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As viúvas do sertão
LEONARDO SAKAMOTO
Rosto sulcado pelo tempo, como os leitos dos rios fantasmas que assombram a região. Pele e corpo ressecados, feito a terra, outrora fértil, que hoje se desfaz em areia levada pelo vento. Olhar profundo e vazio o mesmo vazio do prato a que está acostumado o sertanejo. A baixa estatura quase não deixa sombra. Também, pudera! O sol a pino fica a caçoar de sua cabeça e, se não ofusca diretamente, cintila em todo o chão até onde a vista alcança. Resta proteger a moleira. Então, em um passe de mágica, balde de água vira cartola. E assim como surgiu, lenta e pacientemente, a figura desaparece por entre galhos retorcidos, vacas magras e ossudas, morros brancos e poeira da estrada.
Aos 72 anos, Maria José é uma mulher de sorte. Afinal de contas, apesar de caminhar mais de dez quilômetros em busca de água, sabe que não está sozinha. Maria José possui um companheiro que estará lá quando ela voltar, brigando com a terra na luta pelo sustento. Infelizmente, ela é a exceção, não a regra.
O chão, há vários meses, não vê chuva que dê para o cultivo. A seca que atinge todo o nordeste expulsou maridos, pais e filhos do vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país, em Minas Gerais. Para sobreviver foram obrigados a migrar, principalmente para o interior do estado de São Paulo, servindo como mão-de-obra barata às usinas no corte da cana-de-açúcar.
Como os homens passam a maior parte do tempo trabalhando fora, as "viúvas de marido vivo" como são chamadas a contragosto suas esposas acabam se tornando a duras penas chefes de família. Esse fenômeno ocorre com mais freqüência na região do médio Jequitinhonha incluindo cidades como Araçuaí, Itinga, Coronel Murta, Chapada do Norte e Virgem da Lapa, além de vilarejos sertão adentro.
Cidades como Itinga apresentam, de acordo com o censo de 1996 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 70% de sua população dispersa pela área rural. São empregados de grandes fazendas ou pequenos proprietários de terra em seus sítios de alguns alqueires.
Quando chove, é possível arrumar um emprego na lavoura ou plantar a própria roça. Isso ocorre próximo ao mês de dezembro. Contudo, com a estiagem, a terra não consegue segurar o trabalhador. E a busca na cidade é quase inútil. Não há vagas, nem no pequeno comércio local, nem na prefeitura que muitas vezes já dedica à folha de pagamentos verba maior do que a permitida por lei.
A solução aparece na forma dos ônibus mandados pela indústria canavieira paulista ou mato-grossense. Em cidades como Sertãozinho, Bauru e Ribeirão Preto estão espalhadas as gentes do Jequitinhonha. E o processo de vaivém não é recente como a seca também não é. Tanto que, não raro, as pessoas rompem a corda desse ioiô humano e acabam ficando no sul.
"Tenho três filhos em São Paulo. Um foi há pouco tempo. Esse eu sei que volta. Mas dois deles já estão morando lá com família e tudo", conta Joaquim, que ganha a vida apanhando lenha e vendendo-a às padarias e aos proprietários de fornos de barro. Com nove filhos no currículo e muito trabalho nas roças, ele e Geralda, sua mulher, moram em uma casa do mutirão.
De passagem
Construído com a ajuda da prefeitura, em parceria com as associações religiosas e de moradores, esse conjunto de 20 casas coloridas à beira da BR-367 tem uma história peculiar. De acordo com Helena, da Associação das Mulheres do Bairro Porto Alegre (Ambapa), em Itinga, o mutirão foi construído para abrigar as "viúvas" que ficavam sozinhas no campo enquanto seus maridos migravam.
Hoje, boa parte dos homens voltou mas por pouco tempo. Emanuel está de passagem. Espera juntar um pouco de dinheiro para retomar seu rumo em direção sul. Reclama que, apesar da carteira assinada, não consegue obter o salário-desemprego. "As usinas não dão os papéis de que preciso. E o governo disse que sem os papéis nada feito." Os papéis a que ele se refere são a rescisão do contrato de trabalho. Muitas empresas não emitem toda a documentação, burlando assim o fisco e pagando menos impostos. O que, é óbvio, afunda ainda mais o cortador de cana na areia seca do sertão.
Durante o tempo em que estão fora, os homens mandam o pouco que recebem para a família. Três, cinco, sete têm de se virar às vezes com R$ 80, R$ 120 por mês. Francisca, mãe de dois filhos e com um terceiro no ventre, é privilegiada nessa realidade. Não tem que dar de comer a muitos com seus R$ 80.
Pedro Maroto não compartilha da mesma "fartura". Alto, com voz de barítono como um chefe de clã, fala com orgulho de sua propriedade um pequeno sítio próximo ao vilarejo de Teixeirinha. Apesar de não ser uma viúva, pena como tal. Sua aposentadoria e a de sua mulher (uns R$ 250 no total) são responsáveis pela sobrevivência de 12 pessoas. Produção quase não há. O córrego que cortava sua terra secou há tempos. O jeito foi improvisar, por meio da solução mais comum na região: sangrar o leito seco até alcançar água. Contudo, mesmo as cacimbas estão secando. "A gente vai cavando, cavando e cavando, cada vez mais fundo, para achar água" se é que se pode chamar de água o caldo amarelo retirado dos buracos no chão. "Se fizesse um poço, teria água aqui." Mas com que dinheiro? Maroto pára e reflete. "E eu ainda tenho sorte. Moro em um vale de um rio, dá para cavar cacimbas. Tá vendo o sítio no alto daquela montanha? E eles, como é que ficam? Têm de descer até aqui e pegar água comigo. Caminhar muito", diz ele, que ainda divide o parco caldo com os animais da propriedade.
Apesar da aridez da paisagem é fácil identificar onde estão os leitos secos. É só seguir a estreita linha verde que vai marcando seu caminho sinuoso pelos vales. As cidades, por enquanto, não sofrem de falta de água. Em Itinga, o perene córrego Água Fria que não é grande coisa abastece a zona urbana. A pobreza, que se faz presente no campo, também encontra lugar ali para crescer e se multiplicar. Se a seca bate forte em todo o Jequitinhonha, o desemprego é o problema que mais preocupa os moradores.
Para fugir da realidade da miséria, vários se entregam à bebida. São muitos os casos de alcoolismo e, portanto, não raras as mortes por cirrose hepática. Em se tratando de doenças, o vale está bem servido. As constantes pressões a que são submetidos os trabalhadores do corte da cana, aliadas às condições insalubres e às longas jornadas, têm provocado o aparecimento de uma doença até então reservada às metrópoles. A hipertensão atacou os maridos de Maria, Rosa, Geralda, Joana e os de um sem-número de mulheres.
Riqueza em minérios
O vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais ricas em minérios de todo o Brasil. Berilo, cassiterita, feldspato, lítio, água-marinha, nióbio, turmalina, ouro, diamante. Cidades com nomes de pedras semipreciosas é o que não falta em todo o vale: Topázio, Turmalina, Carbonita, Pedra Azul, Diamantina.
Empresas mineradoras também abundam, como a Arqueana e a Sandspar. A mineração é o grande empregador da região, mas também uma fonte de problemas. De acordo com Joaquim, médico em Itinga, a incidência de silicose em Taquaral é de 15%. A doença, causada pelo pó do interior das minas, destrói os pulmões. Esse é o caso de Roberto que teve de ir a São Paulo para se tratar de uma insuficiência respiratória que ganhou trabalhando nas minas. Isso sem contar a contaminação do rio Jequitinhonha por mercúrio usado para separar ouro na mineração.
E não pára por aí. De acordo com Josimar Oliveira Ruas, professor em Itinga, a mineração tem sido responsável pelo assoreamento do rio. Dragas lavram a terra em busca de minérios, atirando o cascalho no seu leito. Com isso, ele vai se tornando cada vez mais raso e largo processo semelhante ao que ocorre nos rios Pinheiros e Tietê, na cidade de São Paulo, que periodicamente têm de passar pela limpeza da calha para que não transbordem. Segundo Josimar, se o despejo continuar, previsões apontam para uma morte do Jequitinhonha em 20 anos.
A pior doença, porém, não é causada pelo ar, água ou trabalho e sim pela distância. As mulheres vêem seus maridos irem embora e, apesar da tristeza, enchem-se de esperança. A esperança de que eles voltem bem e rápido para seus braços. Dedicam-se então à criação da prole grande na maioria das vezes, impossível de ser contada em uma só mão. Cartas são quase sempre o único meio de comunicação entre o casal por anos a fio.
E o peito começa a apertar quando o número de páginas vai escasseando, a freqüência diminuindo, quando a saudade escrita já não convence. O coração fica mirradinho, mirradinho. Não são poucos os homens que, longe de casa, arrumam outra mulher.
O marido de Ritinha foi trabalhar em São Paulo. No princípio ela foi junto, acompanhá-lo. Antes unidos nas dificuldades do que separados. Pouco depois, ele a mandou de volta. Com o passar do tempo, ela descobriu que ele tinha outra. Ficou arrasada. Depois soube que seu marido mandou a outra embora também. Ele adoeceu em seguida. Agora, está pedindo para voltar. A princípio Ritinha não queria. Mas já repensa a possibilidade. "É difícil criar os filhos sozinha", diz sua irmã.
Sozinha com Deus
As mudanças na vida desses homens migrantes não se limitam a novas mulheres. Às vezes se estendem também para uma nova casa, novos filhos. O marido de Eliane foi trabalhar no corte da cana no Mato Grosso. Quando nasceu sua primeira filha, ele já estava longe. No começo, ficava muito tempo fora, mas voltava. Um dia foi e não voltou. Passaram-se meses, anos. As cartas foram escasseando. O dinheiro idem. Eliane passava dificuldades, mas mantinha a esperança de rever o marido.
De repente, ele reapareceu. Fez um filho e sumiu de novo. Ela, cansada, arranjou outro companheiro. Pouco depois começou a freqüentar a igreja evangélica. Foi quando a fizeram escolher: ou seu companheiro ou Deus. Uma mulher casada nos laços sagrados do matrimônio não poderia viver em pecado, com seu esposo ainda vivo. Ficou sozinha com Deus.
O marido reapareceu novamente e disse que dessa vez seria para sempre. Devido à insistência da filha, Eliane aceitou-o. Algum tempo depois ele confessou que havia formado família em São Paulo, tendo inclusive outra filha. Eliane se enraiveceu, mas, como ele garantiu ter rompido vínculos com a família paulista, perdoou. As coisas apertaram e ele voltou às usinas de cana.
Então Eliane recebeu a notícia de que o marido havia morrido. Hoje, trabalhando como empregada, não sabe mais o que fazer para sustentar os quatro filhos. Pensão, nem pensar. Eliane tentou consegui-la através da Justiça, mas não teve sucesso. Faltam documentos que estavam com ele e desapareceram.
A seca destrói a vida de todos. Contudo, a natureza não pode ser a única a sentar no banco dos réus. Os governos têm uma grande parcela de culpa nessa história. Ao contrário de outras regiões do país em que se esperam grandes projetos de transposição de águas para viabilizar a agricultura, no vale seria necessário menos do que se imagina. O rio Jequitinhonha tem água em abundância, e o local possui uma das melhores terras para o plantio de frutas no Brasil. A solução estaria em um programa eficiente de irrigação. Tanto é que, nas pequenas áreas que possuem água para o plantio, florescem mangas, melancias, uvas, amendoins, verduras e legumes. Verdadeiros oásis no meio do sertão.
É paradoxal: como famílias inteiras passam fome, como esse vale pode ser pobre, se sua terra é tão fértil? Ou, mais ainda, se um curso de água a céu aberto rasga a região? É absurdo pensar que Maria José tenha de andar tanto em busca de água se perto de sua casa o Jequitinhonha corre em direção ao mar. Projetos até existem, mas faltam dinheiro e vontade dos políticos.
E a ajuda nunca vem. Por que, afinal de contas, olhar para o vale do Jequitinhonha? Apesar da grande extensão territorial, os votos não são tantos assim. É mais negócio concentrar esforços para agradar eleitores do Triângulo Mineiro ou região da Grande Belo Horizonte. A relação custo-benefício é mais vantajosa.
E maridos, pais e filhos continuarão sendo retirados à força de suas terras para trabalhos insalubres. Esposas, filhas e irmãs ficarão na solidão da seca. Em vez de ser estimulado a permanecer em seu local de origem, o trabalhador é levado a ser mais um nos bolsões de pobreza das grandes cidades do sul.
O futuro é incerto. Marias, Ritinhas, Elianes, Rosas, Joanas são várias e uma ao mesmo tempo. Não precisam de sobrenome. Estão ao longo de todo o vale. As histórias são as mesmas, o sofrimento igual. Certo mesmo é o rio, que continuará embalando a fome e a seca, num ciclo interminável na direção do mar.
A arte brota da seca
Ao longo da BR-367, no povoado de Pasmado, estendem-se fileiras de vasos, jarros, panelas e outras peças de barro feitas pelas mulheres da região. As "poteiras", como são chamadas, moldam com as mãos sem a ajuda de tornos. Os homens dedicam-se à fabricação de artefatos de madeira. Infelizmente, até nisso o povo da região é sacrificado: são obrigados a comprar o barro de uma propriedade particular.
O artesanato em barro e madeira, característico da região, já alcançou renome internacional através das mãos do artesão Ulisses, de Itinga.
De acordo com Sebastião Rocha, pesquisador de cultura popular do vale, o "artesanato local retrata, de um lado, a identidade cultural de sua diversificada população, dividida entre o sonho e a luta, o anseio de dias melhores e, de outro, o fatalismo histórico da pobreza, a esperança e da submissão, a espera da vinda do Messias e a busca armada pelos direitos humanos".
As tradições, a cultura e o folclore do vale do Jequitinhonha podem ser vistos no 18o
Festivale, que deve acontecer entre os dias 22 e 26 de julho,
em Itinga.
O exemplo de Turmalina
(texto: Simone Dias)O vale do Jequitinhonha é conhecido pela pobreza. Mas em Turmalina, cidade de 16 mil habitantes a 496 quilômetros de Belo Horizonte, há uma iniciativa inovadora para desenvolver a maior riqueza que uma comunidade pode ter: o conhecimento.
Trata-se da Escola Família Agroindustrial de Turmalina (Efat), localizada numa área de 20 hectares, na periferia da cidade. Criada em 97 pela prefeitura local, essa escola oferece matérias do ciclo comum intercaladas com aulas técnicas que abrangem desde a agricultura e o manejo de pequenas criações até panificação, apicultura e informática.
A característica mais marcante do projeto, no entanto, não é a variedade dos cursos, mas um engenhoso regime de alternância dos alunos na escola.
As turmas são divididas por sexo, estudam em tempo integral e dormem na escola, mas alternadamente. Ou seja, a cada 15 dias, saem os meninos e entram as meninas, e vice-versa. Durante a outra metade do mês, os alunos voltam para casa. Esse sistema, baseado num modelo francês, resolve um dos maiores obstáculos à escolarização na região: as dificuldades de transporte enfrentadas pela população da zona rural, que às vezes precisa caminhar dezenas de quilômetros para chegar à escola. Com a alternância, o trajeto entre a escola e a casa do aluno só precisa ser feito duas vezes por mês, e o aluno tem tempo para o convívio familiar e para repassar à comunidade os conhecimentos adquiridos, o que também está previsto no projeto.
"A terra sempre foi fraca, a água é pouca, e só Deus mesmo para dar muita força. Mas hoje estou realizada porque Ana está nos ajudando a melhorar. Os ensinamentos de agricultura ela é quem nos passa", diz Inês Cordeiro da Rocha, 55 anos, mãe de Ana Paula, aluna da Efat. Desde pequena, Ana Paula trabalha na roça plantando milho e feijão e, em 97, quando concluiu o primeiro ciclo do ensino fundamental, estava prestes a parar de estudar.
Hoje, Ana Paula, caçula de nove filhos, é o orgulho da família. O sonho de se formar médica talvez seja muito difícil de realizar, mas pelo menos ela é a única da família que continuou os estudos.
Segundo Mário Sebastião Cordeiro Alves, secretário de Educação do município e um dos idealizadores do projeto, após a instalação da Efat, a evasão escolar teve redução significativa: dos 17,44% verificados em 96, caiu para 2,6% em 98.
Além disso, a criação da escola tam-
bém proporcionou a produção de alimentos para o enriquecimento da merenda escolar do
município. Os 2,2 mil pães produzidos diariamente pelos adolescentes da Efat são
distribuídos nas escolas municipais, em creches e no hospital. Da horta dos meninos
também sai a verdura utilizada nesses locais.
Para que o fantasma da evasão não ronde Turmalina novamente, não se medem esforços. Cada aluno paga R$ 2 por mês. Quando não pode sequer oferecer essa quantia, o dinheiro é transformado em mercadoria. "Eles trazem 4 quilos de algum produto que plantam em casa", explica Alves. E tem dado resultado. Com a ajuda do sindicato, dos pais, da venda de produtos como o mel, por exemplo e a concessão do terreno pela prefeitura de Turmalina, a Efat consegue pagar seus 16 funcionários.
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