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Memórias de Vertigem

por Shirlei Torres Perez

Assumida ou escondida, de alegria, vontade secreta de fugir de casa, desejo de virar trapezista ou medo de palhaço – sempre existe, em cada um de nós, uma lembrança guardada do Circo, que salta apressada à simples menção da idéia. Com ou sem pipoca, com ou sem arquibancada, de novidade ou tradição, apesar de todas as classificações e formas, não se discute – Circo é Circo. Qualquer criança reconhece.


Arte popular por excelência, o Circo traz em seu cerne as sementes do teatro, ou da arte de cena, condensando e potencializando alguns de seus constituintes mais caros, para criar sua linguagem específica, que se aproxima e se afasta do teatro, da dança e das artes visuais através da história, conservando, no entanto, a memória dos rituais, a celebração do poder sobre o natural, e, por favor, querendo a paga por seus poderes extraordinários de retirar da mesmice, por instantes, o respeitável público.


A história do Circo confunde-se com a história da capacidade de imaginar, do lúdico e do desejo de transcender. Já na China de 5.000 a.C., em pinturas rupestres de acrobatas e malabares, ou na Grécia de 300 a.C., na Idade Média dos saltimbancos ou nos espetáculos de Astley, o Franconi, no Século 18, já organizados como função de variedades – como se desenvolveu ao longo dos séculos seguintes – e, mais recentemente, com os espetáculos do “Novo Circo”, a partir do final do século 20, o artista apresenta ao público algo impressionante, e recebe em troca uma admiração irrestrita – irrestrita enquanto duram os limites da cena. Fora dela, precisa, como qualquer mortal, prover seu sustento e encontrar uma posição na organização social, nem que seja à sua margem – ou, justiça seja feita, eventualmente em destaque.


Enquanto o homem vai aprendendo a dominar a natureza, o artista oferece a habilidade de brincar com o corpo e os objetos. Enquanto a sociedade se organiza em feudos, depois em cidades, preocupada com a sobrevivência e a salvação de sua alma, o saltimbanco percorre as feiras, desafia os templos e exibe aberrações.


Quando se acredita no pensamento, o espetáculo oferece o ilusionismo; e nos domínios da recém-descoberta técnica, é sempre a técnica que é desafiada pelo artista. Sendo a arte do extraordinário, a organização dos artistas e grupos também oferece uma licença para o exercício de nossa imaginação romântica: não é verdade que, no Brasil, quanto mais se criaram regras de bons costumes e vida em sociedade, as famílias circenses percorriam as estradas levando, com o espetáculo, um frio na barriga, ou uma ponta de inveja, aos pais e filhas de boa família? Não é verdade que hoje – em meio a uma realidade entre medieval e contemporânea em seus modos de sobrevivência – o Circo persiste dando conta de manter o artista tanto nas feiras quanto nas academias – às vezes podendo viver de sua arte, às vezes sem sustento digno? Desdobra-se em trabalho social e em auto-estima, e também permite tornar-se grande indústria?


No entanto, mais que tudo, a grande marca do Circo, o elemento comum a qualquer função digna desse nome, independente do rótulo, personalidade, duração, ou período em que exista, é a vertigem. O momento em que o público suspende a respiração na hora do salto, percebe a fluidez da segurança do ensaio e da técnica caminhando sobre o fio tenso do acaso. O Circo carrega ao longo dos tempos a responsabilidade de se manter em exercício a coragem e o desafio ao destino, a crença no herói ou super-homem, pois nos entregamos ao flerte com os precipícios além do risco extremo, nos limites da emoção.

 

Shirlei Torres Perez, bacharel em teatro, é coordenadora de programação do Sesc Vila Mariana