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Novo mundo do saber
A Internet abriu espaços para o conhecimento, enquanto convive, no Brasil, com níveis ínfimos de educação e cultura
CECÍLIA PRADA
Quando, nos idos do século 15, um modesto artesão chamado Gutenberg inventou a imprensa, o pânico se espalhou entre os letrados – será que o novo método, que possibilitaria a qualquer homem do povo ler a Bíblia, não se tornaria realmente um fator de anarquia, uma ameaça à sociedade?
Cinco séculos mais tarde, a informática, a nova tecnologia da comunicação, está aí, causando, em âmbito global, um impacto de tal ordem que atinge status de revolução – de novo paradigma cultural. Os tradicionais sistemas de comunicação linear, de ponto a ponto (emissor/receptor) e estelar (do tipo um emissor, vários receptores, como rádio e TV), expandem-se na grande rede planetária de comunicações. A Internet incorpora e supera todas as mídias anteriores. Mal refeito da maravilha de poder apertar um botão e iluminar uma sala, de falar num aparelhinho com alguém lá da China, de imitar os pássaros e atingir distâncias enormes no espaço de horas, o ser humano deste final de milênio está atônito diante das possibilidades que abre quando, ainda de pijama e chinelos, se senta diante de sua telinha particular encantada e entra num bate-papo com amigos antípodas, consulta acervos dos museus mais afamados, faz compras internacionais, lê os jornais de Nova York.
Mas a nova rede de comunicações planetária é muito mais do que o supra-sumo da tecnologia, ou um grande e divertido brinquedo eletrônico, ou um cômodo e eficiente instrumento de trabalho. É a realização de uma das utopias mais antigas e fundamentais do espírito humano: a abertura do saber e a criação de um "novo mundo"– o ciberespaço, onde todas as possibilidades de comunicação humana se entrecruzam, formando o que já foi definido por Pierre Lévy, professor do Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris VIII, como "o espaço antropológico da inteligência e do saber coletivos"1.
Nesse mundo de potencializações infinitas, algumas fontes tradicionais de cultura, como as universidades e os veículos de comunicação oral e escrita, sentem-se "colocadas em xeque" e defrontadas com uma necessidade de intrínseca reestruturação.
Os mais ameaçados são os tradicionais detentores do saber. Os grandes manipuladores da informação. Os círculos de saber específico, corporativo. A universidade. As corporações profissionais. Nesse sentido, a revolução da informação vem completar, 30 anos mais tarde, a iconoclastia de 1968, que abalou, sem derrubar, os privilégios da cátedra. A figura do professor, do mestre, é a mais questionada. A Internet, juntamente com as "infovias" da comunicação e os canais multiplicados da TV, pode derramar continuamente, a um simples toque de botão, toneladas de informações sobre todos os assuntos – de astronomia e medicina nuclear a boletins da Bolsa, de polêmicas políticas a receitas culinárias, de numismática a física quântica.
O autodidatismo se torna cada vez maior, e a divisão do saber em categorias ou disciplinas – as especializações –, cada vez mais precária. Inaugura-se a era da "cosmopédia" (o termo foi cunhado por Pierre Lévy e Michel Authier), isto é, "um novo tipo de organização dos saberes, que repousa em grande parte nas possibilidades para a representação e gestão dinâmica dos conhecimentos, abertas recentemente pela informática"2, um espaço multidimensional ilimitado, centralizador do debate e da elaboração intelectual coletiva.
Na linguagem do homem comum, "vivemos uma nova era, a era da transparência, onde tudo o que estava escondido deve vir para fora, lancetado como um tumor". Um ditado muito antigo também dizia: "Não se pode enganar muitos durante muito tempo". Com a renovada exigência de profissionalismo e excelência nos vários campos do conhecimento, imposta pelos novos paradigmas da comunicação, o mestre não pode se limitar a ser um divulgador de informações. Ele tem de se obrigar a passar aos alunos, presentes na sala de aula ou na virtualidade, aquele "algo mais" que só a experiência, a capacidade de autêntica liderança, a busca descompromissada e constante da verdade podem dar.
Numa bela palavra de sabor medieval, a sabedoria.
No reino de Gutenberg
A perplexidade maior diante das possibilidades do ciberespaço situa-se, porém, no campo da comunicação escrita. A grande imprensa sente-se, com plena razão, ameaçada de extinção – a sua matéria-prima, a notícia, chega de maneira imediata e contínua aos usuários dos canais televisivos e da rede. O jornal diário acorda mais tarde e vem esfalfado, repetitivo, sobrecarregado com encartes, brindes, promoções – alguns, no afã de agradar aos leitores, adquirem trejeitos de cortesã idosa, topam tudo por dinheiro, baixam o nível e se descaracterizam.
Em contrapartida, as próprias empresas jornalísticas já se situam na rede, duplicam os canais. E, com muito menos gasto e trabalho, começam a aparecer os jornais virtuais, até diários. Como o excelente "Baguete Diário" – informações, colunismo, serviços. Ou o "Observatório da Imprensa", complemento ao programa na TV do jornalista Alberto Dines.
No campo da literatura, as novas tecnologias têm um efeito extremamente paradoxal sobre a crise que já era intrínseca e muito anterior, principalmente na área da ficção. Theodor Adorno, lembramos, achava que "depois de Auschwitz a arte se tornou impossível". Desorientados, desprovidos de ideologias, sem tempo de reconstruir sua visão do mundo, os escritores viram-se de repente obrigados a questionar até mesmo o suporte tradicional da sua expressão – o livro. "Desaparecerá o livro, diante da informática?", perguntavam-se há alguns anos, com o mesmo temor dos contemporâneos de Gutenberg diante de sua diabólica invenção.
Temor bastante justificado, aliás. A plastificação e a descaracterização das obras literárias, levadas a cabo nas décadas de predomínio da televisão, reduziam contos e romances a apenas um de seus elementos: o plot, a ação. Passava-se para a nova platéia de videomaníacos a idéia de que a linguagem literária, o estilo, o tempo intrínseco à obra literária eram desnecessários, superados com vantagem pela homogeneização dos roteiros televisivos ou cinematográficos, pelas grandes produções técnicas.
Diante dessa enxurrada de sandices, os melhores escritores começavam a reforçar seus núcleos de ação – na maior parte distanciando-se do público e refugiando-se em círculos obrigatoriamente elitistas e sofisticados, principalmente universitários. Criava-se já a idéia de uma justa resistência "à invasão dos bárbaros" – um tempo de reflexão e catacumbas.
E a volta obrigatória do escritor à solidão da sua torre de marfim.
Escrevendo na rede
Mas o próprio avanço tecnológico modificaria esse quadro, com o advento da Internet. Ela é, por enquanto pelo menos, o espaço da liberdade de expressão, o fator primordial da veiculação das idéias. Em poucos anos ela passou de domínio exótico e experimental de alguns desocupados, curiosos ou visionários, a espaço utilizado normalmente por um grupo crescente e cada vez mais heterogêneo de usuários, em nível mundial. Diz o ensaísta espanhol Juan Luis Cebrián que há 20 anos a Internet era "um meio que estava à espera, uma revolução tecnológica que não ia em busca de um problema, mas em busca de uma nova geração que, liberada do peso dos velhos modelos, poderia empreendê-la e explorá-la ao máximo. Por intermédio dessa geração, a rede está se convertendo num instrumento de despertar social"3.
O ciberespaço é, principalmente para o escritor, também uma megavitrine, um meio de superdivulgação gratuita e imediata, o estímulo ao debate, a possibilidade de liberação de uma série de fatores que constrangiam a sua produção: a arbitrariedade das escolhas editoriais, a detenção das informações pelos grandes canais, o distanciamento do público. E o livro, que a princípio foi julgado como o grande perseguido pelos meios eletrônicos, nunca foi tão valorizado. Abrem-se os arquivos das bibliotecas mais distantes, são exibidos e comentados textos literários entre os virtuais "amigos", trocadas informações sobre prêmios literários, novas editoras, etc. Um site pioneiro, famoso, o "Project Gutenberg" (http://www.promo.net/pg), inteiramente mantido com trabalho voluntário, permite o download gratuito de um grande número de obras clássicas. E assim, vindos do espaço virtual como se convocados em sessão mediúnica, Shakespeare, Cervantes e Dante entram, tranqüilos e prestigiados, em nosso espaço doméstico.
No campo específico da literatura em português, numerosos sites lusos e brasileiros estão disponíveis – intercâmbio imediato, nunca antes possível, e que cresce a cada dia (como a revista de literatura "Vidas Lusófonas" – http://www.vidaslusofonas.pt/). É fácil distinguir os lusos: a linguagem é impecável. Nem pensar nos horrendos erros de sintaxe, ortografia, concordância e acentuação que prejudicam, e muito, os nossos. Interessante: os internautas brasílicos queixam-se de que o computador "não reconhece acentos". Só se forem os nossos, pois até as crases, do outro lado do Atlântico, cumprem empertigadas as suas funções.
Sites sofisticados, na maioria em inglês, dão-nos informações detalhadas sobre os grandes escritores – Joyce, Proust, Borges, e até Fernando Pessoa ou Monteiro Lobato. É possível saber detalhes curiosos: que em determinado bar de Taiwan reúne-se toda quinta-feira um punhado de admiradores de Joyce, para discutirem sua obra. Ou que em Minas Gerais há quem esteja se comunicando com o Japão, trocando idéias sobre Proust. Entre os vários sites brasileiros dignos de nota, "Boletim Nascente", realizado pelo escritor e editor Luiz Alberto Machado, em Maceió, mostra garra e informação e tenta unificar informações sobre o que acontece no Brasil e fora dele.
O mercado de livros cresce a cada dia. Os serviços da famosa Amazon Books já se incorporaram à rotina dos intelectuais – livros, CDs, buscas. Numerosas livrarias brasileiras, e até revistas como a "Bravo!", começam a negociar via Internet. Laboratórios de escritores são criados, com sucesso (ver box à pág. 39).
Mas no grande debate estabelecido, em todo o mundo, sobre o ciberespaço, insere-se a consciência do grande paradoxo cultural vivido por alguns países, como o Brasil, onde a mais alta tecnologia deve conviver com níveis ínfimos de educação básica. Por exemplo: Deonísio da Silva, escritor e professor universitário, confessa lançar sobre a Internet um olhar desconfiado, de soslaio, embora reconheça nela um correio eficiente e rápido, e um instrumento de pesquisa. Diz: "A palavra impressa, o documento, o livro, são insubstituíveis. Meu medo é que as novas gerações sejam transformadas em zumbis eletrônicos, que digitam no computador mas lêem pouco. A leitura na Internet é complementar. Mas ela é boa para se visitar todas as livrarias do mundo, o que equivale a não visitar nenhuma. Não gosto de mega isso, mega aquilo. Cultura é detalhe. As pequenas livrarias são as melhores do mundo. A Internet é segmentada demais. De repente nem sabemos mais o que estávamos pesquisando, de tantos caminhos e dispersões".
Mas é inegável a importância da revolução das comunicações. André Dazin, ex-presidente do Clube de Roma (entidade que reúne personalidades internacionais para estudar os problemas do mundo atual), chega a dizer que estamos assistindo à emergência de uma terceira visão da humanidade: a primeira (aristotélico-ptolomaica) nos explicava que o universo havia sido criado para o homem e a Terra era o seu centro. A segunda (Copérnico e Galileu) reduzia a Terra à categoria de planeta igual a tantos outros, regido por leis imutáveis da física. Na terceira visão, a que está nascendo atualmente, nossa concepção do universo funde-se com a da história. "Estamos inclinados", diz Dazin (citado por Cebrián), "a privilegiar a informação sobre qualquer outro fenômeno, o que significa que o homem volta a ocupar o lugar central da Criação, pois é superior a todo ser conhecido no que diz respeito à capacidade de aprender, e o único capaz de pensar."
1 Pierre Lévy, A inteligência coletiva, Loyola, São Paulo, 1998.
2 Michel Authier e Pierre Lévy, La cosmopédie, une utopie hypervisuelle, in "Culture technique", no 24, abril de 1992.
3 Juan Luis Cebrián, A rede, Summus, São Paulo, 1999.
Um escritor no ciberespaço
João Silvério Trevisan (foto), ficcionista e ensaísta, não se considera um "deslumbrado" com a informática, diz que odeia o caipirismo das pessoas que querem se dizer "modernas", mas reconhece que a tecnologia é um auxílio indispensável ao escritor. "Sem o computador", diz, "eu não teria conseguido escrever meu romance principal, ‘Ana em Veneza’." Além disso, navega regularmente pela Internet, e criou na Área de Convivência do site do Sesc dois laboratórios virtuais de criação e chats literários, Linha Direta e Balaio de Textos.
"A Internet é um novo mundo à nossa disposição e abre perspectivas inclusive para meu próprio mundo interior, pois possibilita contatos e pesquisas simplesmente impensáveis, antes", diz o escritor, para quem não é válida a afirmação pessimista de que cada vez se lê menos. Na sua opinião, há novas formas de livros, de leituras. Os debates assumem nova feição e nos chats os autores são obrigados a desenvolver outras formas de sedução.
Quanto à dita "contaminação" da língua pelos termos ingleses, Trevisan realmente não se preocupa, pois acha que colonizados e periféricos sempre fomos mesmo. Já tivemos uma influência predominante do francês, que depois passou. O escritor tem uma esperança irremediável no próprio fluxo da história, nos seus acontecimentos, imprevisíveis. E diz: "Tentar prever a história é uma grande bobagem. A última grande tentativa de previsão foi o marxismo, e vimos no que deu". Ele acha que é até útil incorporar o novo vocabulário. E quanto à incompatibilidade dos computadores com os nossos acentos, por que não aproveitarmos para repensar a acentuação no português? Monteiro Lobato e Mário de Andrade já preconizavam essa reforma, há muito tempo.
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