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Capa - Aula no Picadeiro


As escolas de circo, hoje cada vez mais populares, formam as futuras gerações dessa arte secular e se consolidam como opção lúdica de atividade física
 

 

Os circenses Alessandro Leite e Guto Moura

Desde seus primórdios, o circo tem como uma das principais características a tradição de arte e técnica passada de pai para filho. “De mestre para discípulo”, como escreve a pesquisadora Alice Viveiros de Castro no livro O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005). Esse modelo se sustenta até hoje em companhias tradicionais que viajam pelo Brasil, garantindo o romantismo e a magia da arte sob a lona.

Ocorre, porém, que, na década de 1980, o picadeiro já tinha perdido o glamour e a popularidade de antes – sobretudo pela concorrência com formas mais modernas de comunicação de massa. Mas foi nessa mesma época que uma nova história passou a ser contada. Os protagonistas foram jovens atores sem vínculo com famílias tradicionais de circo que traçaram diferentes rumos para essa arte. “Nos anos de 1980, esses jovens começaram a freqüentar escolas de circo e, fascinados, descobriram um mundo novo e maravilhoso [para as artes cênicas]”, explica Alice Viveiros de Castro. “Mas eles queriam fazer circo com a cara deles. E eles gostavam de rock, jogavam capoeira, queriam brincar com os chavões da trapezista de maiô, do apresentador falando ‘respeitável público’ e do malabarista dançando mambo” (veja boxe O eterno circo novo).

Entre esses jovens, estava o ator Jairo Mattos, que afirma que o circo interceptou sua formação. “Eu saí do teatro, fui para o circo e só voltei quase 10 anos depois.” O ator e dramaturgo Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, explica que o advento das escolas significou um “momento de transformação” para o circo. “Foi um choque”, declara. “Mas algo que resultou num caldo cultural que ainda vai render muitos frutos. Acho que nós somos as primeiras sementes, ainda vai vir gente muito legal.”


Ascensão das escolas

O desejo de criar uma escola de circo habitava as cabeças brilhantes dos palhaços Piolim e Chicharrão já nas primeiras décadas do século 20. Mas foi apenas nos anos de 1980, mais precisamente em 1982, que o sonho dos velhos mestres tornou-se realidade com a criação da Escola Nacional de Circo, uma iniciativa do empresário e produtor de teatro Orlando Miranda. “Por mudanças de valores, os circenses passaram a pôr os seus filhos para estudar, para fazer um curso universitário”, conta Omar Eliott, atual diretora da escola carioca – hoje vinculada à Fundação Nacional de Artes (Funarte) –, no livro O Circo no Brasil (Fundação Nacional das Artes e Atração Produções Ilimitadas, 1998), de Antonio Torres. “[os pais] Não querem que eles [os filhos] continuem o trabalho artístico no circo, e sim na parte administrativa. Para não serem mais roubados na bilheteria”. A diretora segue explicando que, seja por essa nova realidade ou pela necessidade de continuação do aprendizado, o fato é que cada vez mais iniciativas começaram a surgir desde a criação de Orlando Miranda, “dando continuidade ao trabalho de Miroel Silveira e do Piolim, em São Paulo, do grupo paulista que fundou a Escola Picolino, na Bahia, e de outros empreendimentos do gênero”, informa Omar.

Fernando Sampaio, da Cia La Mínima

A primeira “sala de aula” pós-Escola Nacional a surgir em São Paulo foi o Circo Escola Picadeiro, fundado em 1984 pelo artista circense – de família tradicional dos picadeiros – José Wilson Leite. “Havia na época um circo chamado Tenda Tela Teatro, um circo todo branco, que fazia uns espetáculos baseados em Maiakovski e que começou a trabalhar na periferia com o Zé Wilson, que era do Circo Royal”, diz Jairo Mattos. “Eles contrataram o Zé para dar uns workshops semanais na Brasilândia, e todos íamos assistir aula lá.” A idéia deu tão certo que José Wilson deixou o Royal para criar o Circo Escola. “Deixei de viajar com meu circo para ficar fixo num lugar dando aulas”, explica José Wilson. “Conseguimos um terreno na avenida Cidade Jardim e lá ficamos por 22 anos.”

A essa altura, a aproximação de uma promissora geração teatral já chamava a atenção da mídia, o que ajudou a escola a atrair alunos com diversas motivações. “Eu fui para a escola de circo porque tinha uma coisa que estava na mídia chamada Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes [espetáculo dirigido por Cacá Rosset em 1985]”, conta o ator Alexandre Roit, formado pela Circo Escola Picadeiro e que já participou de espetáculos dos Parlapatões e do Circo Mínimo. “Ou seja, fui para o circo por causa da mídia e não porque tenha refletido que como formação de artista ir para o circo seria muito bom.”


“Nossa, eu quero...”

A história de Roit vem se repetindo até hoje. São muitos jovens que têm optado por aprender técnicas circenses, atraídos pela opção lúdica de atividade física e pela magia que o circo carrega no seu DNA. “É um fenômeno mundial”, garante Roit. “E é bom porque muita gente que normalmente não se interessaria por circo pode vir a prestar atenção nele por causa dessas escolas.”

É exatamente esse o caso da estudante de teatro Mariana Pereira, de 19 anos. Ela nunca tinha ido ao circo quando criança, mas, desde 2003, quando viu uma aula de técnicas circenses, nunca mais abandonou os trapézios, tecidos e malabares. “Já estava mesmo procurando uma atividade física que ?aumentasse a minha flexibilidade e alongamento”, diz a jovem. “E, quando vi isso aqui [aponta para o entorno dentro da lona da Academia Brasileira de Circo], eu pirei. Falei: ‘Nossa, eu quero...’.” Entre as razões pelas quais se apaixonou de vez pela arte circense, Mariana cita o aumento de resistência de seu corpo e o clima de picadeiro: “Clima sem preocupação, todo mundo com o mesmo objetivo, todo mundo se ajuda...”.

O perfil de pessoas que procuram as escolas de circo tem se mostrado cada vez mais eclético. Em sua maioria, jovens, sim, mas vem aumentando o interesse dos mais velhos. “Tem gente até de 50 anos aqui”, conta Aline Essu, professora de solo e acrobacia na Academia Brasileira de Circo. “Há crianças de 5 a 10 anos, gente que vem com os filhos, enfim, tem de tudo.”



A lira e a pluma

O fato de essas escolas serem procuradas por pessoas em busca de um bom exercício ou movidas pela curiosidade de pisar num picadeiro, mesmo sem platéia, não quer dizer que a profissionalização esteja banida das aulas. Paula Alvalá, de 23 anos, é um exemplo disso. Na Academia Brasileira de Circo, Paula arrumou, além de uma atividade física que considera superprazerosa, também um novo emprego – e até um namorado. “Tudo começou quando ganhei uma bolinha de contato”, explica, referindo-se às pequenas esferas de acrílico com as quais alguns artistas se apresentam fazendo-as rolar pelo corpo. “E como eu fiz balé clássico dos 7 aos 17 anos, pensei em fazer circo para melhorar minha postura e ainda aprender a mexer com a tal bolinha”, brinca. A primeira professora de Paula, dona Elza, tornou-se sua “sogra” – “me apresentou o filho dela...” –, e também a incentivou a ir um pouco além das aulas de lira, aquelas argolas suspensas usadas pelas contorcionistas. “Ela um dia chegou para mim e disse: ‘Por que você não se apresenta?”. Paula topou e hoje é uma das atrações do Circo Spacial, que criou a Academia. Quando questionada se estava nos seus planos virar artista de circo, Paula franze as sobrancelhas e responde: “Eu? Eu fazia cinema, jamais imaginei que ia enfiar uma pluma na cabeça e usar aquela maquiagem pesada, meio drag queen”, para depois cair na risada...

 

Dança pelos Ares, da Cia. Nau de ìcaros

Fiéis ao circo

O Circo Escola Picadeiro continua congregando interessados sob sua lona. A única diferença é que, há dois anos, ele mudou de endereço. Está na avenida Nações Unidas, na altura do município de Osasco, Grande São Paulo, depois de ter sido obrigado a deixar seu local de origem – fato noticiado pela imprensa na época. José Wilson Leite, no entanto, garante que as aulas continuam lotadas. “Não foram todos, mas muita gente nos ‘seguiu’”, orgulha-se. Segundo ele, a classe econômica dos alunos tem aumentado. O que mostra que o circo – se não o espetáculo, mas sua imagem e idéia – vem conquistando outros públicos. “São meninos de classe média alta, tem gente de Moema e até do Morumbi [bairros nobres de São Paulo].”

 

 

O CIRCO NO BRASIL

Dos ciganos do século 18 aos elaborados espetáculos contemporâneos, a arte circense se reinventou constantemente


1700
 
No início, eram os ciganos que saíam pelas Capitanias Hereditárias brasileiras, chamando a atenção do público com estrepolias realizadas em estruturas muito parecidas com a do chamado circo de pau fincado – uma coluna central de madeira sustentando a lona.

1800
 

O circo chega a portos mais importantes, Rio de Janeiro, Santos, Salvador, como define Antônio Torres no livro O Circo no Brasil (Fundação Nacional das Artes e Atração Produções Ilimitadas, 1998). Em 1837, desembarca no Brasil o primeiro elefante, e para trabalhar no circo.


1900
 
Durante a década de 1920, o circo ganha status de “arte refinada” ao cair nas graças dos intelectuais do modernismo. “Os únicos espetáculos teatrais no Brasil que a gente ainda pode freqüentar são o circo e a revista. Só nestes ainda tem criação”, afirmou o escritor Mário de Andrade em depoimento reproduzido no livro O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005), de Alice Viveiros de Castro. Quem personifica o circo são os palhaços Chicharrão e Piolim (foto).
 

SÉCULO 21

Desde o começo dos anos de 1980, o circo começa a atrair jovens atores vindos do teatro. Hoje, o circo tradicional continua, romântico, a itinerar pelas periferias do país. Mas cada vez mais companhias híbridas trabalham pelo respeito à arte circense – como Pia Fraus e Parlapatões, que, juntas, formaram o Circo Roda Brasil, uma mistura de tradição itinerante e elaboração cênica.


O CIRCO NO SESC? TEM, SIM, SENHOR...

Espetáculos tradicionais e contemporâneos fazem parte da programação das unidades
 
Entre as várias manifestações artísticas oferecidas ao público pelo Sesc São Paulo, o circo sempre marcou presença. Por meio de diversos projetos e apresentações, a instituição deixa claro, ao longo dos anos, sua política de incentivo a arte do picadeiro. Em 1999, por exemplo, a antiga unidade Belenzinho sediou o evento Circonferência – Festival Sesc de Circo Novo, que reuniu dezenas de grupo de todo o Brasil. Para o encontro, o Sesc não se contentou em simplesmente montar os palcos e trazer os artistas. O Circonferência foi a primeira grande mostra dessa nova cara do circo. Por isso, o evento contou também com oficinas e mesas de discussão que funcionaram como fontes de informação aos interessados. No mesmo ano, o Sesc Pompéia realizou, junto com o Circo Nerino, um evento em homengem ao centenário do palhaço Piolim. A programação reuniu espetáculos, debates, exposição e oficinas.

Em 2002, na mesma unidade, o circo se aliou ao cinema no projeto Circo Cine Teatro, que recebeu espetáculos de circo tradicional e contemporâneo, e projeção de filmes. A cada dia, era uma programação diferente. Além das apresentações, convidados especiais, como Hugo Possolo (Parlapatões), Rodrigo Matheus (Circo Mínimo), Beto Andreeta (Pia Fraus) e Domingos Montagner (Cia La Mínima), comentaram alguns clássicos da sétima arte que têm o circo como tema. Já em 2006, o Sesc Pinheiros foi “invadido” por malabaristas, mímicos, contorcionistas, mágicos e palhaços durante o projeto Circo na Praça. As atrações também misturaram circo tradicional e contemporâneo, trazendo desde números clássicos de trapézio, cama elástica, malabares sobre monociclos e palhaços em pernas-de-pau, até espetáculos de circo-teatro dos Parlapatões.


O ETERNO CIRCO NOVO
O circo contemporâneo procura novas formas de mostrar o conteúdo mágico das apresentações


O resultado do êxodo da classe teatral, então iniciante nos anos de 1980 para as escolas de circo, foi mais do que uma nova chance de essa arte reconquistar seu lugar ao sol.

Das experimentações feitas pelos jovens atores nos trapézios, barras ou como palhaços, surgiu uma nova leitura do picadeiro – que sequer é necessariamente um picadeiro hoje em dia. A pesquisadora Alice Viveiros de Castro, autora do livro O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005), explica que entre as características desse que ela chama de circo contemporâneo – “prefiro usar esse termo numa analogia com a dança, que já usa contemporânea versus clássica, há algum tempo, e o público parece compreender bem as diferenças” – está a procura pelo novo. “Por uma nova forma de buscar o risco e de realizar proezas”, diz. “Um malabarista contemporâneo, assim como um tradicional, sabe o valor de equilibrar o maior número de claves ou bolas, mas ele estará muito mais interessado em descobrir uma nova maneira de apresentar essa sua habilidade, um jeito mais ‘cênico’ de jogar e aparar os objetos.”

A palavra “cênico” parece mesmo uma das chaves. “Há grupos realizando pesquisas nesse sentido [das artes cênicas]”, afirma o ator Jairo Mattos, que se dedicou ao circo no início da carreira, no começo dos anos de 1980. “O La Mínima, por exemplo, faz isso com bastante intensidade. Os Parlapatões trabalham preferencialmente assim – e têm inclusive um dramaturgo, Hugo Possolo.”

O dramaturgo citado por Mattos faz parte de um dos grupos mais emblemáticos dessa “ordem contemporânea” para o circo. Atualmente, os Parlapatões estão unidos com outra companhia importante no cenário, a Pia Fraus, e estão viajando com o Circo Roda Brasil, uma trupe que propõe um novo formato estético e até de gestão.

A Intrépida Trupe representa essa tendência no Rio de Janeiro. Seus trabalhos sempre se baseiam em um tema, uma história ou um mito – os de origem grega são os preferidos. A partir daí, o grupo enriquece seus saltos mortais com um enredo. “Por exemplo, em Kronos [espetáculo de 2000], buscamos inspiração no próprio mito de Kronos, deus do tempo e pai de Zeus”, conta Cláudio Baltar, integrante da companhia.

“Esse espetáculo tinha uma estrutura mais narrativa, enquanto imagens e elementos de dança e do circo se alternavam na composição das cenas. Já em Flap! [de 2001], partimos do mito de Ícaro e seu pai, Dédalo, que inventou asas para voar, representando, com essa metáfora, os limites da ambição humana. As imagens e evoluções compunham a representação desse sonho.”

No exterior, esse hibridismo que pode ser considerado uma das características do circo contemporâneo foi levado a patamares, digamos, ainda mais espetaculares. Entre os exemplos, o mais conhecido dos brasileiros, sem dúvida, é o Cirque du Soleil (circo do Sol, em francês), criado por dois ex-artistas de rua, Guy Laliberté e Daniel Gauthier, em Quebec, Canadá, em 1984. A estratégia da companhia é aliar técnicas circenses com o que há de mais moderno em termos de tecnologia em efeitos visuais. A evolução da empresa é notável. Em 2000, o Soleil, que começou com 73 artistas, já apresentava 15 espetáculos simultaneamente por cerca de 40 países. Uma proeza que envolve mais de 3.500 pessoas e rende US$ 600 milhões, dá mostra de talentos do mundo todo, inclusive do Brasil. “Eu tenho seis ex-alunos meus no Soleil”, orgulha-se José Wilson Leite, fundador e diretor da Circo Escola Picadeiro. “No fim do ano, eu pretendo participar da audição do [Cirque du] Soleil”, conta, entusiasmada, a artista circense Paula Alvalá, de 23 anos. “O Cirque du Soleil leva nossa mão-de-obra para o exterior”, comenta o ator e dramaturgo Hugo Possolo, mas num tom de alerta. “Só que a gente precisa preservar o nosso patrimônio, não podemos deixar de dar visibilidade ao nosso circo. É como com o futebol. Assim como é importante mandar o bom jogador de futebol para Espanha, a gente não pode deixar de ter bons jogadores aqui também”, compara.




SAIBA MAIS
 
Livros
• O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005), de Alice Viveiros de Castro
• O Circo no Brasil (Fundação Nacional das Artes e Atração Produções Ilimitadas, 1998), de Antonio Torres
Serviço
• Academia Brasileira de Circo
 Avenida Regente Feijó, 1560
 Tel.: (11) 2076-0087 ou 0001
• Circo Escola Picadeiro
 Avenida Nações Unidas, 203A (Osasco)
 Tel.: (11) 3078-0944