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Ficção Inédita




E ainda ríamos
e ainda corríamos
e ainda nos jogávamos
nos botes do amor
mas era muito mais longe
e mais profundo
que pensávamos

Lawrence Ferlinghetti
Um parque de diversões da cabeça (1958)

 

Os loucos anos setenta

por Fernando Bonassi

Eu deveria ter percebido...
Naquela época as costeletas cruzavam o rosto e podiam avançar boca adentro, de maneira que morder um sanduíche, por exemplo, exigia um certo controle da expressão facial, se você não quisesse repuxar a própria bochecha ou engolir pêlos. Tingíamos nossas lamentáveis camisetas brancas, amarrando-as e mergulhando-as como condenadas à morte em baldes de tintura tóxica fervente, espalhando asma e câncer pela vizinhança. As barras das multicoloridas calças boca-de-sino varriam as calçadas abandonadas e, sobre os sapatos de salto carrapeta, com plataformas erguidas a quinze centímetros do solo, havia pouco o que temer...


Sim... talvez fosse pouco... mas era ostensivo. Na escola, as bandeiras paulista e brasileira eram hasteadas às segundas-feiras e o hino nacional, cantado todos os dias, ?zesse sol, nevasse ou chovesse canivete.

Ganhávamos cartilhas do Grupo Votorantim e da Ultragás, pra aprendermos a ser bons brasileiros; entendendo como bons brasileiros os babacas que sabiam de cor a letra e a melodia do “Hino nacional” e do “Hino à bandeira do Brasil”, é lógico, mas também do “Hino à República”, da “Canção do expedicionário”, da “Canção do soldado”, do “Desperta Brasil”, do “Meu caboclo”, do “Eu te amo, meu Brasil”, do dobrado do “Capitão Caçulo” e de mais duas dúzias de marchinhas infernais, meio militares, meio carnavalescas, exaltando a índole e o comportamento dos infelizes. Os professores varejavam pela turma per?lada na quadra, tentando identi?car maus elementos que se recusavam a cantar, ou simplesmente pontuavam a cerimônia com peidos e arrotos antipatrióticos.


Uma vez por ano um cara aparecia com um caixote esquisito, coberto por uma manta puída. Era uma câmera fotográ?ca. Juro. A prova é que tirávamos fotos diante do mapa do Brasil e do brasão nacional: punham uma mesa no pátio, uma toalha rendada por cima, um vaso com uma flor de plástico, alguns livros e cadernos, nossas mãos empunhando lápis e, diante desse cenário inesquecível, uma cartolina com o nome do colégio, o ano, a série, o número de chamada e a classe à qual pertencíamos. Tenho umas três ou quatro dessas obras-primas, amarradas em capas de camurça por uns penduricalhos vermelhos. Nunca colocaram o nosso nome. Só aquele monte de números arrumadinhos na cartolina... Acho que ninguém podia ser alguém naquela época...
A Independência fazia 150 anos, depois mais alguns. A Orquestra Sinfônica Brasileira estava sempre por lá, entre fardada e produzida pra des?le de miss, tocando uns dobradinhos, um Beethoven e alguns Wagners, que eles gostavam daqueles pratos e bumbos batendo como se as portas do céu fossem despencar nas nossas cabeças.

Havia esses shows cívicos com luzes e cores no Ipiranga e as vibrantes exposições do exército atraíam dezenas de milhares de visitantes ao Ibirapuera. Subíamos em tanques, brincávamos de pilotar caças, aprendíamos a operar baterias antiaéreas e canhões de cinqüenta milímetros. Ganhávamos chapéus de papelão com logotipos das Forças Armadas, bandeirolas do Clube dos Sargentos e pirulitos da Kibon. Bem que meu pai me disse:


– Se quiser subir na vida, meu ?lho, seja militar... ou estude muito!

Eu deveria ter percebido...

Era um tempo que misturava medo e orgulho, tradição e mentiras fantásticas sobre o nosso futuro, estradas que ligavam o nada com coisa alguma, pontes monumentais, hidrelétricas monumentais e uma sensação de burrice e tédio, igualmente monumentais. Era um tempo em que, apesar do barulho que se fazia, sentíamos um silêncio cheio de eco latejando nas nossas orelhas. Nossas heroínas eram as garotas que dobravam as saias cinza-chumbo do uniforme, prendendo a barra com pedaços de esparadrapo (a primeira coxa a gente nunca esquece...).

 

As doenças mais temíveis continuavam sendo as venéreas, mas estavam longe de ser mortais. O melhor dos mundos era verde-e-amarelo. Fora disso ou daquilo, era vermelho e comunista e ateu e drogado e perverso e tinha mais é que levar porrada!


Meu pai consertava geradores. Se hoje o fornecimento de energia elétrica é quase con?ável, naquela época não se podia dizer o mesmo. Nas casas e fábricas ainda era possível acender uma luz ou outra, desde que ninguém resolvesse tomar banho de chuveiro ao mesmo tempo. Aqueles que precisavam de ligações especiais (como feiras de cavalos, circos e parques de diversões, por exemplo) eram os que mais sofriam. Afinal, as tais “ligações especiais” que a companhia de energia fazia eram rmes como bêbados subindo ao contrário em escadas rolantes. Quem, hoje com seus quarenta anos, nunca ficou preso numa roda-gigante, crente de que seria esquecido naquela altura inominável para todo o sempre? E o Chapéu Mexicano, que costumava parar de uma vez, lançando os alegres passageiros nos mais distantes quintais suburbanos? Era também o início das glórias automobilísticas brasileiras, quando Roberto Carlos e os caracóis de seus cabelos se lançavam pelas curvas da estrada de Santos e Emerson Fittipaldi, com seu nariz aerodinâmico, arrasava na Fórmula 1. Enquanto ele era campeão com sua Lotus preta e dourada, toda uma geração de “bons brasileiros” se arrebentava nas célebres pistas de choque italianas, aqueles chiqueirinhos com carrinhos bate-bate emborrachados, movidos à eletricidade, imitações de Alfa Romeos que mais pareciam enceradeiras.


Só que... eu deveria ter percebido... os tempos estavam mudando. Sim, estavam, mas em casa sempre fomos muito ruins no que diz respeito a “perceber que os tempos estão mudando”, de forma que, por essas e outras, quando meu pai foi procurado pelo Homem Mais Gordo do Mundo, um barril de 1.500 litros, dono de um parque de diversões revoltado com os prejuízos causados pelos picos de energia, bem, ele imaginou que poderia ?car rico. A?nal, ainda era possível jogar futebol nas travessas da rua da Mooca. Havia sempre um circo no horizonte e, quando não, um parquinho! Assim, ele planejou criar uma máquina que pudesse vender não apenas ao primeiro cliente, mas a todos os outros, povoando os parques de diversões do planeta com sua inovação tecnológica!


Eu deveria ter percebido...


Bem... quando uma grande novidade tecnológica é desenvolvida, anos e anos de pesquisa são consumidos em projetos, testes e protótipos. Com o meu pai não foi diferente. Passara até a trabalhar nos ?ns de semana (pelo menos era o que dizia à minha mãe). Tinha realmente resolvido investir toda a sua criatividade (e, lamentavelmente, dinheiro) pra resolver o problema daqueles negociantes gordos esparramados em bancos de Opala. Foram meses só nos desenhos e cálculos. Encomendava peças especialmente torneadas, chaves e relés exclusivos. Não funcionavam... Voltava a desenhar e calcular até atingir seus objetivos, que sempre divergiam da entrega dos fornecedores, mas o tempo não esperava. Os serviços cotidianos da o?cina iam ?cando pelos cantos.

Qualquer conserto podia demorar semanas, torrando a paciência dos clientes mais ?éis. Demorou muito mesmo... eu deveria ter percebido... mas acabou ?cando pronto. O troço era como um regulador de voltagem gigante. Uma caixa pintada de preto fosco, trambolhuda, cheia de bobinas e leds e alavancas e botõezinhos, especialmente desenvolvida para poupar os equipamentos dos caprichos da rede elétrica, desligando-se e religando-se suavemente em caso de corte de energia. Segundo meu pai, o resultado era perfeito...

Eu deveria...


Acontece que a “caixa-preta” foi posta à venda justamente quando começaram a fazer propaganda de uns jogos esquisitos conectados à televisão. Se o meu pai fosse engenheiro eletrônico, talvez tivesse notado que o videogame parecia ser a tendência mais promissora do mercado de diversões, e não a roda-gigante. Só que ele era eletricista. Do tempo em que “parque de diversões” era o quintal de uma colônia de italianos, onde as brincadeiras das crianças se arranjavam com os paus e pedras que encontravam pelo caminho.


O fato é que quando meu pai foi procurar o Homem Mais Gordo do Mundo descobriu que ele tinha falido. E mais, que, se o encontrasse, havia uma centena de pessoas também com assuntos urgentes pra tratar com o dito-cujo caloteiro. Diziam isso exibindo leques amarelados de cheques sem fundos, promissórias e papéis timbrados de tribunais e advogados.


Meu pai não desistiu. Como ninguém comprava o negócio, resolveu alugar. Mal amanhecia, saía oferecendo o aparelho pelos parques. Uns ?cavam por alguns dias, como teste. Outros recusavam de cara. Talvez porque minha mãe descon?asse (ela não era lá muito fácil, também...), passei a acompanhá-lo nesses périplos. Torrávamos dois tanques de gasolina às sextas e sábados na Kombi 62 lotada de ferramentas, ?os e fusíveis.

 Passeávamos com aquela coisa de um lado a outro da cidade. Íamos cada vez mais longe.


Eu deveria ter notado...

Sim, pois os terrenos esquecidos começaram a ser lembrados e onde antes poderia haver um jegue pastando, uma favela fermentando ou, quem sabe, um simples parque de diversões, agora havia um prédio de “apertamentos”, onde os miseráveis preferiam se amontoar diante da tv, em vez de pagar ingressos pra se divertir.


O interesse por dinossauros de ferro, música brega, algodão-doce e luzinhas chinesas estava realmente se deteriorando muito depressa naqueles anos. Quem dispunha de quinze, vinte equipamentos (incluindo aí pistas de choque, tobogãs e até montanhas-russas) começou a restringir seu patrimônio ao que era mais procurado. No caso, os velhos carrosséis, trens fantasmas e rodas-gigantes, onde os namorados mais pobres e excitados tinham alguma privacidade pra ?car se esfregando... de todo modo, mesmo os mais previdentes acabavam terminando no buraco da falência.


Eu deveria ter percebido que um país estava acabando e outro, começando, enquanto passava as noites frias entre maçãs-do-amor, cachorros-quentes e cafés fumegantes, torcendo pra que reconhecessem a originalidade elétrica do meu pai... mas, a?nal, nem tudo é como a gente quer. Aliás, nada é. Não se iludam. Os parques sumiram e os videogames venceram. É isso aí. Se a minha família fosse herdeira da Sony, eu nem estaria reclamando. O que eu sei é que a tal caixa-preta enferrujou nos fundos da o?cina e foi vendida como sucata em 1979. Finalmente, pela primeira vez, descontando a gasolina até o ferro-velho, a invenção deu algum lucro.

 

Fernando Bonassi é autor, entre outros livros, de A Boca do Mundo (Novo Século, 2007). Os Loucos Anos Setenta é o primeiro capítulo do livro Montanha Russa, parte da coleção juvenil Ópera Urbana.