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O Curupira
por Márcio Souza
Era uma vez um jovem que gostava de esportes radicais que se perdeu na mata. Era véspera de Natal e ele não conseguia encontrar o caminho de volta. Andou, andou, e, não sabendo mais o que fazer e como a noite caía, subiu numa grande árvore e dormiu. No meio da noite ouviu um barulho e acordou. Eram batidas distantes nos troncos das sapopemas, seguidas de um grito horrível. Notou que as batidas e os gritos iam ficando cada vez mais perto e que até mesmo os insetos haviam silenciado.
Aí chegou o Curupira, bem junto da árvore, sentou-se na raiz e puxou conversa.
– Como está o meu neto?
O rapaz, a princípio pensou que fosse um funcionário da reserva, alegrou-se e quase desceu da árvore. Mas aquele negócio de “meu neto” parecia muito estranho.
– Estou bem, meu avô, e como vai o senhor?
– Estou bem.
– Ah, meu avô, eu me perdi!
– Não me diga, meu neto!
– Eu gosto de praticar rapel nas grande árvores...
– Praticar o quê?
– Rapel, o senhor sabe, escalar as grandes árvores e...
– E se perdeu?
– Sim, senhor.
– Desde quando está perdido?
– Desde a manhã, meu avô.
O Curupira olhava o rapaz com seus olhos de brasa ardente e parecia adivinhar todos os seus pensamentos.
– Meu avô, hoje é Natal! – disse o rapaz.
– Ah, meu neto – disse o Curupira –, eu estou com fome!
– Eu também tenho fome. Só estou pensando na ceia que deve estar acontecendo lá em casa...
– Meu neto, eu preciso comer alguma coisa!
– Eu também.
– Meu neto, me dá um pedaço da tua carne!
– Como?
– É, um pedaço da tua carne.
O rapaz tremeu de medo e abriu a mochila, procurando alguma coisa para saciar a fome do Curupira.
– Tenho coisa melhor, meu avô. Tome lá – e entregou um pacote de batatas fritas.
O Curupira abriu o saco de papel e meteu um bocado de batatinhas na boca. Mastigou e cuspiu fora.
– Meu neto, esse negócio é horrível, quero comer outra coisa.
– Aqui está, meu avô – disse o rapaz, entregando um sanduíche de atum com tomates e alface.
O Curupira comeu tudo de uma só vez e arrotou.
– Ah, meu neto, era uma coisa muito ruim e a fome não passou!
– Quer mais, meu avô?
Pegou umas barras de cereal e deu ao Curupira.
O Curupira comeu com embalagem e tudo.
– Ah, meu neto, agora tenho sede!
O rapaz pegou uma garrafa de energético e deu ao Curupira.
O Curupira bebeu num só gole.
– Gostou, meu avô? – quis saber o rapaz.
– Ah, meu neto, agora eu quero o teu coração!
– Aqui está, meu avô.
E deu um hambúrguer para o Curupira.
O Curupira comeu o hambúrguer de uma só vez.
– É isso que vocês comem hoje em dia? Tenho pena de vocês.
– Hoje é Natal, meu avozinho – disse o rapaz.
– E daí? – desdenhou o Curupira.
– O senhor não sabe o que é o Natal?
– Claro que sei, meu neto! Mas por aqui o Papai Noel não anda, não.
– E por quê?
– Ele não agüenta o calor. Aqui sou eu que faço a distribuição dos presentes.
– O senhor!
– É claro, meu neto.
– Quer dizer que aqui as crianças escrevem ao Curupira.
– Não, não, aqui ninguém precisa escrever cartinha nenhuma.
A coisa é menos burocrática...
– Todo mundo ganha presente, é assim?
– Não exatamente.
– Quem diria que aqui na selva também se comemora o Natal! – pensou em voz alta o rapaz.
– Mas é claro, meu neto. Já estou começando a me irritar. Isso aqui é mato, mas há uma cultura, a nossa identidade, mania dessa gente da...
– Não, não se irrite. Tudo o que eu queria era estar em minha casa, participando da ceia com a minha família.
– Aqui não temos ceia em família.
– Não!?
– Nada de tia fofoqueira, nada de tio pão-duro que presenteia com sabonete, nada de parentes mesquinhos que trazem meia dúzia de rabanadas e comem feito uns desesperados.
– Entendo o que o meu avô quer dizer.
– Ainda assim, preferia estar na ceia...
– Para dizer a verdade, estou bem aqui, com o senhor, meu avô.
– E não vai pedir nada?
– Posso?
– Estou aqui para isso!
– Pensei que o senhor estivesse aqui para proteger a floresta.– O quê? Ninguém protege essa floresta, está maluco, meu neto!?
– É que...
– Eu sou um Curupira, um dos últimos, e sempre nos empurraram essa tarefa inglória. Mas o que nós fazemos mesmo é substituir o Papai Noel.
– Quem diria...
– E então, o que vai querer neste Natal?
– Eu queria que essas árvores continuassem aqui, para que outros pudessem fazer rapel.
– Isso eu não posso atender, o pedido tem de ser individual.
– Está bem – disse o rapaz, decepcionado.
– Então que pelo menos eu ache o caminho de volta.
– Tudo bem – disse o Curupira, dando de ombros.
Um raio de sol bateu no rosto do rapaz e ele despertou. Quase caiu do galho da árvore e logo se equilibrou. Abriu os olhos e percebeu que já era dia e que lá embaixo, numa rede de acampamento, toda protegida por mosquiteiros, dormia um homem.
Desceu da árvore com cuidado, sentindo o corpo reclamar pela noite maldormida, e se aproximou da rede onde o homem estava adormecido.
Era o Curupira.
– Bom-dia, meu avô – disse o rapaz.
O homem acordou, observou o rapaz e retrucou:
– O que foi que você disse?
– Bom-dia, meu avô!
– Meu avô?!
– Ontem à noite, não lembra?
– Lembrar de quê? Cheguei aqui de madrugada, levamos seis horas para localizar você. Sou funcionário da reserva e recebemos um comunicado ontem à noite de que havia um turista perdido. Puta saco!
– É...
– Em plena véspera de Natal, meu chapa! Que diabo estava fazendo aqui?
– Mas...
– Parece que viu o Curupira, rapaz!
Márcio Souza é autor, entre outros, de Mad Maria (Record, 2002)