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Antes tarde do que nunca

Foto: José Bassit

Educação de jovens e adultos adquire importância, mas não é prioridade

IMMACULADA LOPEZ

Escondida do pai, a paulista Márcia Helena Gervanozi conseguiu estudar até a sétima série. "Para ele, não era importante que eu estudasse, mas continuei com o apoio da minha mãe. E justamente por querer ajudá-la tive de parar, pois não podia mais estudar e trabalhar ao mesmo tempo", lembra Márcia. Aos 13 anos ela foi admitida em uma fábrica de plásticos. Mais tarde casou-se, teve filhos e continuou trabalhando sem pensar em estudo.

A idéia de estudar só voltou muito tempo depois, quando foi procurar um novo emprego e lhe exigiram o primeiro grau completo. Aos 40 anos, inscreveu-se no Programa Integrar, na cidade de Santo André, e vai terminar o curso em agosto. "Já me sinto bem mais segura e útil. Emprego? Continuo procurando, mas sei que vai ser melhor quando tiver o segundo grau."

Márcia faz parte daqueles milhões de brasileiros que não desistiram de aprender e sabem que o estudo é condição essencial para alcançar uma vida melhor. Mas no Brasil, apesar de urgente, a educação de jovens e adultos ainda está longe de ganhar o status de prioridade para o atual governo federal. Felizmente, têm surgido, no entanto, iniciativas da sociedade para suprir mais essa falha dos poderes públicos.

Ao observarmos os índices de analfabetismo, parece que temos motivos para comemorar. Afinal, nas últimas décadas, os números têm caído intensamente. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1920, a população analfabeta chegava a quase 65%. Em 1996, já era apenas 13%, representando 14 milhões de brasileiros. Analisando melhor esses indicadores, porém, fica claro que esse avanço não significa que o Brasil esteja se saindo bem na educação de seus jovens e adultos e muito menos que esteja se preparando para os novos desafios dessa demanda.

O que diminuiu no país foi o analfabetismo absoluto – que significa não saber nem ler nem escrever um bilhete simples. E isso ocorreu "graças à universalização do ensino", diz Maria Clara Di Pierro, pesquisadora da Ação Educativa, uma organização não-governamental de São Paulo. "Na verdade, os jovens e adultos analfabetos não foram sendo alfabetizados, mas deram vez a uma nova geração que teve acesso à escola básica", explica ela. Em outras palavras, graças à maior escolarização – hoje, segundo o Ministério da Educação (MEC), 95,8% das crianças em idade escolar estão estudando – diminuiu sensivelmente o analfabetismo entre os jovens. Uma parcela muito numerosa da população, o que favoreceu a redução do número de analfabetos em relação ao total da população. "Estamos atacando a fonte do analfabetismo", diz Leda Seffrin, coordenadora de Educação de Jovens e Adultos do MEC, que concentra os recursos públicos na educação fundamental, destinada às crianças de 7 a 14 anos.

Estratégia da exclusão

Embora concorde que o acesso da criança à escola é fator primordial na luta contra o analfabetismo, Maria Clara vê problemas na estratégia governamental. "Priorizar a criança não deveria significar excluir o jovem e o adulto. É isso, no entanto, o que está acontecendo", diz ela. Entre 1995 e 1996, o investimento federal para o ensino de jovens e adultos não passou de 0,3% das despesas totais com educação. (E o gasto geral com cultura e educação nesse período, lembra ela, não chegou a 4% do orçamento.)

"Não adianta comprar um computador para a escola do filho sem investir na mãe analfabeta, que não tem condições de melhorar de emprego e logo vai precisar que o filho saia da escola para ajudá-la", diz Maria Clara. E investir na educação dos adultos não significa desprezar a educação infantil, diz ela. Ao contrário. "Já se sabe que para aprimorar a educação da criança é preciso melhorar seu entorno cultural." Os exemplos estão em todo lugar.

José Cleodon de Lima aprendeu a ler em casa, com seu pai. Escola mesmo, fez só até a quarta série. Depois teve de escolher entre o estudo e o trabalho. Há dez anos, deixou o Rio Grande do Norte rumo a São Paulo. Aos 31 anos, José continua vivendo na capital paulista, onde trabalha numa firma de transportes. Há alguns meses, decidiu que era hora de voltar a estudar. Hoje, está cursando a quarta série no Núcleo Comunitário de Cangaíba, na zona leste da capital. "Estou aprendendo o que nunca aprendi."

Leda Seffrin, do MEC, reconhece que é hora de dar mais atenção a quem não teve acesso à escola ou saiu precocemente dela. Na sua opinião, os esforços maiores deveriam recair sobre a alfabetização, que é a porta de entrada para a educação.

Aprender a ler, porém, não basta. Além disso, o país se depara com outro desafio: o analfabetismo funcional. "As crianças tiveram mais acesso à escola na verdade sem conquistar um domínio básico da escrita e da leitura", observa a pesquisadora da Ação Educativa. Para consolidar a alfabetização, diz ela, são necessários no mínimo quatro anos de escolaridade. "Portanto, a demanda por educação de jovens e adultos não é apenas dos 13,1% da população com 15 anos ou mais de idade que nunca tiveram instrução, mas também dos 19,3% que não passaram dos três anos de escolaridade", afirma Maria Clara.

Uma conclusão confirmada por um estudo inédito realizado na cidade de São Paulo pela Ação Educativa. Segundo os dados obtidos, para incorporar a escrita e a leitura no dia-a-dia é essencial completar o ciclo básico de oito anos – garantido por lei como "direito de todos e dever do Estado" –, fato que estende a preocupação para mais 33,9% da população, que tem apenas de 4 a 7 anos de estudo. "No total, quase 67% dos jovens e adultos do país deveriam ser alvo de uma política de educação", conclui a pesquisadora.

Ficou evidente, segundo Vera Masagão Ribeiro, coordenadora da pesquisa, que um real "alfabetismo" coincide com o acesso mínimo a oito anos de escolaridade e com a oportunidade de manter e desenvolver a leitura e escrita no dia-a-dia. Portanto, diz a pesquisadora, a alfabetização não é algo que se resolva com iniciativas isoladas. "Sem continuidade, ela está fadada ao fracasso."

Além disso, o analfabetismo funcional tende a ser cada vez mais um sinal de exclusão. Na era da informação, o mercado de trabalho é cada vez mais exigente. E quem não tem o primeiro grau – e muitas vezes também o segundo grau – tende a ficar de fora, diz Vera.

Esforço duplo

Quando a Conferência Nacional dos Metalúrgicos, por exemplo, decidiu investir na qualificação profissional dos trabalhadores (em especial, os desempregados), percebeu que eles não tinham condições de participar dos cursos por falta de escolaridade básica. A saída foi criar um projeto que ao mesmo tempo combatesse a baixa escolaridade e promovesse a qualificação, um esforço duplicado, diz Fernando Lopes, secretário de Formação da entidade. Foi assim que nasceu, em 97, o Programa Integrar.

Aos 41 anos, Márcio Zaglio Lúcio foi um dos que decidiram participar do programa e completar o primeiro grau, que tinha abandonado aos 13 anos. Desempregado desde 94, Márcio se arrependeu de ter deixado o emprego em busca de uma oportunidade melhor. "Não consegui nada. Todo mundo exige o primeiro grau." No ano passado, ao perguntar à diretora da escola de seu filho se havia vagas para o supletivo, ela lhe disse que a prioridade era para os mais jovens, e sugeriu o Integrar.

Graças ao novo aprendizado, foi aprovado recentemente no teste de fiscal de ônibus. "Antes, até que conseguia fazer as quatro operações, mas uma redação ou equação, não dava. Agora já posso escrever um relatório sem problemas."

Na sua primeira fase, o Programa Integrar está atendendo especialmente os desempregados. "Nosso objetivo é fazer com que essas pessoas tenham opções de desenvolvimento", diz Lopes. No ano passado, 200 mil pessoas participaram do programa, mantido com recursos do Ministério do Trabalho. Este ano o apoio ainda não foi liberado, e o projeto está em andamento apenas em cinco dos nove estados que o adotaram inicialmente, com verba dos próprios sindicatos.

Durante dez meses, os alunos participam de dez módulos temáticos (como trabalho e tecnologia, gestão e planejamento, entre outros), que incluem conteúdos de português, matemática, geografia e história. No final do ciclo, o aluno é avaliado e recebe certificado do primeiro grau.

O Integrar, no entanto, é uma exceção. "A maioria dos projetos não-governamentais se dedica à alfabetização inicial", explica Maria Clara, da Ação Educativa. Mesmo assim, não é fácil obter resultados.

Na Bahia, a Federação das Indústrias lançou no final do ano passado uma Campanha de Erradicação do Analfabetismo. A meta é fazer com que os 6 mil trabalhadores da indústria baiana se matriculem até o final do ano nos programas de alfabetização criados nas empresas. Eles duram dez meses e correspondem ao período da primeira à quarta série.

"Procuramos as indústrias, fizemos um levantamento sobre o nível de escolaridade dos funcionários, tentamos sensibilizar empregados e empregadores para a importância do estudo e então apoiamos a formação das turmas, com o fornecimento de material didático e a contratação de estagiários universitários", conta Magdalânia Cauby França, coordenadora pedagógica do Programa Educação do Trabalhador, do Sesi (Serviço Social da Indústria) da Bahia.

Ela explica que há dois anos o Sesi mudou o foco de suas ações da educação infantil para a educação do trabalhador, reconhecendo a importância da preparação da mão-de-obra. Entretanto, segundo a pedagoga, o empresariado em geral ainda tem dificuldade em perceber o benefício do investimento. Parece que prefere demitir quem não está preparado.

Projeto amazônico

Longe das capitais e da indústria, a educação dos jovens e adultos de pequenas comunidades da Amazônia desperta a atenção do Departamento Nacional do Sesc (Serviço Social do Comércio). No ano passado, foi lançado o projeto Sesc Ler, que pretende se estender pelo país.

"Começamos pelo norte porque, além do alto índice de analfabetismo, a região tem uma enorme escassez de atendimento", explica Maria Alice Lopes de Sousa, assessora técnica do projeto. Nessa primeira fase, a iniciativa visa atender pessoas maiores de 15 anos que nunca foram à escola ou saíram antes do primeiro ano.

O ponto central é criar centros socioeducativos, abertos a toda a comunidade. Além de promover a alfabetização, pretendem transformar-se em pólos de cultura, lazer, esporte e saúde. "Nosso objetivo é a alfabetização, mas com uma perspectiva de educação integral e cidadania", diz Maria Alice.

Para tanto, o Sesc pretende articular ações com as prefeituras, outras entidades e a população. "Estamos convencidos de que sem esses desdobramentos a situação de vida da população não mudará e inevitavelmente todo o trabalho inicial se perderá, com a regressão ao analfabetismo", explica Maria Alice.

O enlace entre educação e mudança de vida – pessoal e comunitária – também se revela no trabalho desenvolvido pelo Conselho Comunitário de Educação, Cultura e Ação Social de Cangaíba, que reúne desde o ano passado 110 núcleos de alfabetização de jovens e adultos da zona leste de São Paulo. As turmas semestrais, algumas existentes há mais de dez anos, vão até a quarta série. Depois, os alunos podem seguir as aulas do programa televisivo Telecurso 2000.

"Hoje nossa preocupação não é só ensinar a ler e escrever", diz Jânio Leal Silva Chaves, presidente do conselho. "Nosso trabalho precisa envolver a construção de cidadania."

Chaves não tem dúvidas de que, ao conquistar a educação, jovens e adultos fortalecem seu envolvimento na busca de melhores condições de vida. "Nosso desafio é ampliar a percepção de por que estudar é importante." Mas ele reconhece que os alunos têm uma expectativa bem mais imediata: a maioria não quer perder o emprego, alguns querem poder ler a Bíblia, outros apenas ler o nome do ônibus.

Edivaldo Feitosa da Silva é um dos que se esforçam para recuperar o tempo perdido. "Era muito ruim ter de chamar outra pessoa para fazer as minhas contas", diz ele. Já teve de abandonar duas vezes os estudos, em Petrolina (BA). A primeira, aos dez anos, para ajudar o pai com o gado. E a segunda, já adulto, por puro cansaço. Era difícil, após um dia de trabalho duro, ter de atravessar o rio São Francisco para ir à escola. Mas não se conformou. Há dois anos em São Paulo, e desde então tentando voltar a estudar, Silva finalmente soube do curso em Cangaíba. Matriculou-se na primeira série e quer chegar pelo menos até a sexta. "Desta vez, não vou desistir."

A demanda por educação também se repete nas áreas rurais. "Além de brigarmos pelo acesso à escola, temos de lutar por uma escola voltada para a realidade rural, situada no nosso próprio ambiente", diz Elfi Fenske, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Já em 92, o trabalho de alfabetização começou nos assentamentos. Hoje são 890 turmas, mantidas em parceria com o Incra e a Unesco. Quase 20 mil jovens e adultos freqüentam um programa de dez meses, que equivale ao curso da primeira à quarta série. "Sabemos que é pouco, porque a taxa de analfabetismo nas áreas de assentamento varia de 37% a 41%", diz Elfi.

De qualquer forma, o MST acredita que as aulas são o início de um processo de educação. Além das disciplinas básicas, o programa inclui temas como produção rural, organização do assentamento e relações humanas. Os resultados, segundo Elfi, são claros: "Há uma maior vontade de participação, maior cuidado com a aparência do assentamento, melhoria no gerenciamento de produção, e surgem novas lideranças". Frutos da educação.

 

Paulo Freire, o inovador

Mesmo sem escolaridade, nenhuma pessoa adulta é vazia de conhecimentos. Qualquer processo de educação, portanto, deve começar a partir do que ela já sabe. Essa convicção caracterizou a obra de Paulo Freire (1921-1997), que se dedicou à alfabetização de adultos durante três décadas e é, ainda hoje, o nome mais conhecido da pedagogia brasileira.

"Paulo Freire mudou a visão sobre o analfabetismo", resume Vera Barreto, que fundou com ele o Vereda – Centro de Estudos em Educação, na cidade de São Paulo, em 1982, onde ela trabalha até hoje. "Ele apontou a raiz social e não pedagógica do sucesso da alfabetização", completa Vera. Em outras palavras, ele revelou que salas de alfabetização nunca irão zerar o analfabetismo, pois ele é fruto de uma injustiça social.

Para o pensador, o analfabetismo é resultado da própria forma de ser do país. "Paulo Freire critica o autoritarismo da sociedade brasileira, que coloca muitas pessoas em uma posição social constante de obediência, fato que certamente interfere no processo de aprendizagem", diz Vera. As pessoas seriam portanto desmotivadas a pensar, a acreditar em si mesmas, a tomar decisões. Nesse contexto, ele propõe que o educador restaure a autoconfiança do aluno e o reconheça como produtor cultural.

E inova ao dizer aos educadores que trabalhem com temas já presentes na vida do adulto, a partir de conhecimentos próprios e da capacidade de adquirir outros.

O pensamento de Paulo Freire, segundo Vera, tem sido enriquecido nas últimas décadas por novos estudos. "Verificou-se por exemplo que, além de conhecer o mundo, o adulto não escolarizado tem conhecimentos relativos à própria escrita e leitura." Ele sabe distinguir números de letras. E também reconhecer nomes em placas de propaganda.

A realidade – destaca Vera – obviamente mudou desde que Paulo Freire elaborou seus métodos, e novos conhecimentos continuarão sendo somados a seu pensamento. "Entretanto, não podemos esquecer que, acima de tudo, ele foi um filósofo da educação, e com certeza suas idéias, apesar de tão difundidas, estão longe de ser esgotadas."

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