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Para deixar saudade

Em depoimento exclusivo, o produtor musical André Midani conta como foi organizar o Ano do Brasil na França e articular as comissões dos dois países

Sírio radicado na França desde os 3 anos de idade, André Midani chegou ao Brasil em 1955 fugindo da guerra da França com a Argélia, na qual não queria lutar. “Peguei um navio que vinha para a América do Sul com a intenção de ir para a Argentina. Mas quando o navio entrou na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, achei que aquilo era bonito demais e fiquei”, conta. O início da carreira na indústria fonográfica foi na Odeon, onde participou da criação da bossa nova. Em 1968, foi para a Philips e reuniu um dos mais brilhantes elencos da música nacional daquela época: Chico Buarque, Elis Regina, Nara Leão, Maria Bethânia, Jorge Benjor, Tim Maia, Raul Seixas, Fagner, Belchior, entre outros. Em 1977, foi convidado para cuidar da vinda da norte-americana Warner ao Brasil, e depois na Argentina e no México, de onde foi transferido para Nova York e acabou por organizar a empresa em toda a América Latina. O casamento com a indústria fonográfica durou até 2002 e transformou Midani num dos mais importantes nomes da música brasileira. Sua mais recente contribuição foi o gerenciamento do Ano do Brasil na França, que se encerra neste mês, e sobre o qual Midani revelou os bastidores em conversa com a Revista E. A seguir, trechos.


A França abre as portas
O sucesso do Ano do Brasil na França se deve, sobretudo, ao povo francês. Foram 450 projetos oficiais participantes, escolhidos entre 3.600, e mais 250 projetos paralelos, que não necessitaram de financiamento. Além desses paralelos, houve outras milhares de iniciativas como, por exemplo, escolas de cidadezinhas francesas em que as crianças aprenderam sobre o Brasil e desenharam a bandeira brasileira. É por isso que eu digo que o grande responsável pelo sucesso do evento foram os franceses, pois eles realmente adotaram a idéia. Outro motivo do sucesso foi a diversidade de coisas que conseguimos mostrar, sobretudo em relação à modernidade brasileira, em todos os aspectos que se possa imaginar. Na parte cultural, foram para lá 12 companhias de dança, das mais modernas, além de 300 filmes brasileiros, apresentados em 16 festivais de cinema. Algumas companhias de teatro – que são mais difíceis de apresentar por causa da língua – também participaram e eram bem vanguardistas. Conseguimos levar espetáculos como Hysteria, do Grupo 19, e atrizes como Marília Pêra, que se apresentou com a peça Mademoiselle Chanel e foi um sucesso.
Na parte musical, levamos muita coisa também. Ao todo, foram financiadas cerca de 740 passagens para músicos. Procuramos abarcar a maior diversidade possível, desde manifestações culturais que eram completamente ignoradas pelos franceses, até a música contemporânea e também trabalhos que fundem uma coisa com a outra. Em relação à estrutura do evento, houve um comissariado francês e um comissariado brasileiro. Para tomar a decisão em relação à escolha dos 450 projetos, foi necessário que ambos os comissariados estivessem de acordo. O comissariado brasileiro, composto de seis pessoas, recebeu cerca de 2.800 projetos e o francês recebeu cerca de 800. Havia desde projetos modestos, com conteúdos muito frágeis, até projetos maravilhosos, que custavam 6 milhões de reais. Buscamos, entre essas várias alternativas, as que achávamos que poderiam ser apresentadas com mais impacto para os franceses. Os projetos vinham do Brasil inteiro e da França inteira, enviados por brasileiros que moravam por lá. Portanto, não foi uma coisa só do eixo Rio–São Paulo–Paris. Pernambuco fez um trabalho extraordinário, Tocantins também, Espírito Santo, que no final não participou, também tinha preparado uma coisa maravilhosa.


Modernidade do Brasil
Eu só fiquei à frente do projeto em março de 2004, ou seja, nove meses antes de o evento iniciar-se. Nessa época eu estava nos Estados Unidos, trabalhando no Grammy [espécie de Oscar da música entregue pela indústria fonográfica norte-americana], quando recebi um telefonema do ministro Gilberto Gil, que me convidava para ser o comissário brasileiro do Ano do Brasil na França, em 2005. Como a gente começou a trabalhar tarde, muitos museus, galerias e outros espaços já estavam ocupados. Juntando o que eles podiam fazer com o que nós podíamos proporcionar, chegou-se ao número de 450 projetos. Quando eu entrei, Gil me disse que o objetivo era mostrar a diversidade brasileira e eu pensei com meus botões que gostaria de apresentar a modernidade do Brasil em todos os seus sentidos. A idéia era não recusar os estereótipos, mas prestigiar o que não é estereótipo. Por exemplo, não tivemos escola de samba lá. Não por determinação, porque não seria gentil dizer isso, mas eu não lutei para ter uma escola de samba. No lugar disso, nós preferimos o trio elétrico do Carlinhos Brown, com a Timbalada, que se apresentou no sul da França, e é um tipo de carnaval que até então eles desconheciam. Tudo isso foi uma ponta de lança para introduzir a diversidade e a modernidade industrial, financeira e econômica do Brasil. Portanto, ao mesmo tempo em que a gente trabalhou no panorama cultural, eu visitava secretarias e ministérios por aqui, incentivando-os a tomar iniciativas para que se formassem delegações que fossem para a França conversar com os homens de negócios franceses.


País múltiplo
Não tenho dúvida de que eles não esperavam essa multiplicidade de “Brasis”. Os franceses viam o Brasil como futebol e carnaval e um grande exportador de café, de açúcar e de carne. Mas eles não esperavam coisas como nosso avanço na pesquisa biológica, farmacêutica e de informática. Nessa área, podemos citar nosso moderno sistema bancário, setor em que eles ainda estão na idade da pedra. A cultura, portanto, foi a ponta de lança que abriu muitas portas em outras áreas. Nesse evento, tivemos alguns parceiros, como o Sesc São Paulo, que considero uma entidade de importância e indispensável na vida brasileira. A instituição levou para lá alguns eventos, como a exposição das geringonças do Mestre Molina e o espetáculo Samwaad – A Rua do Encontro, e foi um companheiro muito fiel. Tanto do lado francês como do lado brasileiro houve uma imensa dedicação.

Nossa base era em Brasília. Outra coisa que creio que ter sido fundamental foi o fato de eu ser brasileiro e francês. Além disso, houve um ótimo entrosamento entre os comissários de lá e os daqui. Nas decisões, em 80% das vezes havia concordância desde o começo. Poucos foram os casos em que alguma das partes teve de convencer a outra. Nós tínhamos a responsabilidade de levar os projetos e eles a de dar abrigo.

O Brasil seria o último a participar da promoção da difusão da cultura de um outro país na França, pois os franceses achavam que estava virando uma rotina, e a disponibilidade dos lugares e o interesse do público estavam morrendo. Mas acho que eles mudaram de idéia e haverá outros países. O primeiro sinal que tive disso foi na coletiva de lançamento do Ano do Brasil na França lá. Esperávamos no máximo 30 jornalistas e foram por volta de 150, sem contar os que não conseguiram entrar. Essa foi a primeira manifestação positiva. Tínhamos, nós dos comissariados, um medo muito grande de que a imprensa não abraçasse a idéia. Isso não aconteceu. Até o final de junho houve uma média de 2.500 inserções sobre o assunto no meio impresso, desde notas até revistas especializadas e edições especiais sobre o assunto.


Para o futuro
Os franceses andam dizendo que, quando fechar o ano, mais de 4 milhões de pessoas terão participado dos eventos. Os números impressionam mesmo. Houve uma exposição sobre arte indígena que atraiu 70 mil visitantes. O Espaço Brasil, que mostrava a produção artística do interior do país, teve 105 mil visitantes em três meses. O show do Lenine no Concert de La Bastille reuniu cerca de 80 mil pessoas. Sem dúvida, o Ano do Brasil na França foi o evento dessa natureza que mais teve êxito desde que o governo francês passou a promovê-los. Eu não posso dizer que é por isso que o governo da França resolveu continuar com esses eventos. Por lá já passaram as culturas de países como China, Índia e Egito. Não sei se o governo francês resolveu continuar o projeto devido ao êxito do Ano do Brasil. Mas de uma coisa tenho certeza: o padrão de exigência aumentou e os próximos países vão ter de se esforçar muito.

O produtor musical e membro do comissariado para o Ano do Brasil na França André Midani

“Não sei se o governo francês resolveu continuar o projeto devido ao êxito do Ano do Brasil. Mas de uma coisa tenho certeza: o padrão de exigência aumentou e os próximos países vão ter de se esforçar muito”