessas políticas, dos quais US$ 120 bilhões diretamente na área agrícola, com quase 300 diferentes tipos de proteção ou subsídio. Os 29 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em que praticamente está toda a UE, empregam US$ 335 bilhões em medidas protecionistas. O Japão, que tem meia centena de acordos de proteção agrícola, gasta US$ 40 bilhões, e os Estados Unidos, US$ 59 bilhões.
É bom comparar esses números com a previsão do total das exportações brasileiras para 1999, computadas as vantagens da nova política cambial: US$ 21 bilhões. Ou seja, metade do menor orçamento protecionista.
A Europa está jogando dinheiro fora com a Política Agrícola Comum (PAC), diz o ex-chanceler britânico Tristan Garel-Jones. "Algo destinado a acabar", acrescenta o chanceler alemão Gerhard Schroeder, ou, como acentua seu colega argentino Guido di Tella, "um disparate".
Se ninguém, pelo menos oficialmente, defende o protecionismo e já se fixam prazos para ele terminar, nem por isso o sistema dá sinais de arrefecimento. Nem seria nada simples: o maior sistema de subvenções à produção na Europa, a PAC, existe desde 1962 e, completados 37 anos, custa U$ 45 bilhões/ano, metade do orçamento da UE. Seu objetivo: aumentar a produtividade, garantir o nível de vida no campo e oferecer alimentos a preço razoável.
Um estudo feito nos Estados Unidos (outro campeão na concessão de subsídios) aponta desacertos da política do concorrente: menos de 8 milhões dos 370 milhões de europeus trabalham no campo, e sua produtividade equivale a até um sétimo da dos demais trabalhadores. Ou seja, o dinheiro da PAC, se visava garantir produtividade, está mesmo indo para o ralo. Por essas e outras razões, é tão comum a TV mostrar manifestações nos Champs-Elysées, tomados por tratores de agricultores franceses em protesto por algum prejuízo presente ou futuro.
Sem dúvida, é um bom colchão para quem trabalha no campo, mas quem paga a conta começa a achar que ela está alta. Dentre os mais influentes países da UE, só a Alemanha se manifesta claramente contra essa política, defendida principalmente pela França, cujo contingente rural é o maior entre os beneficiários da PAC.
Além da promessa de lutar contra protecionismos, feita por Schroeder a Fernando Henrique Cardoso, no começo do ano, Hans-Olaf Henkel, presidente da Confederação da Indústria Alemã, já definiu a questão: "A Europa tem de liberalizar sua agricultura, pois não podemos ficar reféns dela por muito tempo. Os contribuintes europeus estão fartos de pagar imposto para sustentar fazendeiros e não se beneficiar de importações mais livres de produtos agrícolas de outras partes do mundo". Segundo ele, acabou a disposição de toda a indústria, às voltas com desemprego crescente (11,5%), de subvencionar menos de 4% da força de trabalho na UE.
A Grã-Bretanha segue discretamente a linha alemã. Brian Wilson, ministro de Indústria e Comércio, afirma o compromisso de eliminar tributos sobre importação de produtos de países menos desenvolvidos, mas adianta que todas as decisões européias devem ser tomadas por consenso.
Aí é que a coisa emperra, pois, além da França, outros países europeus temem a concorrência de produtos mais baratos do leste do continente, além dos sul-americanos, já considerados excessivamente competitivos.
O foco dos debates está portanto na questão agrícola, embora a política protecionista não se esgote nesse item. Ao contrário, segundo estudo do então embaixador brasileiro em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, a questão é muito grave: além de ser enorme o arsenal de leis que protegem a agricultura, a indústria e os serviços norte-americanos, é também poderosíssimo o que ele chama de "jogo político do protecionismo". A embaixada fez um amplo estudo sobre essas proteções, e Flecha de Lima desenha o quadro, pelo qual se vê o tamanho da encrenca que o Brasil deve enfrentar se quiser, realmente, abrir esse mercado. "Os segmentos da economia norte-americana que, por razões diversas, não podem ou não desejam tornar-se mais produtivos e competitivos, ou as regiões do país diretamente interessadas na prosperidade de algum setor econômico, valem-se de seu peso eleitoral e parlamentar para bloquear, no Congresso, iniciativas que lhes pareçam prejudiciais." Ou seja, as que abram seu precioso mercado a produtos estrangeiros.
O x da questão, explica Flecha de Lima, está no fato de que é o Legislativo americano que formula a política comercial dos EUA, e não o Executivo. O governo adota, no dia-a-dia, os princípios e as estratégias negociadoras, mas é o Congresso que define a política. E isso torna legais e legítimas todas as pressões a favor do produtor e do trabalhador locais. Pode-se convencer Bill Clinton e Charlene Barshefsky, representante comercial dos EUA, muito mais facilmente que todo o Congresso.
É essa uma das origens da escalada tarifária, isto é, os impostos de importação são sempre mais altos para produtos elaborados, e não só nos EUA, como mostra a tabela desta página, apresentada por Gilman Rodrigues, presidente da Federação da Agricultura de Minas Gerais e membro do Fórum Permanente de Negociações Agrícolas Internacionais.
Não será fácil ganhar o jogo. Mas o importante é definir estratégias. Negociação de livre comércio entre a União Européia e o Mercosul só vai haver se for do tipo tudo ou nada: não se discutirá nada se algum ponto ficar obscuro e se a agricultura não for essencial, afirma Luiz Felipe Lampreia, ministro brasileiro de Relações Exteriores.
O Brasil só vai conseguir avanços importantes nas reuniões internacionais, como a de dezembro, se empresários brasileiros e dos demais países do Cone Sul apresentarem propostas com pontos comuns, observa o vice-presidente executivo da Associação de Empresas Brasileiras para a Integração no Mercosul (Adebim), Michel Alaby. Isso deve funcionar como firme suporte e apoio à posição diplomática que o chanceler Lampreia e Celso Lafer, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, já definiram.
"Devemos estar bem preparados e apresentar pontos comuns de discussão para negociar melhor na Rodada do Milênio e evitar episódios como os que já aconteceram em reuniões anteriores, em que o governo e os empresários brasileiros apresentaram dados completamente diferentes", alerta Alaby. Os empresários do Mercosul, na sua opinião, têm demonstrado algum despreparo para discutir comércio internacional. "Nem mesmo entre nós conseguimos nos entender", observa. Ele lembrou que se não tem havido consenso nem em relação às barreiras no Mercado Comum do Sul, mais difícil ainda, embora imperioso, vai ser chegar a um acordo em relação a subsídios e barreiras europeus e norte-americanos. Brigar isoladamente contra EUA e Europa é um mau negócio para os países do Mercosul, avalia o executivo. "Temos de levar uma bandeira do Mercosul." Falta, na sua opinião, para os latino-americanos a consciência de que em reuniões de comércio internacional sempre alguém perde e alguém ganha.
"Quando você cede, tem de exigir uma contrapartida", afirma Alaby. Foi o caso recente, em que o Brasil reabriu importações de trigo norte-americano (suspensas desde 1996 por problemas sanitários) barganhando a venda de frutas (maçã, limão, uva, mamão e manga).
No caso do Mercosul, e especialmente do Brasil, a plataforma tem de ser a exportação. Nos últimos quatro anos, governo e empresários brasileiros vêm dizendo que investir no Brasil é um bom negócio para os estrangeiros. Agora, é hora de dizer que investir aqui é muito bom desde que o país sirva de plataforma para a exportação.
Barreiras made in USA
A embaixada brasileira nos EUA listou alguns dos mais recentes problemas enfrentados por produtos brasileiros que tentam ganhar o mercado norte-americano com preços competitivos e qualidade, mas contra os quais são erguidas barreiras. Também não é fácil atender as exigências de 80 mil normas e regulamentos técnicos, apresentados por cerca de 2,7 mil órgãos federais, estaduais e municipais diferentes, todos preocupados com certificação de segurança. Alguns exemplos:
• Açúcar – Os EUA produzem açúcar de beterraba, muito mais caro que o brasileiro, obtido da cana; portanto, o açúcar brasileiro só entra nesse mercado sujeito a quotas e não é beneficiado pelo Sistema Geral de Preferências, destinado a grande número de países latino-americanos e do Caribe.
• Camarão – Política de proteção a tartarugas restringe a compra de camarão brasileiro, mesmo tendo o Brasil se adaptado a essas exigências e desenvolvido, há anos, um bem-sucedido projeto (Tamar) de preservação desses animais.
• Carnes – Problemas sanitários controlam a compra de carne fresca de suínos e bovinos. A partir do ano 2000, quando o centro-oeste e o sul brasileiros devem ser declarados zonas livres de aftosa e com controle da peste suína, a situação pode mudar. O país só tem permissão para exportar carne processada (corned beef) desde que a indústria seja certificada por autoridades americanas.
O Brasil é o maior exportador mundial de frangos, mas não pode vender aos EUA, por restrições sanitárias. O produto ainda enfrenta, no mercado internacional, a concorrência do Export Enhancement Program (EEP), que subsidia as vendas de produtos agropecuários norte-americanos à Europa.
• Frutas e legumes – Levou mais de seis anos a obtenção da licença para vender mamão papaia brasileiro aos EUA, cuja burocracia exige inspeção de órgão americano no país de origem. Um escritório do Serviço de Inspeção de Plantas e Animais, dos EUA, foi aberto em Brasília.
• Madeiras – Não há restrição legal, mas forte resistência à compra de madeiras e artefatos oriundos do Brasil, por alegações ambientais.
• Fumo – As exportações são sujeitas a quotas e a sobretaxas.
• Calçados – Cobra-se taxa de 10% sobre o preço de calçados para mulher e de 8,5% para os demais; para produtos de outros países, 5%.
• Etanol – O americano é mais caro que o brasileiro, obtido da cana; a taxa (2,3% e 2,7%, conforme o tipo) é superior à cobrada de outros fornecedores, e o produto é sujeito a quotas.
• Laticínios – O setor é mais competitivo que o brasileiro, mas as vendas do Brasil continuam sujeitas a quotas.
• Suco de laranja – Cobra-se taxa superior ao próprio preço da tonelada de suco, o que levou alguns grupos brasileiros a se instalar nos EUA, produzindo já 30% do total do suco consumido naquele país.
• Produtos têxteis – Quotas limitam as vendas brasileiras, também sujeitas às mais altas taxações do mundo (38% em alguns casos).
• Produtos siderúrgicos e de ferro-liga – Acusação de práticas de dumping, por causa do sistema de crédito de ICMS.
Além disso, vigora nos EUA o Buy American Act (de 1933), que restringe a compra de produtos e serviços estrangeiros por órgãos públicos, as chamadas compras governamentais, também incluídas na agenda da Rodada do Milênio. Outra característica do comércio dos EUA é a facilidade com que surgem leis como a Helms-Burton e a D’Amato, pelas quais o governo pode interferir no comércio com nações que negociem com países de uma, digamos, lista negra (Cuba e Irã, por exemplo).
Como se não bastasse, há ainda uma forte vinculação, defendida pelo governo norte-americano, entre proteção ambiental e comércio internacional.
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