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Decisão de todos
O referendo realizado em outubro sobre a legalização da comercialização de armas de fogo trouxe à tona, além da polêmica que ronda essa matéria, discussões sobre a real eficácia e necessidade dos instrumentos de participação popular. Previstas na Constituição, essas consultas representam a consolidação do processo democrático de um país. Mas em que momentos e com qual freqüência esses recursos devem ser acionados? Em artigos exclusivos, o jurista Dalmo Dallari e a procuradora do Estado de São Paulo Mônica de Melo respondem a essas e outras questões relacionadas ao tema.
Deixem o povo falar
por Dalmo de Abreu Dallari
A Constituição brasileira estabelece, no artigo 1º, que todo poder vem do povo e que o povo exercerá esse poder por meio de representantes eleitos ou diretamente. Isso quer dizer, antes de tudo, que o governo brasileiro deverá ser democrático, ou seja, o povo é que deverá governar. Mas, como não existe a possibilidade prática de consultar o povo sobre todas as decisões que o governo deve tomar, será utilizado, juntamente com a decisão direta do povo, o sistema representativo, pelo qual o povo governa pelo meio de representantes eleitos. Esse é o sistema que vem sendo usado pelo Brasil desde o início da República, em 1891. A grande inovação da Constituição de 1988 foi unir as duas formas de participação do povo no governo, a forma representativa e a forma direta.
Cabem aqui duas perguntas importantes. Em primeiro lugar, deve-se perguntar por que motivo até agora só foi usada a democracia representativa e muito raramente o povo tem sido consultado. Além disso, cabe também perguntar se os representantes eleitos pelo povo para o Executivo e o Legislativo procuram sempre fazer aquilo que corresponde à vontade e aos interesses do povo ou se, ao contrário disso, os eleitos têm dado mais importância à sua própria vontade e a outros interesses. A segunda questão básica é como realizar, na prática, a democracia direta, isto é, como ficar sabendo qual é a vontade do povo antes de tomar uma decisão importante sobre um assunto do interesse de todos. Para dar resposta a essas perguntas é necessário voltar um pouco no tempo, para verificar por que e como foi estabelecido o sistema representativo e quais as alternativas para conhecer a vontade do povo.Nos séculos 17 e 18 havia uma disputa pelo poder, entre a nobreza e o rei. Ao lado deles, existiam já muitas pessoas ricas, especialmente comerciantes e banqueiros, que, apesar de ser ricos, não tinham o direito de participar do governo, porque não eram nobres. Essas pessoas eram os burgueses, que pagavam impostos e sustentavam o luxo e as aventuras dos nobres e dos reis e freqüentemente eram vítimas dos abusos e das ações arbitrárias dos que governavam. Ao lado deles havia a grande massa do povo, que trabalhava muito e praticamente não tinha direitos. Reagindo a essa situação ocorreram vários movimentos revolucionários, que se inspiraram em propostas de notáveis filósofos políticos e procuraram implantar um novo sistema de governo, que fosse a expressão da vontade do povo. Foi assim que se iniciou uma nova fase da história da humanidade, com a aspiração de ter governos democráticos.
Apesar das proclamações a favor da democracia, havia muitas limitações, pois as comunicações eram difíceis e seria impossível consultar o povo com grande freqüência para decidir sobre assuntos do governo. Reconhecia-se que o povo tinha o direito de participar do governo decidindo sobre as questões de seu interesse, mas, pela impossibilidade prática de ter um povo numeroso reunido a cada dia, ou pelo menos com grande freqüência, decidiu-se que o povo elegeria representantes para decidir em seu nome, estabelecendo-se desse modo a democracia representativa. As decisões deveriam ser tomadas com base nos princípios democráticos, mas o governo seria exercido por representantes do povo. Assim nasceu a moderna democracia representativa.
Com o passar do tempo, ficou demonstrado que a democracia representativa continha muitas imperfeições, a começar pela dificuldade para o estabelecimento de um sistema isento de falhas e imune às diversas formas de corrupção que distorcem o processo eleitoral. Além disso, verificou-se que muitas vezes o representante, motivado por outros interesses, põe os representados em segundo plano e decide contrariamente à vontade e aos interesses do povo. Por esse motivo, foram implantados alguns mecanismos de participação popular mais direta, que os teóricos classificam como institutos de democracia direta ou semidireta. Entre esses instrumentos de consulta popular é que se encontram o plebiscito e o referendo, que a Constituição brasileira de 1988 acolheu como formas de participação direta do povo no governo. São duas formas de consulta, para saber a opinião do povo sobre determinado assunto, mas há uma grande diferença entre elas, que é importante conhecer.
O plebiscito é utilizado para consultar o povo sobre assunto de seu interesse que ainda não foi decidido e que deverá ser objeto de futuras decisões. Assim, por exemplo, poderá ser feito um plebiscito para saber se o povo prefere que o voto seja obrigatório ou facultativo. A orientação a ser adotada no futuro dependerá da resposta do povo a essa pergunta. Diferentemente disso, o referendo poderá ser usado, por exemplo, para perguntar ao povo se ele está de acordo com um projeto de reforma constitucional que já tenha sido aprovado pelo Legislativo. Se o povo responder que está de acordo, então o projeto passa a vigorar como emenda institucional e a Constituição fica modificada. Mas, se o povo disser que não está de acordo, o projeto morre aí e a Constituição não é emendada com base nele.
No caso do Brasil, a Constituição de 1988 previu o plebiscito e o referendo, mas a maioria dos membros da Assembléia Constituinte não via com simpatia a participação direta do povo. Por esse motivo estabeleceram na Constituição que só será realizado o plebiscito ou o referendo quando o Congresso Nacional permitir ou convocar. Desse modo, os representantes do povo na Constituinte restringiram gravemente um direito fundamental do povo, que é o direito de manifestar sua vontade. Como se verificou recentemente, com a realização do referendo sobre o comércio de armas e munições, a simples realização da consulta estimula a participação do povo na discussão de assuntos de interesse público. E com essa participação as decisões do Legislativo ou do Executivo serão muito mais democráticas, porque corresponderão à verdadeira vontade do povo. Mas o povo precisa ser informado e esclarecido sobre o que está se perguntando e deve estar bem consciente para não ser enganado por grupos que têm interesse direto em determinada resposta e que fazem publicidade fingindo preocupação com o interesse público. Por esse motivo é importante que desde já o povo seja esclarecido a respeito do que são plebiscito e referendo.
As associações e demais entidades representativas dos interesses de toda a população ou de parte dela devem desencadear um movimento exigindo que a Constituição seja emendada para dar ao povo o direito de convocar plebiscito ou referendo. Mas desde já, mesmo com a restrição ora existente, o povo deve pressionar os representantes para que realizem consultas freqüentes, dando à população a possibilidade de participar das decisões que são de seu interesse fundamental. Quanto mais consultas, mais perto estaremos de um governo democrático e isso é bom para todos.
Dalmo Dallari é jurista e professor titular aposentado de teoria geral do Estado do departamento de Direito do Estado da Faculdade São Francisco da Universidade de São Paulo (USP)
“As associações e demais entidades representativas dos interesses de toda a população ou de parte dela devem desencadear um movimento exigindo que a Constituição seja emendada para dar ao povo o direito de convocar plebiscito ou referendo”
Formas de consulta popular
por Mônica de Melo
No dia 23 de outubro, foi realizado um referendo para que a população pudesse decidir se era a favor ou contra a proibição do comércio de armas e munições no Brasil.
Desde que essa forma de consulta popular foi criada, em 1988 pela Constituição Federal, foi a segunda vez, em quase 20 anos, que a população brasileira foi chamada a decidir algum assunto de interesse nacional (a primeira, em 21 de abril 1993, foi o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo). Por que esses mecanismos de democracia direta e participativa não “pegaram” no Brasil? Será apenas mais um daqueles casos em que anseios alçados à condição de norma constitucional nunca se realizam?Os principais mecanismos de participação popular previstos pela Constituição Federal de 1988 são três: plebiscito, referendo e iniciativa popular, e só foram regulamentados em 1998 através da Lei nº 9.709, ou seja, após dez anos de vigência da Constituição Federal de 1988.
Na verdade, nossa Constituição acolheu o regime da democracia participativa, ou seja, combinou a democracia representativa, pela qual elegemos nossos representantes, com mecanismos de participação direta no poder através dos quais a população é chamada diretamente a decidir um determinado assunto. Isso, em 1988, foi uma grande novidade para um País que viveu a maior parte de sua história sob regimes autoritários. A própria Constituição Federal de 1988 foi elaborada num processo extremamente democrático e participativo, tendo os constituintes estabelecido a possibilidade de emendar o anteprojeto através de emendas subscritas pelo eleitorado. Assim, surgiram da vontade da própria população os instrumentos de participação direta.
Porém, nasceram fragilizados, na medida em que o plebiscito e o referendo dependem da manifestação de vontade do Congresso Nacional para se realizar. A possibilidade de iniciativa legislativa popular exige um quórum tão elevado de assinaturas espalhadas por pelo menos cinco estados da federação que é praticamente impossível conseguir 1% de assinaturas do eleitorado nacional (mais de 1 milhão de pessoas).
O plebiscito e o referendo são freqüentemente utilizados como sinônimos de consulta popular, seja pelos estudiosos do tema, seja nas Constituições. Entretanto, é possível estabelecer uma diferença entre eles relacionando o referendo a consultas que envolvam manifestação sobre uma lei ou projeto e o plebiscito a todas as demais consultas. Porém, não foi esse o critério utilizado pela lei regulamentadora, que optou pelo temporal: se a medida objeto da consulta já foi tomada, trata-se de referendo, caso contrário é plebiscito. Entretanto, mais importante que estabelecer diferenças em mecanismos que possuem semelhanças é garantir sua efetiva utilização.
E a Lei nº 9.709 pouco contribuiu para a efetivação desses mecanismos, na medida em que não os fortaleceu. Nos países em que a democracia participativa é mais presente, a realização de plebiscito, referendo e iniciativa popular é mais freqüente e pode ser feita mais facilmente por solicitação de um número determinado de eleitores. Esses mesmos eleitores também podem destituir representantes eleitos, possibilidade inexistente no Brasil. Na maior parte desses países, toda reforma na Constituição deve ser submetida a referendo, o que também não ocorre em nosso País, permitindo-se o retalhamento da lei mais importante sem que se saiba se a população está ou não de acordo.
Os mecanismos de participação popular legislativa se inserem no amplo contexto da democracia participativa constitucionalizada. A utilização mais freqüente das variadas possibilidades de participação direta pode contribuir para o surgimento de uma nova relação dos cidadãos com as questões públicas e para aproximar a vontade popular do centro político de tomada de decisões, tornando os eleitores participantes ativos das políticas públicas das quais são os destinatários.
Acreditamos que o uso de mecanismos de participação direta de forma ampla em centros menores de poder – municípios, distritos, bairros, escolas, fábricas, comunidades etc. – poderá servir de estímulo para o engajamento maior da população no exercício da cidadania, na reivindicação de direitos e na fiscalização e controle dos bens públicos.
Os centros menores de poder podem ser locais privilegiados para o desenvolvimento da participação direta nas decisões públicas.
A possibilidade de decidir deve ser possível de uma maneira bastante abrangente, já que excluir o povo da participação direta no âmbito nacional ou em questões ditas de maior complexidade pode significar a exclusão da possibilidade de participação em questões da maior relevância, que em nosso sistema federativo, mesmo com todas as reformas, estão concentradas nas competências legislativas da União.
Entretanto, a participação direta tem de estar limitada por certos parâmetros que permitam a preservação da própria democracia. Nem todas as decisões podem estar sujeitas à regra da maioria. Os direitos de grupos vulneráveis têm de estar a salvo das decisões majoritárias, sob pena de se estabelecer uma ditadura da maioria que ponha em risco os direitos das minorias. É uma falsa idéia pensar que a democracia possa tudo. Há que se resguardar um núcleo de direitos fundamentais que devem estar salvaguardados da deliberação de uma maioria eventual para que sempre novas maiorias possam se constituir, e se preserve, dessa forma, o próprio regime democrático.
O poder público também precisa ter cautela ao submeter à deliberação da maioria questões cuja aceitação ou rejeição dependam de conhecimento técnico preliminar determinante para a tomada de decisão. E com isso não afirmo que questões complexas não possam ser decididas diretamente pela população. Para que isso aconteça, o direito de estar bem informado e esclarecido precisa ser prévia e plenamente atendido.
A utilização cotidiana das formas de participação popular existentes fortalece o exercício da cidadania, aproxima a população da tomada de decisão que irá afetá-la, fazendo com que os cidadãos sintam-se co-responsáveis pelas decisões públicas que selam o destino de todos e de cada um.
Mônica de Melo é procuradora do estado de São Paulo, professora de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e autora do livro Plebiscito, Referendo e Iniciativa Popular – Mecanismos Constitucionais de Participação Popular (Sergio Antonio Fabris Editor, 2001)
“O poder público também precisa ter cautela ao submeter à deliberação da maioria questões cuja aceitação ou rejeição dependam de conhecimento técnico preliminar determinante para a tomada de decisão”