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Entrevista


O doutor em filosofia e professor da Universidade de São Paulo
analisa o comportamento da sociedade contemporânea e o
empobrecimento de sua esfera ética

Foto: Adriana Vichi
 

O livro mais recente do doutor em filosofia Franklin Leopoldo e Silva recebeu o singelo e intrigante nome de Felicidade (Claridade, 2007). Logo no subtítulo, no entanto – Dos Filósofos Pré-Socráticos aos Contemporâneos –, surge uma pista do que guardam as 96 páginas do pequeno volume: “Mostrar que a história das teorias da felicidade representa os diversos critérios que foram adotados para se consegui-la”. A definição veio à tona durante a entrevista que concedeu à Revista E em sua sala no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), onde atualmente leciona história da filosofia contemporânea. Durante a conversa, o autor de Descartes – A Metafísica da Modernidade (Moderna, 2006) e Ética e Literatura em Sartre (Unesp, 2004) pôs sobre a mesa cartas instigantes sobre o comportamento da sociedade da informação e do consumo. “Apesar de estarmos em uma época em que o progresso trouxe muitos meios de realização, você ainda tem um mal-estar que se refere a duas coisas: no sentido da felicidade, ou seja, ninguém se sente completamente realizado, e no sentido da liberdade, aquilo que seria preciso fazer para alcançar a felicidade.” O professor falou ainda de política, democracia e do choque entre os interesses individuais e coletivos num mundo em que, segundo ele, a contestação já não faz mais o mesmo sentido. “Você quer contestar? Tudo bem, você tem um lugar para isso. O sistema é muito amplo e muito poderoso a ponto de comportar essas diferenças”, afirma. A seguir, trechos.

 

Gostaria de começar pelo seu livro Felicidade. O que o levou a escrever sobre algo que continua tão impalpável para a raça humana a despeito de todas as conquistas tecnológicas acumuladas até agora?
A intenção do livro é justamente mostrar que a história das teorias da felicidade representa os diversos critérios adotados para conseguir a felicidade. Ou seja, são expectativas de felicidade que variam desde a Antiguidade até hoje. Tentei fazer mais ou menos um resumo disso exatamente para mostrar que sempre há uma busca de felicidade e, de certa forma, uma frustração, pelo fato de que nenhum critério satisfaz plenamente aquilo que seria a expectativa de felicidade das pessoas. Isso, tanto pelas mudanças sociais e históricas – que fazem com que a imagem da felicidade mude e as pessoas queiram fazer as coisas de forma diferente –, quanto por certo ar de que a vida está sempre incompleta. Seja qual for o critério adotado para conseguir realizar-se e ser feliz, estaria sempre com uma longa distância à frente para chegar propriamente a isso. Então, quis mostrar isso historicamente, que há sempre a busca nunca inteiramente satisfeita, isso foi meu primeiro objetivo. Do ponto de vista mais contemporâneo, quis mostrar que essa situação se repete dentro daquilo que constitui a nossa condição social, tentando tematizar essa espécie de incongruência entre a multiplicação dos meios de realização do ser humano, do ponto de vista do seu bem-estar psíquico, social, existencial, e, ao mesmo tempo, a dificuldade de alcançar esses fins. A conclusão seria mais ou menos esta: apesar de estarmos em uma época em que o progresso trouxe muitos meios de realização, em vários aspectos da vida, você ainda tem certo mal-estar, e esse mal-estar se refere a duas coisas: no sentido da felicidade, ou seja, ninguém se sente completamente realizado, e no sentido da liberdade, aquilo que seria preciso fazer para alcançar a felicidade. Ou seja, a ação livre. O que nossa época trouxe de novo é uma série de ofertas a absorver, presumivelmente, sempre no sentido de que a vida pessoal e a vida coletiva progridam na direção de uma realização cada vez maior. No entanto, esses meios não estão sendo utilizados exatamente no sentido de realização desses fins e isso se deve ao fato de que essas ofertas, essas possibilidades oferecidas às pessoas, não correspondem a um certo grau de liberdade de escolha para transformar essas próprias possibilidades em meios efetivos de realização pessoal, cada um na sua singularidade, ou seja, na realização dos desejos.

 

Não é curioso que isso se dê justamente quando estão no poder as pessoas que lutaram no passado para que tudo fosse diferente no futuro?
Isso é uma coisa que, às vezes, eu tendo a chamar até de misteriosa. Você pode entender que as pessoas mudem ao longo do tempo e ninguém é obrigado a se manter o mesmo a vida inteira. No entanto, quando essas mudanças ferem princípios e o indivíduo passa a adotar princípios contrários àqueles que até então cultivava, você começa a desconfiar dessas mudanças e começa a achá-las pelo menos difíceis de entender. Principalmente quando você tem justamente essa mudança que você citou agora: que parte de uma oposição, de uma liberdade crítica exercida com grande pretensão de radicalidade, para uma certa conformação ao sistema. Você poderia achar, por exemplo, que o indivíduo crítico e contestador, que pretende a transformação política, pode verificar, ao longo da vida, que tem que mudar os meios para justamente conseguir os fins. O que é difícil de entender é que ele deixa de ter esse objetivo. Não é só uma mudança, é uma reviravolta nos princípios éticos e políticos. Fica difícil entender como nós pudemos passar de uma expectativa tão grande de liberdade, muito ativa, no sentido de fazer acontecer, a um conformismo tamanho, no qual as pessoas introjetaram de tal forma a conformação ao sistema que nem sei se há mais a necessidade de repressão. Você não vê uma contestação forte hoje em dia em relação ao sistema. Você vê muita manifestação de apoio, e um certo triunfo, daquela concepção meio naturalista de que não há alternativa, que as coisas e a sociedade são assim como que por natureza. Dizer isso há 40 anos seria um absurdo. O racional hoje é esse: a sociedade é assim por natureza. E quem se opõe a isso, logo, está se opondo à natureza e à razão.

 

“O que nossa época trouxe de novo é uma série de ofertas a absorver, presumivelmente, sempre no sentido de que a vida pessoal e a vida coletiva progridam na direção de uma realização cada vez maior”

Você acredita que esse esvaziamento da política se dá por uma prevalência do aspecto econômico?
Isso ocorre pela transformação da política em administração da sociedade. Houve um tempo em que você tinha a política, mesmo quando exercida por um ou por poucos, como um espaço de uma decisão que tinha reflexo público. Nas fases em que houve, realmente, uma democracia, de fato comunitária, mesmo com as deficiências que sempre houve – como na Grécia, por exemplo –, a democracia não era para todos, mas aqueles que a exerciam, o faziam em total igualdade de condições. Em uma sociedade comunitária, como aquela que existiu na Idade Média, em que havia grande prevalência da autoridade da Igreja, um indivíduo dependia dos outros. O sentido da vida do indivíduo era um sentido comunitário. Depois que você teve essa separação de comunidade e do indivíduo, ele passou a ser o centro. A partir daí, o que interessa a esse indivíduo é administrar os seus interesses pessoais. A sociedade moderna, capitalista, é a sociedade do interesse próprio, que se torna critério. Qual o critério de ação? O interesse próprio, que hoje em dia se chama de empreendedorismo, ou seja, trabalhar em função do seu interesse próprio ou do seu grupo. Portanto, isso é uma coisa que independe de uma discussão comunitária, política, mais ampla. Porque você tem que fazer prevalecer o seu interesse, e não é prioridade sua conjugá-lo ou equilibrá-lo com o dos outros. A partir daí, o que se chama de política passou a ser a administração desses interesses por parte do Estado. Ele cuida para que os interesses próprios dos indivíduos sejam bem atendidos na medida do possível, mas isso significa a ausência desse caráter de discussão, de deliberação comunitária.

 

Alguns personagens recentes não teriam muita vez na nossa história contemporânea. Vamos imaginar uma figura como o Vinicius de Moraes, uma pessoa bem desregrada. Havia algumas pessoas com uma maneira diferente de encarar a vida e a liberdade, que, hoje, se estivessem vivas, seriam classificadas com algum distúrbio – como bipolares ou maníaco-depressivas. O que houve?
No meu entender, a causa disso é o predomínio de certa funcionalidade social. O que interessa é que a sociedade funcione. Ela tem que funcionar por meio de certas regras internas que possam vir a contrabalançar as vantagens individuais e colocar todo mundo dentro de uma certa média chamada de normalidade. É por isso que causa mal-estar nas pessoas ver alguém que não siga exatamente esses padrões e que, no entanto, o fato de não seguir esses padrões seja algo produtivo, bonito. Por exemplo, um artista, um poeta, como você citou. A questão é que houve um tempo em que todo mundo acreditava que o indivíduo dito anormal era aquele que possuía um déficit. A partir de certo momento, viu- se que, na verdade, muitas vezes a anormalidade é apenas e tão somente o rompimento das regras funcionais, e que o indivíduo não tem déficit nenhum – pelo contrário, ele pode romper a funcionalidade social porque nele a vida se manifesta com uma exuberância maior do que nos outros. Isso não é aceito, a não ser que seja muito bem circunscrito. Isto é, você não pode aceitar isso como um modo de vida, porque rompe a funcionalidade social e dificulta os dispositivos de controle – que não pretendem reprimir ninguém, mas manter todo mundo dentro de uma certa funcionalidade vista como normalidade. O indivíduo aceita isso porque o padrão de funcionalidade permite que ele resolva muitos problemas por si mesmo, faz com que não precise ser criativo, não precise ser inventivo, não precise ser livre, basta entrar no padrão de funcionalidade. Isso é bem aceito, a sociedade assim é vista como sadia. À parte, você tem os marginais, os tolerados e os não tolerados. Mas tudo vem dessa predominância da funcionalidade, uma coisa bem própria da sociedade capitalista: tem que funcionar sistemicamente. O sistema, na medida em que se torna mais poderoso, tem capacidade de absorver certas excentricidades. Por isso que a contestação hoje em dia não faz o mesmo sentido que antes. “Você quer contestar? Tudo bem, você tem um lugar para isso.” Você pode contestar, protestar, mas dentro de certos limites, porque a própria funcionalidade aceita e designa um lugar para isso. O sistema é muito amplo e muito poderoso a ponto de comportar essas diferenças.

 

Nesse sentido, há quem veja como perigosos mecanismos como o da democracia direta – plebiscitos e consultas populares, por exemplo. Como você vê isso?
Em princípio, a democracia deveria ser direta. Em princípio. Mas, no ponto a que nós chegamos, da complexidade social e da evolução do sistema, as tentativas de aproximar a nossa democracia informal de uma democracia direta só podem ser feitas no interior do sistema. O plebiscito, por exemplo, pode resultar naquilo que o sistema encaminha como sendo preferível, basta a maneira pela qual você realiza o plebiscito: faz a propaganda, forma a opinião. Você pode ter um evento desse tipo sem que o sistema corra algum risco de desestabilização. Basta ampliar as técnicas de marketing político, que são as mesmas de uma eleição, só que você tem que lidar com elas de maneira diferente, como algo mais amplo, que vai atingir uma faixa maior, mais diversificada de público. Mas você pode lidar com isso tecnicamente, hoje em dia há condições de fazer com que, em grande parte, os resultados eleitorais se encaminhem sempre para certa manutenção da funcionalidade do sistema, com as adaptações necessárias a essa possibilidade. A gente está vendo isso agora, com as eleições americanas. O Obama pode ganhar, talvez vá ganhar, então está havendo uma adaptação da funcionalidade. Aquele fundamentalismo do Bush vai desaparecer, mas não vai haver grandes mudanças do ponto de vista da estrutura do sistema, porque isso não pode acontecer.

 

 “(...) sempre há uma busca de felicidade e, de certa forma, uma frustração, pelo fato de que nenhum critério satisfaz plenamente aquilo que seria a expectativa de felicidade das pessoas. Isso, tanto pelas mudanças sociais e históricas (...)”

O que você acha dessa figura mítica que os tempos modernos nos trouxeram chamada de opinião pública? Fala-se hoje: “A opinião pública não quer isso, não quer aquilo”. Mas, na verdade, não se conhece nem se constata essa opinião pública, ela se manifesta, às vezes, por pesquisa ou muito pela mídia. Como se dá isso?
Para que houvesse alguma coisa que se pudesse denominar de opinião pública, seria preciso ter o espaço público de formação dessa opinião, uma dimensão pública. Aí você está na democracia, em que a sociedade civil se manifesta com autonomia e daí surge a sua opinião, por meio de discussões, de vários procedimentos. É muito difícil ver hoje algum tipo de democracia em que o espaço público funcione efetivamente. O que se tem é aquilo que Jürgen Habermas [filósofo e sociólogo alemão] chamou de colonização do espaço público pelo Estado. Ou seja, uma colonização da sociedade civil, do espaço público, pelo Estado, que aparentemente enfraqueceu, não interfere tanto na economia, mas é muito forte como representante dos interesses corporativos. O Estado não é forte por ele mesmo, mas ele é suficientemente forte para que os interesses privados, que devem prevalecer, prevaleçam. Os interesses das grandes corporações. Esse é o papel, hoje, do Estado e dos governos. Você não tem, realmente, um espaço público de discussão democrática, em que a opinião pudesse se formar autonomamente, isenta de manipulações. O que a mídia divulga é esse espaço público colonizável, manipulável, e, quando você vai recolher aquilo que seria uma opinião pública, você recolhe aquilo que você plantou lá. A mídia faz muito isso.

 

E qual é o espaço da mídia? Ela deixou seu lugar original para ocupar outro, o de avocar preceitos morais?
Acho que o principal problema da mídia é ter se constituído como poder. Ela se autoconstituiu assim – tanto é que se fala em quarto poder. Isso, na minha opinião, é uma coisa que distorce sua função informativa. Porque o poder está sendo exercido. A mídia lida com a informação, e o que ela faz? Tenta exercer poder por meio da informação. Seja o poder de um grupo, de um governo, depende da situação, depende das circunstâncias. Mas a principal questão é entender que lidar com a informação, veicular a informação é coisa que tem a ver com o poder, quando, na verdade, a informação deveria estar a serviço do questionamento do poder, você deveria oferecer ao cidadão aquilo que é necessário para ele, depois, refletir sobre o poder, contrapor-se ao poder e não se submeter a ele. Acho que isso é uma distorção que ainda rende muito tempo, porque a mídia interiorizou a idéia de que ela tem um poder e deve exercê-lo. Às vezes até com a intenção de se contrapor ao poder do Estado e impedir que ele se torne totalitário e essa coisa toda, mas esse exercício do poder leva a esse risco, da insubordinação do cidadão pela informação que você fornece a ele.

 

Você acredita que o Estado hoje interfere cada vez mais fortemente na liberdade individual?
Sim. Porque a relação entre ética e política deixou de ser de continuidade. Hoje, quando se pensa em resolver um tipo de problema, a primeira coisa que vem à tona é a norma, e não uma discussão que pudesse levar a essa norma. A não ser quando a mobilização e a discussão estejam contaminadas pelo interesse de um partido ou de outro, de um grupo ou de outro. Aí você tem discussão, mobilização, manifestação. Mas, se percebe que não é a sociedade que está discutindo algo, são grupos de interesse. A partir daí o objetivo é chegar logo a uma norma, e acabou a discussão, a norma vigora. Ou seja, um empobrecimento da esfera ética faz com que você tenha de resolver tudo por meio do jurídico. Vou pegar um exemplo particular: o aborto para fetos anencéfalos. A gente deveria começar a discutir se isso é um problema ético ou se é um problema jurídico. Se é um problema ético, o Supremo Tribunal não teria por que se pronunciar por meio de uma norma, porque normas éticas não são normas jurídicas. Normas éticas são normas aceitas e praticadas por uma sociedade que concorda com elas, não é uma norma que envolve punição, nada disso. A esfera do jurídico é uma coisa, a ética é outra. Têm relação, mas são coisas separadas. Como nós temos um esvaziamento ético, tudo vai para o jurídico. E você se desobriga da discussão ética.

 

 

“Hoje, quando se pensa em resolver um tipo de problema, a primeira coisa que vem à tona é a norma, e não uma discussão que pudesse levar a essa norma”

Estamos em plena campanha para a prefeitura de São Paulo, uma das maiores e mais ricas cidades do mundo. Nos jornais, se discute saúde, transporte, ou seja, todo candidato tem que ter opinião sobre esses assuntos. Você acha possível acrescentar outras questões, talvez menos “tradicionais”, como se São Paulo deve diminuir o número de veículos no trânsito?
O indivíduo que fizesse esse discurso seria considerado excêntrico, maluco ou, de uma maneira mais benevolente, utópico. Mas isso mostra quanto o exercício do poder, o exercício da política, já está ligado a precondições sistêmicas que não podem ser mudadas. Qualquer pessoa com bom senso aceitaria que emplacar 800 novos carros por dia [números fornecidos pelo Departamento Estadual de Trânsito, Detran, referentes à capital] é uma situação caótica. Mas você não pode fazer nada a respeito porque uma das precondições para o exercício do poder político é que haja montadoras, fábricas de automóvel, interesses corporativos por trás dos 800 carros que entram por dia na cidade. “Tudo bem, entram 800 carros e isso é bom porque significa que todo mundo está comprando carro, então eu vou construir mais dez avenidas. Não, vou construir 14.” Então fica aquele ritual de mudar para continuar o mesmo. Ninguém questiona a origem do problema no sentido da responsabilidade com as próprias formas de existir. Você nunca fala, por exemplo, que não pode cortar árvore. Você fala sempre do manejo, da regulamentação, de como fazer para não causar muito problema. E assim acontece com a inflação das grandes cidades: supõe-se que o progresso é uma coisa que seria loucura reverter. Você não pode pensar nisso, você tem que pensar a partir desse progresso irreversível. Mas, quando se chega em uma situação em que a coisa fica inviável, é cada vez mais difícil fazer isso, porque a situação chega a um ponto muito crítico. E o que vira a campanha política? Vira um ritual de propostas que todo mundo sabe que não vão resolver nada. É a democracia formal. Você vai votar em alguém ou não vai votar em ninguém? Vai votar nulo? Mas no fundo todo mundo sabe que não é para esperar grande coisa. E, no fundo, do jeito que a coisa está sendo feita, não há o que se fazer como um cidadão, como um sujeito político. Como interferir no grande sistema que está posto aí? Então vira um ritual, em vez de virar uma discussão séria, vira um ritual e todo mundo aceita o jogo.

 


“Depois que você teve a separação de comunidade e do indivíduo, ele passou a ser o centro. A partir daí o que interessa a esse indivíduo é administrar os seus interesses pessoais”