Postado em
Entrevista
Como vai a saúde pública em São Paulo?

Isso se deve à capacidade de obter recursos?
A destinação de recursos depende da vontade do poder público. Outra coisa é a maneira como se dá o gerenciamento desses recursos. E isso é variável. Na educação, por exemplo, há colégios-modelos estaduais por causa do empenho do diretor. Mas, fundamentalmente, depende da destinação de recursos em quantidade suficiente para atender aos projetos e programas.
O que o senhor ressaltaria de positivo dentro do SUS?
Ele permite uma abrangência de atendimento que seria muito difícil de alcançar se fosse um sistema segmentado. Por exemplo, para um problema pequeno há o centro de saúde, para causas médias há determinados tipos de hospital e para casos agudos há hospitais mais aparelhados. Esse sistema permite que se atendam a vários tipos de problemas. Além disso, tem uma destinação de recursos preestabelecida por lei, o que faz com que seja possível certa continuidade. As correntes políticas contrárias ao SUS dizem que o sistema, por ser uma política pública, contrapõe-se à medicina particular e especializada. Se bem que há hospitais de excelência que atendem a casos do SUS, que destina recursos para que isso seja feito. Sem essa política de congregação de todos esses setores, seria muito mais complicado.
Os pontos negativos e as excelências sempre chamam a atenção. Será que não estamos formando menos pessoas capacitadas para criar essas excelências?
O próprio SUS tem programas de capacitação de seus gestores no estado. A FSP volta e meia está envolvida nesses cursos de gerenciamento. No fim, depende muito das pessoas que estão lá, da capacidade, do trânsito político, dos contatos. Tudo isso influi na destinação de recursos. Fazendo um paralelo com a nossa escola, ela tem cinco departamentos, dois centros de saúde, uma base avançada para pesquisa, um serviço de biblioteca que é uma referência mundial, uma revista de saúde pública, três assessorias. Para atender a tudo isso com o nosso orçamento atual – repassado pela USP –, que não chega a 500 mil reais por ano, é necessário correr atrás de parcerias, fazer convênios, proporcionar cursos, buscar recursos com entidades privadas. E assim deve acontecer também com o SUS: não depender só dos recursos do governo. É uma tarefa árdua, porque, se não há esforço, nada acontece. Depende também da localização geográfica do centro de saúde. No caso de um centro de saúde da periferia, fatalmente é mais difícil batalhar por esses recursos. E é complicado porque o atendimento é mais carente, teoricamente o quadro de morbidade é muito maior.
No estado de São Paulo, quais são os problemas mais graves de saúde pública?
A aids está controlada, a hanseníase é um problema. No nosso centro de saúde há um programa de telessaúde no qual os médicos podem fazer diagnósticos a distância. No final da década de 70, fiz um estágio em Mauá. Havia uma quantidade imensa de casos de hanseníase e ainda há. Além disso, com a população envelhecendo, surge também a questão do atendimento ao idoso. Outro problema – que parece sanado, mas não está – é a tuberculose, muitas vezes relacionada à aids. Não chega a ser uma epidemia, mas existem muitos casos. E isso está muito ligado à deficiência de alimentação e à falta de higiene. Na periferia mais pobre, ainda há também muitos problemas ligados ao sexo, como gravidez precoce e DSTs. Isso é assustador no nosso centro de saúde. Isso tudo sem contar, claro, a violência.
No caso das DSTs, qual é a população que não está usando camisinha?
Não é só a população mais simples, a classe média também não usa preservativo. Já melhorou muito, mas muita gente realmente reluta em utilizar a camisinha. Eu me lembro que no começo as pessoas chamavam a aids de “a doença dos gays”. Só que sabemos que não é assim. Hoje, o número de pessoas contaminadas aumenta entre as mulheres casadas. Os maridos andam por aí e fazem questão de não usar camisinha e acabam contaminando as esposas. Eu vi entrevistas de pessoas que pagam mais por sexo sem camisinha.
Fora a aids, no âmbito das DSTs, que outra doença é um problema?
A sífilis tem índices altos, apesar de não ser alarmante.
Sobre a hanseníase, como ficam os índices da cidade de São Paulo, se comparados com os de outras cidades do mundo?
Aqui é bem maior. Isso é resultado de falta de higiene, má nutrição, falta de esclarecimento. A pobreza é a maior causa.
E a tuberculose?
É a mesma coisa. E é engraçado porque é uma doença que já tinha sido praticamente erradicada e hoje é emergente. Na FSP, havia um Departamento de Tisiologia [parte da medicina que estuda a tuberculose] que ficou um bom tempo em “estado latente” e agora está voltando à ativa pelo aumento dos casos. As causas são, como eu já disse, a pobreza, a falta de higiene, ambiente insalubre de trabalho, a poluição, a deterioração do meio, formação de ilhas de calor na cidade e muitos outros fatores. Até a década de 70, 60% da população estavam na zona rural e hoje quase 90% da população vivem na zona urbana. Isso trouxe uma série de problemas. As más condições de habitação dessa população que migrou para os centros influenciam muito nessa questão.
As estatísticas mostram que a população “envelheceu”. Como o senhor vislumbra essa situação?
Essa é uma tendência não só no Brasil. Embora hoje haja exames preventivos, uma tecnologia melhor, diagnósticos, mapeamento de várias doenças etc., existe uma série de doenças que acompanha a degradação biológica natural do indivíduo. É possível atenuar isso tudo com cirurgias e tratamentos, mas não se pode evitar. Há quem diga que todas as pessoas a partir dos 60 anos já estão de alguma forma com câncer. Isso é associado ao tipo de alimentação, idade, fator genético. Antigamente as pessoas morriam mais novas e uma pessoa de 60 anos já era considerada velha, e assumia uma postura de velho. Hoje não, quem tem 70 anos assume uma postura muito mais jovem. Isso não impede, no entanto, que uma série de doenças apareça, como diabetes, mal de Alzheimer, câncer. As políticas públicas hoje já têm programas específicos para a terceira idade, como o Programa de Assistência à Família (PAF), da FSP, em que há um setor que atende apenas os idosos. Mas não se pode fugir disso. O próprio SUS já tem preocupações com essa parcela da população.
E o caso da saúde mental? Essa é uma questão de que se fala pouco, mas é séria na sociedade moderna.
Esse é um outro problema que tem sido objeto de discussões em encontros e seminários. O ambiente moderno da cidade é um fator indutor para que as pessoas fiquem desajustadas. O ruído, a poluição, o trânsito, a segurança, o fato de as pessoas ficarem mais velhas são todos fatores que têm levado ao aparecimento de desequilíbrio mental em graus maiores.
A depressão gera uma indústria ao seu redor, seja de remédios, seja de outros tratamentos. Há pessoas que já se habituaram a tomar remédios de tarja preta, seja para dormir, para acordar, ou para ficar de pé. Seria esse outro tipo de epidemia?
Não diria epidemia, porque dá uma conotação alarmante. Essas coisas existem, sim, mas nem todo mundo é depressivo. Claro, há um grande número de pessoas que padecem desse mal, em maior ou menor intensidade, mas falar numa epidemia seria temeroso. É uma patologia que tem se acentuado muito nos últimos tempos, principalmente nas regiões metropolitanas, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Essa superpopulação da cidade tem contribuído para que o quadro de depressão e estresse aumente. O que faz com que se exija também do poder público uma atitude.
Na FSP já se pensa nessa questão como um departamento em crescimento, sugerindo uma política pública?
Há um departamento no centro de saúde da FSP, que se chama Departamento de Saúde Materna e Infantil, e lá se discute muito esse problema de depressão e da acepção dessas pessoas na sociedade. Há também algumas disciplinas em que se discute como prevenir e melhorar esse quadro, e de que maneira o setor público deve intervir. É, então, um motivo de preocupação atual.
E a saúde ambiental?O Departamento de Saúde Ambiental tem vários setores. Há um setor que trabalha a saúde do trabalhador, o ambiente de trabalho na indústria e no escritório; outro setor trabalha com poluição de água, desde a água de abastecimento até a água de recreação; um setor se preocupa com a poluição do ar; outro trabalha com lixo, resíduos sólidos, remoção do lixo, disposição do lixo; e há o setor de gestão ambiental. Há uma gama enorme de assuntos que se referem à saúde ambiental não só no ambiente de trabalho, mas também fora. Todo mundo conhece o Rio Tietê e o esforço que está sendo feito para melhorar sua condição, todos os projetos de melhoria do rio para que ele tenha um efeito estético-paisagístico. É interessante notar que em 1972 ainda houve uma competição no Tietê, e no final do século 19 e início do século 20 esse rio tinha um papel na sociedade assim como têm o Tâmisa, o Reno, o Danúbio. Foi um rio que permitiu que o Brasil se interiorizasse, que forneceu areia para a construção e que fazia abastecimento de água. À medida que a cidade foi sendo ocupada aleatoriamente, isso tudo foi se perdendo. Hoje as pessoas viram as costas para o rio porque ele virou um veículo transportador de esgoto, e aí culpam as autoridades. No entanto, à medida que se faz um trabalho de limpeza do rio e se retiram dele mais de 100 mil restos de pneus, percebe-se que há também a questão da falta de educação ambiental, o que leva a um problema de saúde ambiental. Nós impermeabilizamos essa cidade, São Paulo tem mais de 1.400 rios e riachos canalizados e essa canalização continua. Não se repõe o ciclo hidrológico e aí aparecem as ilhas de calor, modificando as condições climáticas, as direções do vento, e as emissões de gases de fábricas ficam pairando pela cidade. Tudo isso é uma questão ambiental. O que mais me dói nisso tudo é que São Paulo é um exemplo para outras cidades. Se nós tivéssemos preservado o Rio Anhangabaú ou o Tamanduateí, e algumas áreas verdes, essa cidade teria uma paisagem muito mais bonita e um clima bem melhor. E hoje isso tudo continua acontecendo em outras cidades, seguindo o modelo daqui. Todos esses problemas surgem num período que vai do final do século 19 até a década de 50 do século 20. Havia pessoas preocupadas, como Teodoro Sampaio [1855-1937, engenheiro, jornalista, geólogo, realizou relevantes serviços em obras públicas em São Paulo], Emílio Ribas [1862-1925, médico infectologista, precursor do sanitarismo no Brasil] e Doutor Arnaldo [Arnaldo Vieira de Carvalho, fundador e primeiro diretor da Faculdade de Medicina da USP], mas que foram deglutidas pelo sistema. O lema era crescer a qualquer custo. No meu tempo de jovem havia um emblema da cidade que tinha uma chaminé soltando fumaça após os dizeres: “São Paulo é a maior metrópole da América Latina” e “São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo”. Por exemplo, em 1926 houve um projeto maravilhoso do Saturnino de Brito, um engenheiro de ótima visão ecológica, que tinha a intenção de transformar o que é hoje a rodoviária do bairro do Pari em uma grande represa para reservar água das chuvas, tendo um efeito paisagístico e climático, e que poderia ser usada tanto para recreação quanto para o abastecimento de água. Bombardearam esse projeto e fizeram as marginais, e aí deu nisso que estamos vendo. Tudo em nome do progresso. Nós deixamos passar tudo isso e o caos vai acontecendo até 1953, quando sai a primeira estação primária de tratamento de esgoto de São Paulo, em Pinheiros, hoje desativada. A Secretaria do Meio Ambiente, que depois deu origem ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) só surge em 1973. Perdemos quase um século de degradação. Hoje temos uma legislação muito bem estruturada, temos o Ibama, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Mas isso tudo é muito recente. A primeira entidade que começou a se preocupar em São Paulo foi a Comissão Intermunicipal do Controle da Poluição das Águas e do Ar do ABC (Cicpaa), em 1958. Essa entidade surgiu através de subsídios industriais, mas não por causa de uma preocupação ambiental em si. A intenção era não correr o risco de ter de parar de fabricar um produto pelo fato de a água usada no processo estar poluída. Além disso, a poluição do ar estragava o produto manufaturado. Então mandaram os primeiros técnicos para os Estados Unidos para estudar esses problemas. A Cetesb, que se tornou, e ainda é, um dos órgãos de referência da Organização Mundial da Saúde (OMS), só surgiu em 1968. A gente perdeu muito tempo para estruturar uma política de saneamento e de meio ambiente com forte respaldo na saúde.
Tendo em vista que foi tardio o surgimento desses órgãos e instrumentos de política pública, quais são seus reflexos?
Temos de correr atrás agora, para melhorar condições que já podiam ter sido minimizadas bem antes. E algumas coisas já se tornaram até irreversíveis, as modificações foram tais que não há como retroceder. Num de meus livros eu reproduzo um trecho do Rodolfo von Hering, um naturalista que em 1922 publicou um artigo indignado no jornal sobre o Bosque da Saúde, que na época era uma área de São Paulo em que as pessoas iam veranear, fazer alpinismo e procurar um clima melhor no fim de semana. A mata atlântica era exuberante ali ainda e um fulano que era dono de uma gleba no lugar publicou um negócio dizendo que tinha pressa em derrubar a mata porque ele queria plantar batata. O Von Hering ficou louco da vida. E isso logo foi derrubado mesmo.
E a questão das doenças respiratórias? Em 1930, por exemplo, não havia esse problema em São Paulo, havia?
Não tinha. Era uma cidade que tinha garoa. As doenças eram outras, como as associadas a ratos. O lugar onde a FSP está hoje tinha um incinerador especificamente para ratos. Eu tenho um fac-símile do jornal Correio Paulistano mostrando que a prefeitura pagava 100 réis para cada rato que a pessoa levasse lá para incinerar. Isso porque há muitas doenças associadas à presença do rato, pela urina, pela mordida etc. Aí, o Oswaldo Cruz [1872-1917, médico sanitarista], quando saneava a cidade do Rio de Janeiro, implantou o mesmo projeto lá. Mas deu uma zebra porque as pessoas começaram a criar ratos para vender. Então, tiveram de suspender o programa. Eram outros tipos de problemas: sarampo, caxumba, catapora, varíola, pólio. E depois essas condições foram melhorando com vacinas e políticas públicas.
O senhor acha que têm havido ações em relação à saúde ambiental da cidade de São Paulo?
Quando eu me formei, fui trabalhar na Cicpaa e dali eu passei pela Companhia Metropolitana de Ar (Comasp), atual Sabesp, e de lá fui trabalhar como biólogo da Cetesb. Tudo era incipiente. Então foram estabelecidos os primeiros programas, o controle dos despejos industriais, e a Sabesp cuidou do esgoto doméstico. Acho que houve um grande avanço e, como eu disse, há muitas críticas em relação à Cetesb, à Sabesp e à estrutura da gestão ambiental, mas o que não se pode é permitir que isso termine. É necessário que se burile e se fortaleça o sistema porque muita coisa foi criada, como câmaras técnicas para discutir normas e diretrizes em relação à saúde pública. Uma coisa importante a fazer é aparelhar o Estado para que tenha um sistema de fiscalização eficiente. Para uma indústria se instalar, ela precisa obedecer a uma série de normas, todas já estabelecidas. Só que depois não há recursos para fiscalizar e aí tudo depende da consciência do dono. A Cetesb hoje tem um sistema de monitoramento dos rios de São Paulo que é muito interessante e que coloca os resultados à disposição de qualquer um, on-line, dando um quadro da qualidade das bacias hidrográficas.
Isso seria um controle auxiliar à saúde?
Tudo isso que eu estou falando é saneamento. Mas saneamento não é desvinculado de saúde. Aliás, não há saúde pública se não há controle ambiental, saneamento, controle e higiene da habitação e das condições de trabalho.