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Em Pauta
Habitação Paulistana
O crescimento da cidade de São Paulo trouxe consigo um fenômeno que caracteriza toda metrópole: a densidade populacional. Muitas questões surgem diante desse fato, entre elas de que forma é possível minimizar as conseqüências dessa contingência para que a qualidade de vida na cidade não seja prejudicada. Para responder essas, e outras perguntas que surgem nessa discussão, a Revista E convidou dois especialistas para debater o tema em artigos inéditos. Renato Cymbialista, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da área de urbanismo do Instituto Pólis, garante que a solução não é impossível. “ (...) a maior metrópole brasileira subutiliza seus territórios mais centrais e providos de infra-estrutura”, escreve. E a arquiteta e designer Helene Afanasieff analisa que vivemos a época das “cidades sem fim” – fenômeno, segundo ela, comum a todas as sociedades de países em desenvolvimento. “A abordagem sobre as condições da moradia da população (...) deve ser extrapolada para a Região Metropolitana de São Paulo, já que estamos vivendo uma fase histórica onde as divisas municipais existem apenas na questão formal-administrativa”, defende.
A questão da moradia na megacidade
por Helene Afanasieff
A habitação é a parte fundamental, constituinte da cidade, e a cidade que se consolida no século 21 é bastante diferente da cidade para a qual foram desenvolvidos os critérios e metodologias para a criação dos indicadores qualitativos e quantitativos, entre os quais os do déficit habitacional. Os indicadores são indispensáveis para o estabelecimento de metas e programas diversificados, desde que recebam um tratamento compatível com a complexidade e riqueza da questão urbana.
A abordagem sobre as condições da moradia da população da cidade de São Paulo deve ser extrapolada para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), já que estamos vivendo uma fase histórica em que as divisas ?municipais existem apenas na questão formal-administrativa. Por outro lado, o município é “individualizado” em bairros, praças, ruas, prédios, casas... Vivemos a época das cidades sem fim, megametrópoles, constituídas de forma não-linear no tempo, em todas as sociedades dos países em desenvolvimento. Não só a população mais carente, como também a população abastada, atravessa as divisas municipais na constituição de sua moradia – os condomínios de alta renda invadem a zona rural; as famílias com menor renda buscam a casa própria em locais onde a construção se faz fora dos custos e exigências de mercado, no lado ilegal da ocupação de vastos territórios que expandem cada vez mais a mancha urbana dessa imensa cidade, constituída por 39 municípios, alguns deles totalmente “conurbados” entre si – São Paulo, Guarulhos, Osasco, Ferraz de Vasconcelos, Taboão da Serra e outros. Recentemente, a imprensa referia-se à metrópole gigantesca constituída pelo eixo São Paulo-Campinas, onde a distância entre áreas urbanizadas não ultrapassa 14 quilômetros, caracterizando a “conurbação”. Nessa cidade sem fim, assistimos a sucessivos movimentos de abandono das áreas centrais, onde o poder público já investiu altíssimos recursos em infra-estrutura e serviços. O programa da família de classe média passou a exigir mais garagens, áreas de lazer, equipamentos de segurança máxima e outros atributos que já não poderiam ser supridos pelo contingente das moradias edificadas entre os anos de 1960 e 1980; esse patrimônio habitacional edificado constitui um acervo de qualidade excepcional, como não se encontra em muitas cidades do chamado 1º mundo: exemplos da melhor arquitetura habitacional projetada por mestres tais como Heep, Rino Levi, Oswaldo Bratke, Abelardo de Souza e outros inúmeros arquitetos que contribuíram para alicerçar a reputação da nossa arquitetura, objeto de publicações e estudos permanentes nas escolas de arquitetura do mundo todo. Investimentos pesados da iniciativa privada deslocaram, sucessivamente, o interesse para novas regiões, perseguindo o lucro e promovendo a desqualificação de imensos setores urbanos. Processo que hoje se intensifica – basta ver os anúncios de lançamentos imobiliários por toda a RMSP. E os mais pobres? Aqueles que ainda não conseguiram sua casinha “própria”, numa favela ou numa ocupação organizada, juntam-se em movimentos pró-moradia, cobrando solução das prefeituras, do estado e do governo federal.
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No entanto, apesar desse esforço, as áreas mais frágeis do município, as áreas protegidas, os mananciais, vêm sendo ocupados intensivamente, constituindo a principal prioridade para uma atuação habitacional adequada às exigências de uma cidade sustentável – com desenvolvimento social e econômico integrados com a proteção ambiental, indispensável à sobrevivência dessa mesma cidade enquanto organismo vivo e exigente.
O déficit, no âmbito municipal, tem endereço certo. Alguns exemplos devem ser priorizados no enfoque pela diminuição do déficit habitacional junto à requalificação de áreas urbanas. É o caso do edifício “pombal” da Rua Sta. Efigênia: sobre o térreo de uma rua que vende tecnologia de ponta, como pode subsistir um complexo de moradias tão precário que, certamente, representa risco de incêndio e outras tragédias? Porque o município não prioriza essa questão? O déficit tem que ser desdobrado em programas – localizados, dimensionados e qualificados de forma integrada com o caráter que se deseja para a cidade.
Cabe lembrar que, com muitos anos de atraso, a prefeitura está promovendo uma ação programada no complexo edificado representado pelo edifício São Vito e Mercure, na zona do Mercado Municipal, com o reassentamento de cerca de mil famílias, já que os edifícios existentes não são habitáveis, tanto pela sua implantação urbana como pelas suas características tipológicas.
Concluindo, a política habitacional do município deve interagir profundamente com o resto da RMSP para assegurar o equilíbrio e a qualidade da moradia urbana. Os sistemas que garantem a vida da população pressupõem a construção da cidade, com todos os atributos conferidos pela urbanização – infra-estrutura, equipamentos públicos e privados, conservação das áreas naturais, mobilidade e acessibilidade, ou seja, atributos que compõem a qualidade urbana – sua atratividade, desde sempre, para todos os que aqui nasceram ou chegaram em diferentes épocas em busca de trabalho e, particularmente, em busca dessa qualidade maior: ser cidadão.
Permitir o aproveitamento planejado do contingente já edificado, através da readequação de milhares de apartamentos vazios, apesar das dificuldades quase intransponíveis impostas pela legislação existente, que privilegia a propriedade privada e os mecanismos do mercado, com custos altíssimos para a desapropriação ou aquisição. Ampliar o crédito habitacional para que as famílias mais pobres encontrem uma solução habitacional adequada às suas possibilidades, não necessariamente pela construção de grandes conjuntos habitacionais que, a médio e longo prazos, acabam por distorcer a atuação pública, se não garantem a verdadeira inclusão dessas famílias na cidade sustentável. Construir empreendimentos de médio e pequeno portes, investir amplamente no transporte público sustentável ferroviário, não poluente, com a inserção dos bairros mais distantes na rede de serviços de primeira qualidade. Redistribuir de forma equilibrada as novas moradias nos vazios existentes ou remanejando assentamentos implantados de forma inadequada com as graves questões ambientais. Ser rígido no que concerne ao bem comum.
“Vivemos a época das cidades sem fim, megametrópoles, constituídas de forma não-linear no tempo, em todas as sociedades dos países em desenvolvimento”
Na metrópole, a infra-estrutura subutilizada
por Renato Cymbalista
O Censo de 2000 revelou alguns números chocantes para aqueles que se preocupam com o bom funcionamento da cidade de São Paulo: nada menos do que 420 mil imóveis foram identificados como vagos no município, cerca de 11% do total de imóveis. Trata-se de mais do que o dobro do déficit habitacional no município, calculado em 203 mil unidades pela Fundação João Pinheiro em 2005.
Se olharmos para a variável temporal, o cenário é ainda mais negativo: de 1991 a 2000, os dados do Censo acusam que as áreas mais bem urbanizadas da cidade vêm perdendo população. Não me refiro apenas ao centro histórico da cidade, mas a uma grande região que se estende por todas as direções a partir do Centro, atingindo bairros como Santo Amaro, Santana, Butantã, Tatuapé.
As cifras falam por si sós. Enquanto milhões de pessoas sofrem em favelas cada vez mais densas, em cortiços onde várias famílias compartilham um banheiro, nas periferias longínquas e nas áreas de proteção aos mananciais, a maior metrópole brasileira subutiliza seus territórios mais centrais e providos de infra-estrutura.
Dessa forma, parece-me bastante evidente que o problema de São Paulo não é a falta de moradias ou de infra-estrutura, mas a má distribuição dos recursos que a cidade possui.
Chegamos a essa situação em decorrência de escolhas históricas de nossa sociedade. Desde sempre, a moradia e a terra urbanizada vêm sendo tratadas como simples mercadorias dentre tantas que a nossa sociedade de consumo produz, acessível mediante as leis do mercado, que se revelam especialmente perversas em nossa cidade: como são poucas as regiões com boa infra-estrutura, áreas verdes, espaços públicos de qualidade, segurança, essas regiões tornam-se alvo de grande cobiça, e os preços de imóveis vão às alturas. Quem tem dinheiro compra ou aluga um bom imóvel nesses “bairros bons”; quem não tem fica à margem, e precisa morar em alguma das tradicionais soluções de moradia para os mais pobres: cortiços, favelas, beiras de córrego, áreas contaminadas, sob fios de alta tensão e – principalmente – periferias cada vez mais distantes e desequipadas.
As forças de mercado não têm capacidade de resolver por si sós essas distorções, conforme mostra a história recente: as duas décadas de estagnação econômica significaram um imenso aumento da precariedade, e as favelas cresceram a taxas muito superiores ao crescimento da cidade como um todo. O Centro de Estudos da Metrópole estimou o aumento da população favelada em 2,97% anuais na década de 1990 ante 0,87% para o conjunto da cidade. Nos últimos anos, de reaquecimento econômico, o que temos observado são ?preços de imóveis cada vez mais altos devido ao aumento do poder aquisitivo e das facilidades de crédito, mais uma vez penalizando os mais pobres.
Cabe lembrar as várias dimensões do processo de ?expulsão dos mais pobres das áreas mais bem localizadas da cidade. Do ponto de vista ambiental, estamos ameaçando com ocupação irregular os locais que deveriam ser preservados para garantir a água para as presentes e as futuras gerações. Um olhar sensível às desigualdades raciais revelará que a população excluída dos benefícios da cidade não é apenas mais pobre, mas também mais negra. A exclusão incide de forma particularmente grave para as mulheres: são enormes as taxas de estupros nas periferias, conforme mostram os trabalhos do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Os números mostram também que a população das periferias é mais jovem do que a das áreas centrais, e são justamente os jovens da periferia as maiores vítimas de assassinatos na cidade.
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O quadro traçado acima é sem dúvida desafiador, mas é possível intervir na dramática situação de moradia na cidade, desde que exista uma ação estratégica e continuada do poder público. Dentre os muitos desafios para a construção de uma política de habitação eficaz, destaco aqueles que considero os principais elementos.
Em primeiro lugar, é necessária uma diversificação de estratégias. Os projetos de vida, as expectativas de inserção na cidade, os arranjos familiares, as condicionantes de trabalho são muito variadas, o que impede que uma solução única seja possível para toda a cidade.
Talvez o principal elemento seja a construção de uma estratégia global para a cidade, que possa agir em duas grandes frentes: por um lado, levar gente onde já existe cidade, repovoando áreas centrais e providas de infra-estrutura; por outro lado, levar a cidade onde já existe gente, urbanizando e regularizando ocupações precárias.
Uma política habitacional deve levar em conta essa diversidade, e desenhar soluções para os distintos problemas. Do ponto de vista do tipo de intervenção, é necessário agir na urbanização de favelas, em intervenções em cortiços, na construção de novas moradias, na reforma de edifícios existentes. Quanto ao financiamento, é necessário prever regimes distintos para atender a necessidades e capacidades de pagamento diferentes: financiamentos subsidiados para a aquisição de casa própria, arrendamento residencial, locação social, bolsa-aluguel.
Outro dos elementos da política é a questão fundiária. Em um cenário otimista, se aumentarem muito os recursos para a moradia social, a tendência é que aumente também a concorrência por terrenos, elevando assim os preços da terra. São Paulo já dispõe de alguns instrumentos para enfrentar essa situação, mas eles precisam ser mais bem explorados. O Plano Diretor do município delimitou muitos terrenos e edifícios desocupados como Zonas Especiais de Interesse Social, ou seja, perímetros onde deve ser edificada prioritariamente habitação para os mais pobres. O que falta agora é construir de fato moradias nesses terrenos. Outro instrumento que o Plano Diretor institui é a edificação compulsória em terrenos subutilizados, induzindo os proprietários urbanos a utilizarem suas terras. Para esse instrumento ser aplicado, é necessária a aprovação de uma lei específica na Câmara Municipal, complementando o Plano Diretor.
Não estamos partindo da estaca zero. Nos últimos anos, a cidade vem urbanizando favelas, já contamos com projetos edificados nas regiões centrais, assim como intervenções em cortiços. É necessária uma mudança de escala nessas ações, para que, finalmente, os números da precariedade, do déficit habitacional e da segregação deixem de crescer. É necessário também um posicionamento firme que ajude a reverter a lógica da expulsão e da segregação, garantindo aos mais pobres não apenas um teto, mas uma inserção digna na cidade.
“Nada menos do que 420 mil imóveis foram identificados como vagos no município, cerca de 11% do total de imóveis. Trata-se de mais do que o dobro do déficit habitacional de São Paulo”