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Histórias Possíveis


A cantora e musicista norte-americana Laurie Anderson, que passou por São Paulo com sua nova turnê, fala do papel da arte nas discussões políticas 


A norte-americana Laurie Anderson, formada em história da arte, iniciou a carreira artística como performer, em Nova York, no começo dos anos de 1970. Em 1981, incorporou a música em seu trabalho e gravou o álbum O Superman (For Massenet) – cuja canção-título aparece também em Big Science, de 1982, fruto de seu primeiro contrato com uma grande gravadora, a Warner. O sucesso da música a alçou ao posto de popstar avant-garde, ou seja, famosa, mas fortemente ligada ao experimentalismo e à pesquisa, posição que Laurie ocupou durante toda a década de 1980. Ao longo da trajetória, a artista foi se afastando da fama, mas conquistando cada vez mais prestígio. Sua carreira é composta de numerosas performances, exposições, discos e colaborações diversas – com nomes que vão do cantor britânico Peter Gabriel ao renomado compositor norte-americano Philip Glass, passando pelo produtor e músico inglês Brian Eno e pelo tecladista e performer francês Jean Michel Jarre. Seus temas prediletos dizem respeito à tecnologia e seus efeitos sobre as relações humanas, tratando também de questões políticas, como faz em Homeland [terra natal], turnê com a qual passou pelo Brasil – abrindo a 15ª edição do festival de teatro Porto Alegre Em Cena, no dia 2 de setembro, e apresentando-se no Sesc Pinheiros, nos dias 5 e 6 do mês passado. Num bate-papo exclusivo com a Revista E, no lobby do hotel onde ficou hospedada na capital, a artista falou sobre seu novo show, que antecipa o próximo álbum, previsto para o início de 2009, sobre a postura dos artistas norte-americanos diante do governo de George Bush e afirma: “Depois do 11 de setembro, os nova-iorquinos não queriam vingança”. A seguir, trechos da conversa.


Principalmente quando você fala sobre política é preciso haver um pouco de leveza, porque odeio pessoas me dizendo o que fazer. O que penso é: “Você nem me conhece, por que está me dizendo o que pensar?”. Por isso uso essa mão mais leve no modo de lidar com opiniões [políticas]. Meu show é uma imagem possível. As pessoas podem vir e não se identificar com o que apresento no palco. Aquilo é o que penso, mas as pessoas não precisam da minha opinião. Por isso, às vezes, tento fazer as coisas de uma maneira mais sutil. Mas acredito que, mesmo dessa forma mais light, a crítica pode ser suficientemente forte. Porque o mundo é tão duro, tão difícil, que coisas com senso de humor tendem a quebrar essa realidade cinza. Um exemplo rápido: nossa mídia, nossos “jornalistas”, o que eles fazem na verdade é entretenimento. Eles criam histórias e elas têm de ser cada vez mais curtas, mais simples. Mistura-se fofoca com o que seria jornalismo de fato. Enfim, é um show. E tudo bem, só que penso que, sendo assim, talvez os entertainers possam ser jornalistas – já que jornalistas podem ser entertainers. Afinal, lidamos com as mesmas histórias: “o que é o mundo”, “quem é você”, “o que vai ser o futuro”, “qual é o seu passado”, “o que o seu país representa”. Essas são as nossas histórias.

Laurie Anderson, cantora e musicista norte-americana

São palavras, e palavras são superperigosas, ?elas podem começar uma guerra. É só lembrar de George Bush falando de terrorismo, ditadores, armas de destruição em massa no Iraque... Só que, espere um minuto! Já ouvi essa história antes, muitos anos atrás, [refere-se ao governo de George Bush pai, de 1989 a 1993], e isso não era verdade. Mas as pessoas ainda caem nessa. E você acaba percebendo que, no fundo, não importa se a história é real, o que vale é se é uma boa história. Então há lá o bandido, o vilão, a caça ao tesouro, enfim, essas coisas todas, que rendem boas histórias. Só que ele [Bush filho] sabe disso. Nosso governo [o governo norte-americano] é um bom contador de histórias, ele sabe como tecer uma história sobre quem você é, o que você é. Então, penso: se eles têm a história deles, vou fazer a minha, que chamo Homeland, e que trata de todas essas questões. 



Intimidados

Não acho a postura e as reações dos artistas norte-americanos suficientemente contundentes [a respeito da política internacional dos Estados Unidos, da guerra e da “luta contra o terrorismo” declarada por George W.  Bush]. E é esse um dos motivos pelos quais criei Homeland. Estou pasma com o modo como a maioria dos músicos, dos artistas e dos intelectuais norte-americanos está lidando com isso. Eles não dizem nada. É um grande silêncio, mas sei que há muita pressão. A última pessoa a dizer algo, há anos, foi Susan Sontag [1933-2004, escritora, crítica de arte e ativista norte-americana]. Quando as Torres Gêmeas foram atacadas, Bush disse que as pessoas que fizeram aquilo eram covardes. Susan se levantou e retrucou: “Você pode dizer muita coisa sobre essas pessoas, menos que elas sejam covardes”. Claro, eles seqüestraram aviões e destruíram o World Trade Center, não dá para dizer que eles são covardes, me desculpe. Ela foi muito atacada por ter dito isso, disseram que ela não deveria fazer tal coisa etc. Ou seja... Falem sobre o assunto! Mas as pessoas ficam intimidadas. Muitos artistas norte-americanos são contra o Bush, mas não dizem isso. E por quê? Eles se sentem intimidados. Enfim, eu amo os Estados Unidos, acho um lugar maravilhoso, realmente gosto, mas não é um lugar perfeito, não existe lugar perfeito no mundo. E nós [norte-americanos] temos muitos, muitos, problemas.


Escolhi ser artista porque sou livre, me sinto livre, não acho que deva haver regras. E, quando a liberdade das pessoas é limitada, fico maluca – sobretudo, a liberdade de expressão. Porque os Estados Unidos eram para ser a terra da liberdade, para você se levantar e dizer o que quisesse. Claro, menos difamar pessoas, chamar alguém de assassino sem provas. Mas era para você expressar a sua opinião sobre as coisas.



Indústria do ódio

Depois do 11 de setembro, os nova-iorquinos não queriam vingança. A postura era: “Aconteceu”. E não “Argh! Nossa cidade!!!” [faz gestos de protesto]. Ou seja, eles tinham consciência de que a questão era que aquilo não poderia acontecer com mais ninguém nunca, e ponto. Mas foi erguida uma imagem – sentimental e baseada nas “bravas vítimas de Nova York” – de que todos clamavam por vingança. Mas os cidadãos não pensavam assim.


Eles não se acham vítimas. Algo como: “Nova York não está a fim de representar o papel de vítima, muito obrigada”. Aquela experiência mudou para sempre aquela cidade no sentido de enternecê-la. Os nova-iorquinos têm fama de “bonzões”, “descolados” etc., mas existe uma questão: se isso acontecesse na sua cidade, as pessoas iriam se ajudar ou virar as costas? Essa é uma pulga atrás da orelha. Como seria? Só vendo para saber.


E nós vimos, as pessoas [os nova-iorquinos] se ajudaram umas às outras. Ou seja, o ocorrido criou uma atmosfera completamente diferente na cidade. Dá até para imaginar as pessoas pensando: “Nossa! Você não me abandonaria, você me ajudaria!”. E, seis anos depois, o que se vê na TV são imagens dos prédios em chamas, das pessoas pulando lá de cima. Agora, por que usar isso? Foi há muito tempo, essas imagens não precisam ser mostradas de novo para aquelas pessoas. É uma máquina de produzir ódio e paranóia. Você cria uma sociedade de liberdade limitada e uma cultura de crise. E veja que Nova York não é tão ruim, nesse sentido, quanto Londres. No centro de Londres há 15 câmeras filmando cada pessoa constantemente. Isso não acontece em Nova York... Ainda. Por isso, digo, não falo por outras pessoas, mas sinto a necessidade de, com Homeland, dizer “essa é a minha história”. Trata-se de dar outro panorama das coisas, diferente do que a propaganda mostra.



“Não acho a postura e as reações dos artistas norte-americanos suficientemente contundentes. E é esse um dos motivos pelos quais criei Homeland”