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Encontros

por Helouise Costa

Formada em arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a atual vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo (USP), Helouise Costa, começou a se interessar por fotografia nos últimos anos da faculdade. Em 1984, concorreu a uma bolsa de pesquisa da Funarte e foi contemplada, tendo desenvolvido o projeto que resultou no livro A Fotografia Moderna no Brasil (Cosac Naify, 2004) – com co-autoria de Renato Rodrigues da Silva. Algum tempo depois da conclusão desse trabalho, Helouise veio para São Paulo cursar o mestrado na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Foi quando se aprofundou no tema. Depois de uma dissertação sobre a revista O Cruzeiro e a relação entre a fotografia de vanguarda e o fotojornalismo, deu continuidade ao doutorado, realizado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e às investigações sobre a história da fotografia no Brasil por meio de um estudo sobre a obra do fotógrafo francês Jean Manzon, radicado no Brasil em 1940 e considerado o grande inovador do fotojornalismo no país. “O Cruzeiro se renova, ou seja, filia-se ao modelo internacional de fotorreportagem do período entre-guerras a partir da vinda de Jean Manzon para o Brasil”, afirmou ao Conselho Editorial da Revista E durante encontro realizado em agosto. Embora a pesquisadora atue em três áreas – história da arquitetura, fotografia e museu – a sua atenção está sempre voltada para a fotografia no Brasil, tema sobre o qual a convidada da seção Encontros desta edição comentou diversos aspectos e respondeu perguntas dos presentes. A seguir, trechos:


Fotografia brasileira

O fenômeno de valorização da fotografia [brasileira] que vemos hoje precisa ser entendido dentro de uma perspectiva histórica. Há cerca de 20 anos, quando comecei a desenvolver a minha pesquisa sobre a fotografia moderna no Brasil, não havia nenhum estudo significativo sobre esse tema específico, nem mesmo sobre a fotografia brasileira do século 20 em geral. Havia somente alguns poucos estudos sobre o século 19 – os trabalhos de Gilberto Ferrez [historiador que reuniu um acervo de cerca de 15 mil fotografias brasileiras, considerado a mais importante coleção privada de fotografia brasileira do século 19] e do professor Boris Kossoy [também historiador de fotografia]. O século 20, no entanto, era uma área completamente virgem. Além disso, contava-se com uma bibliografia bastante restrita sobre fotografia. Walter Benjamin, Roland Barthes e Susan Sontag eram os autores disponíveis em português e mesmo a bibliografia estrangeira sobre fotografia ainda era limitada. Naquela ocasião, percebi essa lacuna e passei a me dedicar ao tema. Identifiquei que o modernismo na fotografia brasileira havia se constituído enquanto experiência de grupo, de uma maneira sistemática, apenas no ambiente do fotoclubismo. Só que havia um preconceito imenso em relação a essa atividade, considerada elitista – que, de fato, era. Os fotógrafos clubistas consideravam a fotografia como hobby. Tinham outras profissões – eram profissionais liberais, industriais etc. – e adotavam a fotografia como um meio de afirmação cultural e artística. Pois bem, fiz um primeiro levantamento nas publicações dos anos de 1940 e 1950 e cheguei a alguns nomes, entre eles Geraldo de Barros, que na época era praticamente desconhecido como fotógrafo, sendo citado somente como artista concreto. Havia apenas uma referência ao trabalho fotográfico dele no livro Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, da Aracy Amaral. Durante a pesquisa, tive oportunidade de ver os negativos [de Geraldo de Barros] e as cópias fotográficas de época na casa da família. Pude manipular informalmente todo esse material que hoje é valiosíssimo. E é surpreendente afirmar que encontrei muita dificuldade em publicar essa pesquisa, mas isso ocorreu devido ao preconceito que havia em relação ao fotoclubismo. Depois de dez anos de concluída, consegui publicar uma versão muito simples pela Funarte. Em 2004, a situação da fotografia brasileira havia se modificado radicalmente, e a Cosac Naify interessou-se em produzir uma nova edição do livro com ótimas reproduções das fotos. Hoje, esse livro tornou-se uma referência na área e consta da bibliografia de inúmeros cursos de graduação e pós-graduação. Além disso, tem servido como ponto de partida para outros pesquisadores interessados em aprofundar o conhecimento sobre essa produção. Cito esse exemplo porque ele dá conta da profunda mudança no estatuto da fotografia brasileira que ocorre em espaço de tempo relativamente curto. Não é possível ter uma inteligibilidade da fotografia contemporânea sem o conhecimento daquele momento que foi muito rico em experimentações.

A professora e pesquisadora Helouise Costa esteve presente na reunião de pauta do Conselho Editorial da Revista E em 20 de agosto de 2008

Fotoclubismo

Para situar a fotografia moderna brasileira é preciso entender o que foi a experiência do fotoclubismo. A fotografia surge oficialmente em 1839. Desde o início, instaura-se uma discussão acerca do seu estatuto: ela é ciência ou arte? Em um determinado momento, a partir da segunda metade do século 19, diversos grupos de fotógrafos tentam afirmar a fotografia como arte e encontram uma resistência muito forte no sistema de arte acadêmico, cujos valores não permitiam a assimilação da fotografia. Surge, assim, o que nós chamamos de fotoclubismo: pequenas associações de fotógrafos que se reuniam para discutir questões relativas à fotografia – não só técnicas, como também estéticas – e para praticar fotografia. Criou-se uma verdadeira rede de fotoclubes pelo mundo afora. Na Europa, isso ocorreu nas últimas décadas do século 19 e, no Brasil, somente a partir de 1920. Entendo o fotoclubismo como um circuito paralelo às artes, no qual a fotografia buscava se legitimar como manifestação artística. A experiência do Foto Cine Clube Bandeirante, especialmente entre 1945 e 1960, mostra que havia realmente uma pesquisa inovadora em curso e que alguns daqueles fotógrafos, como Geraldo de Barros, German Lorca e Thomaz Farkas, anteciparam questões que a arte brasileira só viria a apresentar algum tempo depois.

 

Revista O Cruzeiro e o fotojornalismo

Foram duas as faces da afirmação do modernismo na fotografia brasileira: de um lado, o fotoclubismo, essa tentativa de afirmação da fotografia como arte, e, de outro lado, o fotojornalismo e a fotodocumentação, que se renovam no Brasil a partir da vinda de fotógrafos estrangeiros. [A revista] O Cruzeiro foi fundada em 1928 e um de seus principais modelos foi a revista francesa Vu, para a qual colaboravam fotógrafos como André Kertész e Man Ray, para citar dois dos nomes mais conhecidos. Mas O Cruzeiro se renova, ou seja, filia-se ao modelo internacional de fotorreportagem do período entre-guerras, a partir da vinda de Jean Manzon para o Brasil [fotógrafo francês radicado no Brasil considerado um inovador do fotojornalismo  brasileiro]. Esse é um fenômeno que ocorre em vários países, ou seja, a disseminação dessa nova linguagem em função das contingências da guerra. Primeiro porque grandes profissionais altamente qualificados, das mais diversas especialidades, como gráficos, impressores, designers, fotógrafos, etc., imigraram da Alemanha para o restante da Europa em função da ascensão do nazismo. Posteriormente, com o advento da Segunda Guerra, muitos desses profissionais acabam vindo para as Américas – profissionais que iriam se tornar pioneiros na implantação não só de uma nova tecnologia, como de uma nova estética nessas diferentes áreas. No Brasil, Jean Manzon atuou como esse agente transformador.


“As faces do modernismo na fotografia brasileira: de um lado, o fotoclubismo, essa tentativa de afirmação da fotografia como arte, e, de outro, o fotojornalismo e a fotodocumentação”