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Software de sociabilidade

 por Cássio Quitério

Ainda que alguns teóricos considerem uma ruptura com a disciplina moderna, o homem contemporâneo se mostra viciado no movimento de apertar os parafusos da máquina, como Carlitos, em Tempos Modernos, obra que propõe a questão (renovada a cada novidade no mercado) sobre a interação entre homens e máquinas como instrumento da criatividade.

As facilidades trazidas pelas constantes inovações da tecnociência são celebradas, principalmente aquelas que incidem sobre a atual forma de riqueza e diferenciação – a informação, como se qualquer de suas aplicações funcionasse automaticamente para o desenvolvimento social. Partem dessa premissa descuidada os esforços para se estender os benefícios do desenvolvimento tecnológico a públicos não iniciados na parafernália informática, a saber, as ações e discursos públicos e privados sob o slogan “inclusão digital”.

O resultado observado na maioria dos projetos que se apóiam no termo é um posicionamento automático do indivíduo como consumidor de conteúdo da informática/internet e sua obsolescência como sujeito produtivo, garantidos pelo ritmo acelerado de novidades e constitutivos da própria lógica do capitalismo. Tais fatores colocam o slogan na berlinda e sujeitam o discurso da “inclusão” à contestação em relação a sua eficiência.

As máquinas da indústria de base, o rádio, a televisão e outras invenções humanas surgiram e foram apropriadas em uma lógica de sociabilidade que lhes definiu a utilidade. Assim também a última geração de equipamentos da informação, incluindo os modos de usar os computadores (softwares), manifestam automaticamente as lógicas predominantes do relacionamento social contemporâneo. Outras utilizações são possíveis, além das que conhecemos, e por que, como desafio, não podemos imaginar também outras formas de sociabilidade, além da que vivenciamos?

É nesse quadro que se insere a disputa de terreno entre o software proprietário e o software livre. É sabido que a opção pelo software livre torna mais econômica a informatização de uma empresa ou órgão público, já que estes podem não pagar as licenças de utilização de tais programas. Automática e erroneamente, estende-se esse argumento à campanha de popularização do software livre, reduzindo o “livre” a um aspecto econômico. Em um contexto em que o próprio software proprietário permite o drible à insustentável regra das patentes, o uso popular do livre não é vantagem para o bolso do consumidor comum. Mas só esse fator ainda não dá conta de explicar o porquê da dificuldade de disseminação do uso popular do código aberto.

Ao trabalho de se aprender como funciona um novo sistema operacional que não traz suas funções tão automatizadas e moduladas como o da Microsoft (que pode ser “pirateado” através de suas próprias ferramentas), prefere-se a inércia do uso restrito do sistema proprietário.

A possibilidade da colaboração e o uso participativo como motores da criação, verdadeiras novidades do software livre, no qual os bugs se resolvem a partir da aprendizagem coletiva, encontram expoentes também nos campos da arte e das gestões coletivas de projetos, por exemplo. É o entendimento dessas novidades como potencialidades que falta para que a proposta de migração vislumbre uma efetivação, não só relativa ao uso de sistemas operacionais em computadores, mas, muito além disso, às formas de sociabilidade.

A dinâmica da programação e uso em código aberto, sempre em processo, evidencia (justamente na área-chave para o turbocapitalismo – os modos de se manipular a informação) a diferença entre a “inclusão” em um sistema/rede que já se mostra configurado e a ampliação das possibilidades de criação e participação nessa rede.

Estar preparado para migrar é saber aproveitar as condições de um novo ambiente. No nosso caso, é entender que o foco dos projetos da chamada “inclusão” não deve ser automaticamente direcionado para a interação humano–máquina, pois a desejada transformação social nunca deixou de habitar a relação entre humanos e humanos.

Cássio Quitério, formado em sociologia, ciências políticas e jornalismo, é instrutor de internet e multimídia no Sesc São Paulo