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Brasil desvendado

Pregão da batata-doce
De acordo com Telê Ancona Lopez, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e uma das maiores autoridades em Mário de Andrade no Brasil, houve um fato que impulsionou o interesse do professor do Conservatório Dramático e Musical para a importância da criação popular. O pesquisador Ricardo Souza Carvalho, orientado da especialista, descobriu que as conferências do jornalista e contista Afonso Arinos (1868-1916) na Sociedade de Cultura Artística sobre o folclore brasileiro despertaram a curiosidade do jovem Mário. Desde então, começou a formar seu extenso acervo, hoje pertencente ao IEB. Lá estão, entre outros documentos, registros da produção artística popular coletados por ele em São Paulo, no fim da década de 1910 e nos anos seguintes. “Em seu poema Noturno, por exemplo, do livro Paulicéia Desvairada, o pregão da batata-doce assada funciona como núcleo do texto, mostrando, na esfera erudita, o reconhecimento da dignidade da criação popular ali incorporada”, diz a professora Telê.
Em 1924, Mário fez uma de suas primeiras viagens pelo Brasil, atividade que o fascinaria para sempre. Nessa ocasião, ele integrou, junto com Oswald de Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1886-1973) e outros expoentes da vanguarda paulistana, a Caravana Modernista a Minas Gerais, encarregada de mostrar o interior do país ao poeta suíço Blaise Cendrars (1887-1961), mas que acabou sendo decisiva para a obra de todo o grupo. De 1927 a 1929, nova dose de Brasil. Nesse período, ele foi ao Norte e Nordeste brasileiro, viagens que renderam, além do diário O Turista Aprendiz (obra póstuma, publicada em 1976) outros livros, como Danças Dramáticas do Brasil (1959), Música de Feitiçaria no Brasil, Melodias do Boi e Os Cocos, escritos em 1929, nos quais registrou inúmeros documentos do folclore e da cultura popular. Na década seguinte, outra contribuição fundamental à cultura popular: já como diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, Mário fundou, junto com a antropóloga Dina Lévi-Strauss, a Sociedade de Etnografia e Folclore. Em 1938, ele equipou com modernos recursos técnicos a Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada ao Nordeste para trabalho de campo. “Eles trabalharam com rigor científico e de lá trouxeram inúmeros documentos, hoje organizados no Centro Cultural São Paulo”, explica a professora Telê.
Na vitrola
O interesse pelo que vinha das ruas, do cotidiano, do comezinho, foi uma das paixões do autor. Além de imprimi-lo em muitas de suas obras literárias, Mário de Andrade também o exerceu com afinco na música. Dono de uma discoteca invejável – são quase 600 discos que hoje fazem parte do acervo do IEB –, ele tinha o hábito de fazer anotações nas capas dos bolachões. Os pesquisadores agradecem, em especial Flávia Camargo Toni, professora de musicologia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e pesquisadora do IEB. Foi ela quem passou horas a fio catalogando o material. O resultado foi o livro A Música Popular Brasileira na Vitrola de Mário de Andrade (Editora Senac, 2004), no qual a pesquisadora listou 161 discos, acompanhados das notas particulares do autor. “Ele tinha discos de vários tipos de música, mas durante a catalogação eu percebi que apenas os de música popular tinham anotações”, explica a professora. “Não tenho dúvidas de que essa era uma audição privilegiada por ele.” Ao analisar o acervo, algumas informações preciosas surgiram. Entre as notas, a pesquisadora aponta como a mais curiosa a que acompanha o disco número 250, que traz um samba. Ali o autor esclareceu que grande parte de seus discos havia sido presente de um amigo “vitrófilo”, como o próprio Mário o chamava, ou seja, um apaixonado por vitrolas e discos, e que a coleção incluía composições extremamente ruins, como a do 250. Uma das regras da discoteca do modernista era que nenhum disco jamais sairia de sua casa. Não que lhe faltasse generosidade. “As pessoas podiam ir à casa dele usufruir de seu acervo. Só não podiam levar nada embora”, conta a musicóloga. Apesar da intensa relação com a música, Mário de Andrade não se arriscou muito na composição. Chegou a escrever quatro músicas, mas se acanhou. Dizia que para aquilo não tinha preparo suficiente. Uma de suas canções, Viola Quebrada, foi até mesmo harmonizada por Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Essa até fez certo sucesso. “Era muito tocada em concerto. Até hoje há gente que toca”, afirma a professora Flávia.
Faces de um artista
Unidades Santo André e Pinheiros expõem diferentes paixões de Mário de Andrade

A chácara era o destino certo de todas as férias de verão do escritor. Mas, em 1926, Mário chegou a Sapucaia carregado de material de pesquisa – livros, recortes de jornais e, sobretudo, fichas com informações a respeito de tudo que lhe interessava para criar sua narrativa. O autor afirmaria depois que seu herói sem nenhum caráter, criado entre 18 e 23 de dezembro de 1926, fora gerado em estado de “possessão preparada”, em seis dias de “cigarros e cigarras”, como dizia o autor.
A exposição está dividida em três partes. A primeira faz referência à amizade entre Mário de Andrade e seu primo Pio Lourenço. A segunda diz respeito ao processo de criação do livro Macunaíma. Nesse espaço está exposta a documentação que Mário, no verão de 1926, leva à chácara do tio. A terceira mostra, entre outros documentos, as primeiras edições e as traduções do livro e cartas de Mário a intelectuais e amigos com referências à obra. Um espaço à parte está reservado para uma exposição de 34 fotos feitas pelo próprio Mário em Araraquara.
No Sesc Pinheiros, a homenagem ao autor ficou por conta de um traço bem menos conhecido da sua personalidade – ele gostava de colecionar desenhos infantis. Parte dessas relíquias, feitas por crianças de 2 a 6 anos, que hoje pertencem ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, resultou na exposição Desenhos de Outrora, Desenhos de Agora, que esteve em cartaz até novembro na unidade. “Pode-se afirmar que, entre tantos interesses do autor, a criança encontra-se num lugar de destaque. Mário de Andrade representará no modernismo brasileiro o papel do artista que terá nas crianças um de seus interlocutores”, diz Márcia Gobbi, curadora da exposição.
Amélia ou Vão Acabar com a Praça Onze?
“[...] Gostei, sim... Muitíssimo do Amélia, é das coisas mais cariocas que se pode imaginar. Mas o Vão Acabar com a Praça Onze me estrangula de comoção, palavra. Você já viu coisa mais lancinante? Aquele grito, ‘Guardai vosso pandeiro, guardai!’ é das frases mais musicalmente comoventes, um grito manso, abafado, uma queixa de povo suave, que se deixa dominar fácil, sem muita consciência, mas sofre e se queixa. Palavra que acho aquilo horrível, de não poder agüentar. Tomei como um ataque sentimental danado. Xinguei a estupidez do ‘progresso’ dos estúpidos, está claro, fiz discurso num ambiente bom com vários uísques e de vez em quando continuava cantando o sermão, ‘guardai o vosso pandeiro, guardai!’, com lágrimas nos olhos.”
Trecho de carta escrita por Mário de Andrade a Moacir Werneck de Castro, em 1942, sobre os sambas Ai Que Saudade da Amélia (Ataulfo Alves e Mário Lago) e Vão Acabar com a Praça Onze (de Herivelto Martins e Grande Otelo).

Ex-comerciante descobre desenho seu na exposição do Sesc Pinheiros
Ao assumir o cargo de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo entre os anos de 1935 e 1938, Mário de Andrade criou os Parques Infantis da Lapa, do Ipiranga e D. Pedro II. “Uma importantíssima contribuição para a educação pública brasileira”, garante Márcia Gobbi, curadora da exposição Desenhos de Outrora, Desenhos de Agora, do Sesc Pinheiros. “Esses lugares foram criados para os filhos do operariado paulistano.” Mário gostava de realizar concursos de desenhos entre as crianças que freqüentavam esses espaços e solicitava que essas imagens ficassem com ele. O resultado disso são mais de 1.200 imagens que hoje fazem parte do vasto acervo do autor que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) mantém na Universidade de São Paulo. Além de revelar mais uma faceta de Mário, a exposição causou situações inusitadas. Foi com surpresa que a ex-comerciante Norma Ilaci (foto), de 76 anos, descobriu que uma pequena obra sua
