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Exposição 2
A imaginação e a realidade

Pedimos ao leitor que aceite por agora, como afirmação plausível, que numa parte do mundo, que durante séculos tinha sido civilizada, e em alto grau de civilização, emergiu lentamente um povo não muito numeroso, não muito forte, não muito bem organizado, que tinha uma concepção totalmente nova da finalidade da vida do homem, e que mostrou pela primeira vez as possibilidades do espírito humano.
H.D.F. Kitto, crítico e escritor

Imagine-se agora distante do presente ano de 2003 d.C. Esqueça carros, aviões, computadores, internet, cinema e milhares de outras maravilhosas invenções da modernidade que fazem parte da sua vida. Imagine o passado. Passe pelo século XX, bata um papo com os iluministas e viva o clima eletrizante da Revolução Francesa no século XVIII, parta do Velho Mundo em uma das caravelas de Cabral, pinte a Capela Sistina junto de Michelangelo, participe de uma cruzada na Idade Média, assista a um espetáculo de gladiadores no Coliseu na Roma Antiga. Deixe a península itálica, volte mais alguns séculos e chegue à Grécia antiga, por volta da segunda metade do século V a.C. Foi nessa época que os gregos passaram a influenciar toda a região do mediterrâneo e, hoje se sabe, toda maneira de existir do homem ocidental. Localizado entre a Europa, ao norte; a África, ao sul; e a Ásia, a leste, desde a Pré-história o Mar Mediterrâneo é a principal via de comunicação entre os três continentes. As características da Antiguidade que reconhecemos como gregas são, portanto, resultado de diversas influências que a Grécia recebeu do norte da África, da Ásia Menor e da Europa.
Não esqueça: os valores cristãos surgiriam 600, 700 anos depois desse tempo. Freud viveria dois milênios depois. Ou seja, não basta levar o pensamento a lugares distantes no tempo. Essa viagem só pode ser feita se entendermos que o comportamento do homem daquele tempo e seus valores muitas vezes eram completamente diferentes dos nossos. É fundamental que vejamos o mundo por trás dos olhos daquelas pessoas. O que caracterizava o homem da Grécia antiga não era somente ter nascido dentro dos limites do império. Para eles, tudo era real; tanto o mundo concreto e lógico quanto o mundo imaginário. Pode-se notar, a imaginação grega era fértil. Muito fértil. Criou dezenas de deuses, heróis, ninfas, ergueu centenas de esplendorosos templos para eles; concebeu a democracia, articulou a ética, inventou a filosofia, a comédia, a tragédia, as Olimpíadas e louvou o amor ideal, vivido entre os homens cidadãos e, em geral, discípulos dos filósofos. Cada uma das heranças gregas embarcou no trem da História e viajou por todos os períodos da humanidade desde então. Sua última parada aconteceu no Sesc Pompéia e transformou a área de convivência da unidade em uma mini-Grécia com a exposição Que Herói Sou Eu?, que esteve em cartaz até o final do mês passado.

Filosofar para quê?
A idéia da mostra surgiu dos técnicos da unidade a partir do trabalho feito com as crianças no Sesc Curumim. Procuramos sempre fazer com que as crianças reflitam, ouçam a opinião dos outros, trabalhem em equipe. Queríamos ampliar essa experiência e assim criamos um projeto para proporcionar essas práticas. Escolhemos oito heróis dos mitos gregos e por meio das principais características de cada um buscamos fazer as crianças pensarem sobre a vida, valores morais, enfim, sobre o mundo que a cerca, explica Rogério Furlan, técnico do Sesc Pompéia.
Instigar a imaginação alheia não é tarefa difícil quando se tem um mundo cheio de heróis, deuses e seres encantados. As sagas de Teseu, Ariadne, Perseu, Jasão, Atalanta, Hércules, Ulisses e Aquiles foram o ponto de partida para fazer pensar sobre os valores que regem a vida e, mais ainda, para aplicá-los na prática da melhor maneira. Além de brincar com as instalações - compostas por jogos da memória, cubo mágico, quebra-cabeças gigantes, labirinto do Minotauro e jogo de espelhos da Medusa - as crianças - não somente elas, mas também adolescentes e adultos - colocavam o cérebro para raciocinar em oficinas de filosofia, desenho e etimologia (estudo sobre a origem das palavras), além de assistirem à peça A História da História, que trouxe a saga do herói Perseu e foi encenada pela Cia. Caixa de Imagem. A partir da história dos valores apresentados na história de cada herói, levávamos o pensamento dos participantes ao exercício da reflexão. Esse questionamento, inevitavelmente, impulsiona o pensamento filosófico, que acontece como se desautomatizássemos a nossa percepção do mundo. Ao fim, pensamos sobre o conteúdo e o processo das coisas. Nesse sentido, a filosofia pode dar às pessoas condições para agir melhor. Em uma sociedade onde as pessoas pensam mais nos seus atos, a qualidade de vida tende a ser maior, explica Tanny Plantier, professora do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, umas das responsáveis pelas oficinas de filosofia.

Caminho para a felicidade
Na verdade, o que o público fez durante esses dois meses de exposição não foi nada mais que transformar em ação um antigo conceito deixado pelos antepassados gregos: a ética. O leitor saberia responder rapidamente o que ela quer dizer? Essa palavrinha tão falada no nosso dia-a-dia, mas tão mal usada, costuma causar uma certa confusão quanto ao seu significado. Geralmente falamos que determinado comportamento é ético quando os valores morais nele embutidos estão de acordo com aquilo que concordamos ser o mais certo, o mais justo. Mas a ética é um exercício, como o proposto todo o tempo pela exposição Que Herói Sou Eu?, que procura refletir sobre os valores morais que regem determinado grupo. Para Aristóteles, tido por alguns como o maior gênio que a humanidade já teve, somente através desse tipo de prática é que o homem pode ser feliz. Para ele, a felicidade não são alguns bons momentos que temos na vida. É um estado perene, que só é alcançado se tivermos chegado à serenidade, à temperança, explica a professora de Filosofia da Universidade Anhembi Morumbi, Tereza Verardo, que assessorou os técnicos do Sesc na concepção da mostra. Só podemos alcançar essas virtudes se formos éticos, ou seja, depois de refletirmos sobre cada meandro dos valores morais que guiam nossa existência, afirma.

Democracia e cidadania, privilégio de poucos
Ambas foram uma invenção ateniense. A democracia é atribuída a Clístenes, filósofo e político, que viveu em Atenas. Mas a estrutura e o funcionamento do regime na Grécia antiga era bem diferente do que o praticado agora. Eles tinham a democracia direta; nós, a representativa; ou seja, escolhemos quem vai governar as cidades, nosso país. Lá, os cidadãos é que governavam literalmente, tomavam as decisões e as executavam. Eram escolhidos para postos públicos por sorteio e ficavam nesse trabalho por no máximo dois anos. Não havia departamentos de governo nem serviços públicos. As decisões políticas eram tomadas na Ágora. A cidadania era extremamente importante em suas vidas e, no geral, era exercida com toda responsabilidade. Para se ter uma idéia do que ela significava, textos que relatam os últimos dias do filósofo Sócrates na prisão em que esperava a morte, após ser condenado a beber a venenosa sicuta, mostram que ele não aceitou a fuga proposta por Críton, um de seus alunos, por preocupar-se com o legado que deixaria a seus filhos, que seriam estrangeiros em qualquer outra cidade grega e, portanto, não poderiam exercer a cidadania, que era privilégio de alguns. Além dos estrangeiros, mulheres e escravos não podiam participar da vida pública.
Escravos: eram prisioneiros de guerra, geralmente pessoas dos chamados povos bárbaros.
Estrangeiros: não bastava ser grego para ser considerado um homem cidadão; era necessário ter nascido na cidade em que habitava.
Mulheres: até Aristóteles as considerava menos inteligentes. Para ele, o útero da mulher era um animal a ser domado e com o qual ela gastava toda sua energia, sem lhe sobrar tempo para refinar o intelecto. Enquanto os homens faziam política e comércio na rua, elas trabalhavam dentro de casa, o que significava fiar o tecido para costurar a própria roupa até os trabalhos domésticos mais pesados.


Deuses e heróis
Os gregos eram bastante religiosos e tinham muitos deuses, o mais poderoso era Zeus. As entidades gregas são parte do universo e do mundo e não externas a eles, como é o Deus cristão-hebraico. Lutam entre si e com mortais para garantir que seus interesses triunfem. Não amavam os homens e nem impunham a eles códigos morais ou de crença. Eram bons e maus, e exigiam que seus poderes fossem reconhecidos; por isso mereciam respeito. Assim sendo, retribuíam e ajudavam os seus eleitos. Em Atenas, o culto a eles era feito em templos e orientados por sacerdotes ou sacerdotisas. Mas estes não chegavam a essa posição por vocação. Eram escolhidos por sorteio e exercitavam esse trabalho por cerca de um ano. A função deles era simplesmente cuidar para que o ritual fosse executado de maneira apropriada.
Os heróis gregos eram como semideuses. Viviam como os mortais, mas possuíam qualidades especiais. Geralmente eram filhos de um deus com uma mortal. Assim como as divindades, tinham defeitos, realizavam proezas e também grandes besteiras. De uma certa maneira, estavam ainda mais próximos ao homem e por isso serviam de espelho aos simples mortais, cheios de dilemas. Na verdade, os heróis gregos representam a complexidade da existência humana. Os heróis falam de nossos conflitos psíquicos, suas histórias representam os ritos de passagem da nossa vida. O mito fala simbolicamente da nossa vida e o homem é um ser simbólico. Aprendemos muito mais com o simbolismo do que com o literal, explica a professora de filosofia Tereza Verardo.

Leia mais sobre a Grécia Antiga:
O Mundo de Atenas, Editora Martins Fontes. Peter V. Jones, organizador
Na internet:
www.mundodosfilósofos.com.br
www.warj.med.br