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Alca - Área de Livre Comércio das Américas. Qual o preço a pagar? Entre os tópicos de discussão sobre o pacto econômico, a questão da produção artística e intelectual dos envolvidos ganha destaque. Falar de Alca e cultura é voltar à velha questão da dominação cultural? Em artigos exclusivos, os professores Fábio Lucas, Sérgio Gil Marques dos Santos e José Augusto Guilhon Albuquerque esclarecem o que existe por trás da sigla mais falada da atualidade

Reflexões sobre o Brasil na Alca: a cultura
por Fábio Lucas

Deve ser atribuído tratamento especial à circulação de bens intelectuais entre os signatários do pacto da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). É que existe um volume enorme de negócios ao redor da propriedade intelectual e da produção literária, artística e científica, a ser resguardada. Enfileiram-se direitos autorais, reproduções, difusão de sons e imagens, retransmissões, interpretações, execuções fixadas em fonogramas, armazenamento de bens culturais nos meios eletrônicos, sua distribuição, enfim, um mundo de direitos do autor e conexos a considerar. Do contrário, o pacto poderá reproduzir o estado de dependência em que nos encontramos.
Vejamos exemplos corriqueiros de dependência: ouse o cidadão ouvir música popular brasileira - considerada das mais criativas do planeta - na radiodifusão nacional; procure o leitor realizar suas compras mediante sugestões dos suplementos culturais da grande imprensa do País: encontrará dois terços do espaço informativo destinado a obras estrangeiras; tente o cinéfilo acompanhar a cinematografia latino-americana, ou européia, ou asiática, ou qualquer outra fonte que não seja estadunidense. Não haverá liberdade de escolha, portanto, mundo livre.
Do documento Fundamentos para o novo contrato social, elaborado pelo Conselho Econômico e Social do governo, consta, na derradeira cláusula (nº 16), cultura e turismo como instrumentos de valorização do patrimônio cultural e identidade nacional e também como promotores de desenvolvimento sustentável.
No encontro do ministro Celso Amorin e representantes de catorze países com o representante de comércio dos Estados Unidos Robert Zoellick, no dia 8 de novembro, esboçou-se entendimento em que se inclui o estabelecimento de regras comuns para serviços, compras governamentais, investimentos e propriedade intelectual.
A questão é que, fixados na posição de dependência, floresce entre nós o conceito de cultura como epifenômeno da tecnologia ou da economia, consolidadas como forças motrizes da História. Impera a noção do pragmatismo filosófico imposto pela hegemonia estadunidense, o que degrada a conquista cultural dos povos diante do nivelamento de tudo à esfera do mercado e do consumo.
A visão da ordem social vigente não admite formas alternativas de conceitos políticos de integração. O princípio da fragmentação tornou opaca a experiência de novo paradigma de intercâmbio sócio-político e econômico.
Assim, do ponto de vista cultural, cumprirá à Alca e aos governos associados desenvolverem intercâmbio que, além de promover a intercomunicação dos povos, sempre afortunada e estimulante, ajude as nações na preservação e engrandecimento do patrimônio intelectual.
Deve ser incrementada a troca de experiências literárias, artísticas e científicas, como também respeitadas as criações inerentes à cultura - como formas de subsistência, hábitos de convivência e usos de biodiversidade. O limite da atividade econômica e tecnológica, que tanto enriquece a humanidade, deve ser encontrado no âmbito da ecologia, a fim de que o vigor da produção, circulação e consumo das mercadorias não implique a destruição das reservas ambientais, a destruição do futuro da humanidade.
Deste modo, a Alca deverá ser o pacto que restaure o modelo de intercâmbio e não se destine a consagrar o princípio da hegemonia. Do contrário, os bens culturais, os mais relevantes para a perpetuação dos povos, serão feridos de golpe de morte.
Tudo isso na suposição de o Brasil aderir à Alca e negociar sua agenda de importação e exportação de bens e serviços. Pode o livre comércio ser instrumentalizado para destruir a pequena parcela de autonomia que nos restou. É desse tema que a opinião pública, políticos, intelectuais e cientistas devem acautelar-se. Já se forma um movimento nacional de recusa ao pacto. O fracasso da globalização já surte efeito.
Noticia-se que no Fórum Social Brasileiro lançou-se, em Belo Horizonte, a 7 de novembro, uma campanha nacional para que, nas eleições municipais de 2004, haja plebiscito acerca do ingresso do Brasil no bloco comercial. Existe, no Senado, projeto do senador Saturnino Braga que prevê a realização do plebiscito. Além do mais, na delicada matéria, devem-se estimar, além dos benefícios materiais, as agregações não mensuráveis, como aquisição de cultura, criações do espírito e robustecimento da soberania nacional.

Fábio Lucas é professor, ensaísta e crítico literário, autor de Literatura e comunicação na era eletrônica (Cortez Editora 2001), Expressões da Identidade Brasileira (Educ 2002) e O poeta e a mídia: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (Senac São Paulo 2003)

Alca e produção cultural: ameaça para quem?
por José Augusto Guilhon Albuquerque e Sérgio Gil Marques dos Santos

As negociações relativas ao comércio internacional e à integração econômica visavam inicialmente a eliminar tarifas e outras barreiras contra o comércio de bens industriais. Só recentemente incluíram-se outras barreiras não-tarifárias e especialmente a eliminação ou adequação de empecilhos de natureza regulatória, e é nessa categoria que se tem tratado dos bens de natureza cultural.
As questões regulatórias dizem respeito às leis internas ou políticas nacionais que supostamente distorcem ou inviabilizam a livre competição entre produtores e investidores de diferentes países. No âmbito de serviços, que é o capítulo onde cabe a maior parcela da produção cultural, essas distorções dizem respeito não somente à livre entrada de produtos culturais estrangeiros, tais como livros, revistas, espetáculos, produções audiovisuais, mas, sobretudo, ao direito ao investimento, a ter tratamento igual ao dos produtores nacionais, à eliminação de subsídios que distorcem a competição.
Assim sendo, qualquer que seja o impacto da Alca, como de resto do Mercosul, dos acordos da OMC ou dos acordos entre o Mercosul e a União Européia, tal impacto decorrerá do maior acesso dos produtos culturais estrangeiros ao consumidor nacional, e não de algum suposto favorecimento ou regras restritivas para a produção nacional, e ainda menos da adoção compulsória de qualquer tipo de padrão cultural ou estético.
No âmbito das negociações da Alca, pouco destaque tem sido dado aos aspectos relativos à produção e ao consumo de bens e serviços culturais. Nem o governo, nem os produtores culturais, nem as empresas do setor têm manifestado apreensão com respeito aos eventuais prejuízos resultantes da Alca.
Algumas organizações e movimentos antiglobalização têm, por sua vez, levantado a questão. Geralmente como um argumento a mais contra os supostos efeitos deletérios da Alca. Alegam que resultará na hegemonia absoluta da produção norte-americana de bens e serviços culturais, acarretando a destruição, ou mesmo extinção, das culturas regionais, num processo de massificação e estrangulamento do processo criador que gera a diversidade cultural.
Tanto na Alca quanto na OMC, a produção cultural insere-se no capítulo referente a serviços, com implicações sobre investimentos e propriedade intelectual. No bojo das negociações que resultaram na criação da OMC em 1995, a União Européia, a partir de proposta da França, logrou incluir o princípio da exceção cultural para os serviços culturais, visando a defender, particularmente, sua produção. Tal exceção permitiu-lhe impor uma série de medidas restritivas a produções estrangeiras - como cotas de transmissão e exibição - ou subsídios e incentivos à geração de bens culturais. O princípio da exceção cultural já fora alegado pelo Canadá - temeroso da perda de sua identidade cultural frente à competição americana - em seu acordo de livre comércio com os EUA em fins da década de 1980. Com a negociação do Nafta, que além dos EUA e Canadá incluiu o México, essa isenção da indústria cultural foi mantida, preservando as barreiras e os subsídios supostamente destinados a conter a invasão da cultura americana.
Nas atuais negociações da Rodada de Doha da OMC, a União Européia vem reiterando sua disposição de não liberalizar o mercado de bens e serviços culturais, sendo acompanhada pelo Canadá. No outro extremo, os EUA insistem em sua ampla liberalização. No meio termo, o Brasil defende uma liberalização progressiva do setor, ao mesmo tempo em que se garanta autonomia aos governos para preservar e promover a identidade e diversidade culturais. Isto tendo em vista o nosso perfil exportador de produtos audiovisuais, particularmente as telenovelas.
Tal posição foi iniciada pelo presidente Fernando Henrique e mantida pelo presidente Lula, o qual a qualificou como uma terceira via, em recente encontro com o presidente francês Jacques Chirac. Tanto que, quando da apresentação das demandas de abertura de setores relacionados a serviços, o Brasil reivindicou a abertura do mercado comunitário europeu, tendo sido a recusa da União Européia vista como uma medida protecionista, semelhante àquela praticada pelos europeus no delicado tema da agricultura.
Para o Brasil, tamanha insistência na garantia do livre comércio do setor audiovisual, por meio da definição das regras do GATS, válidas para todos os membros da OMC, impedindo eventuais restrições, revela-se prioritária, considerando-se o crescente volume de divisas que daí resultam. Segundo dados apresentados pelo Coordenador Nacional Adjunto do Comércio de Serviços do Ministério das Relações Exteriores, Felipe Hees, as exportações brasileiras relacionadas do setor - com ênfase nas telenovelas - para os mercados da Europa (em geral), América Latina e comunidade latina dos EUA representaram ingressos da ordem de 324 milhões de dólares, entre 1999 e o primeiro semestre de 2001, gerando ainda 1,5 bilhão de dólares relativos às receitas com propaganda, representando cerca de um terço da totalidade do mercado publicitário brasileiro.
No que concerne à Alca, os EUA, coerentes com sua posição na OMC, pleiteiam a ampla liberalização de todas as categorias de serviços por parte de todos os membros, ao enfatizar que buscará que os demais países também o façam, assim como se propõem a oferecê-la. Quanto ao Brasil, sua posição na última reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca, em Port of Spain, entre 29 de setembro e 3 de outubro deste ano, em favor de uma Alca light, levou-o a propor a exclusão de diversos temas da negociação no âmbito do bloco, remetendo-os para a OMC, inclusive serviços. Mas essa tática destina-se não a excluir a produção cultural do processo de liberalização, que ao contrário nos favorece, mas sim a tornar o item sobre serviços um objeto de barganha na negociação com os EUA, com vistas à liberalização do mercado agrícola e de bens industriais daquele país.
Portanto, não nos parece que o atual governo, expressando os interesses dos produtores e empresários mais competitivos do setor cultural, esteja excessivamente preocupado em adotar uma posição defensiva no que se refere à abertura do mercado de bens e serviços culturais, seja no âmbito da Alca, seja no âmbito global. Está, com efeito, mais concentrado em reivindicar a abertura dos mercados alheios, tendo em vista a expansão do alcance dos nossos produtos audiovisuais, geradores crescentes de divisas.
Por outro lado, a querela em torno da dominação cultural americana sobre o continente, e particularmente o Brasil, é bastante antiga e de há muito precede a Alca. No cinema, desde os anos 1950, veiculava-se que os musicais de Hollywood dominavam as telas nacionais. Com o advento das redes nacionais de TV, o mesmo temor passou a ser veiculado com respeito à suposta homogeneização cultural via Rede Globo. Entretanto, aqueles que empregam tais argumentos para defender o subsídio público e o argumento de barreiras contra a veiculação de idéias e de cultura estrangeiras não deixam claro como fariam para impedir fenômeno análogo no próprio País. Mediante censura?
Na verdade, a sobrevivência da produção autenticamente nacional prescindiu dessas barreiras e do mecenato oficial, pois a imensa maioria dos grandes sucessos da indústria cultural brasileira, das chanchadas da Atlântida à Bossa Nova, do Cinema Novo à Tropicália, nasceu ao largo das grandes empresas e do paternalismo estatal, e mesmo assim prosperou e marcou nossa história e, em alguns casos, mudou o rumo da arte e da cultura mundial.

José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de Ciência Política e coordenador científico do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP
Sérgio Gil Marques dos Santos é doutorando em Ciência Política e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP