Exposição em cartaz no Sesc Vila Mariana relembra O Tico-Tico (1905-1957), a revista que ensinou o Brasil a ler
O nício do século 20. O mundo ocidental experimentava uma série de descobertas tecnológicas que mudaria sua concepção de realidade em definitivo - dizem até que nos seus primeiros cinqüenta anos evoluiu-se mais que em todos os séculos anteriores. Nesse contexto, a criança, há muito considerada simplesmente como um ser humano a ocupar seu lugar na sociedade quando crescesse, passou a ser institucionalizada, ou seja, estabelecida como elemento da sociedade. Já na passagem para o mundo moderno, a sociedade passou a ser constituída não mais nos moldes das famílias do meio rural, explica a educadora Gisela Wajskop. Houve uma migração para o meio urbano. O que significou a constituição das pequenas famílias. Com isso, criou-se o chamado sentimento pela infância, que é essa criança aparecendo na cena social. A educadora explica que, nesse processo, o século XX aparece como século da criança. Aquele que, de fato, valorizou a infância, inventou a psicanálise e a psicologia e viu a antropologia se voltar para o infante. A reboque começaram a surgir as, hoje muito conhecidas, pesquisas de marketing e a descoberta de um mercado específico. Ou seja, se o século XIX descobriu a criança, o século XX inventou a infância, criando condições para que ela tivesse cada vez mais possibilidades de se desenvolver e diferenciando a criança do adulto, analisa Gisela.
Reco-Reco, Bolão e Azeitona Nesse cenário de invenções e descobertas, surge uma publicação pioneira na arte de falar para os pequenos. As primeiras histórias em quadrinhos, o primeiro almanaque dedicado ao universo infantil. Lúdica e ao mesmo tempo preocupada com a educação e a informação, a saudosa revista O Tico-Tico é lançada em 1905 pela empresa editorial O Malho. O periódico foi criado pelo cartunista Luiz Sá e teve entre seus colaboradores o lendário desenhista italiano Angelo Agostini, figura da pré-história dos quadrinhos no Brasil. Como explicar o sucesso da revista que formou, no início do século passado, várias gerações de leitores e expoentes brasileiros?, indaga o professor Arnaldo Niskier, membro da Academia Brasileira de Letras e curador da exposição Tico-Tico Lá Tico-Tico Cá, em cartaz até dezembro no Sesc Vila Mariana (ver box). Os seus personagens eram geniais e refletiam diversos aspectos da realidade brasileira. Marcaram profundamente homens de expressão cultural como Rui Barbosa e Carlos Drummond de Andrade. Não havia como escapar do fascínio de Kaximbown, Zé Macaco, Faustina, Chico Preguiça, Lamparina, Pandareco, Chiquinho e, principalmente, do trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona. Niskier, grande admirador da publicação, possui no acervo do Instituto Antares do Rio de Janeiro, do qual é diretor-presidente, quase todos os exemplares da O Tico-Tico. São 1.500 edições, da primeira, lançada em 11 de outubro de 1905, à última, em 1957. A publicação foi inspirada na revista francesa La Semaine de Suzette, e o seu nome era uma homenagem ao passarinho que, como informa o professor/colecionador, também é conhecido como maria-é-dia e maria-judia. Não podemos esquecer também que o passarinho serviu de inspiração para o compositor Zequinha de Abreu compor um dos clássicos do nosso cancioneiro, Tico-Tico no Fubá, esclarece Niskier.
O Brasil nas páginas de uma revista
Ainda segundo análise do professor, a revista teve a mesma importância que as obras de Monteiro Lobato, se levarmos em consideração que ambas lutaram pela valorização e reconhecimento de uma produção nacional, como coloca. Ainda entre seus méritos, encontra-se o fato de que a publicação impulsionou o hábito da leitura entre as crianças e jovens da época. Uma contribuição de suma importância, ainda mais num Brasil que, então, possuía uma população de analfabetos que chegava à casa dos 70%. A revista tornou-se a preferida do público por cinqüenta anos e definiu uma nova etapa na história da nossa literatura para crianças e jovens, volta o professor. O escritor Alberto Deodato, no seu livro Políticos e Outros Bichos Domésticos, assim definiu a magia que O Tico-Tico emanava: 'Aprendemos a odiar a prepotência lendo O Tico-Tico. A nos despir de qualquer preconceito de raça ou cor. A cultuar a mãe preta. A generosidade para com os humildes. A admirar heróis. A amar a pátria. A ter virtudes morais e cívicas'. Mesmo quando deixou de circular, a publicação continuou influenciando as gerações seguintes. Realmente, os heróis da revista fizeram a alegria da meninada durante meio século e abriram caminho para outras experiências de maior vulto no campo das histórias em quadrinhos e da literatura infanto-juvenil, lembra Niskier. De fato, mesmo com a invasão dos heróis truculentos do imaginário norte-americano - que, desnecessário lembrar, tomou o mundo de assalto com seus homens-aranha, homens-morcego e super-homens -, as aventuras pueris dos engraçados personagens de O Tico-Tico ficaram na memória do País. O escritor Darcy Ribeiro disse, certa vez, que foi Mickey Mouse quem matou O Tico-Tico. Com efeito, a avassaladora chegada de personagens como os de Walt Disney fincaram bandeira no Brasil em termos mercadológicos, mas a tradição de cinqüenta anos plantada pela revista tinha, por sua vez, raízes bem profundas. Afinal, por que vocês acham que o trapalhão Didi, imortalizado na TV pelo comediante Renato Aragão, chamava seus três companheiros - Dedé, Zacarias e Mussum - de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, quando de suas pseudobrigas que divertiram crianças e adultos até meados dos anos de 1990?
Confissões de menino - O escritor Érico Veríssimo e a paixão pela revista O Tico-Tico Meu pai tomara pra mim uma assinatura da revista carioca O Tico-Tico. Estou certo de que suas estórias muito contribuíram para a germinação da semente do ficcionista que dormia nos interiores do menino. Através delas fiz amizade íntima com Chiquinho e seu cachorro Jagunço. Conheci também o azarento Zé Galinha, o casal Faustina e Zé Macaco. Segui as aventuras de Kaximbown na Pandegolândia. Foi O Tico-Tico que, através de uma série de estórias ilustradas, um de cujos heróis era o Conde de Cavaignac, me preparou o espírito para a leitura de Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, que eu viria a iniciar uns quatro ou cinco anos mais tarde, uma espécie de pórtico monumental para o fabuloso mundo dos romances de capa-e-espada. Quarta-feira era o meu dia mais esperado e feliz da semana, pois era às quartas que geralmente chegava a Cruz Alta o último número de O Tico-Tico. Eu costumava ir buscá-lo à livraria do Doca Brinkmann, um homem de barbicha alourada, olhos claros, atrás dum pince-nez erudito. Eu entrava na livraria com um certo temor no coração e perguntava com voz mal audível Chegou O Tico- Tico?. E ficava com os olhos, o coração, todo o meu ser, em suma, preso aos lábios do Seu Doca. Com sua clama impertubável, ele olhava em torno, lento, e depois, arrastando os pés, aproximava-se dos pacotes recém-chegados da agência do Correio e apanhava o número da revista, entregando-o ao alvoroçado assinante. Não infreqüentemente o livreiro informava: O Tico-Tico não chegou. Esta semana está atrasado. Minha decepção ante a terrível notícia tinha um caráter quase catastrófico. Como se teria livrado o bravo Conde de Cavaignac da cilada que os inimigos lhe haviam armado? (...)
Excerto do livro Solo de Clarineta, autobiografia de Érico Veríssimo publicada em 1973, pela Editora Globo
O Tico-Tico no Sesc Vila Mariana - Exposição encanta crianças e adultos com instalações, labirintos e muita informação
O projeto que pode ser conferido na unidade Vila Mariana do Sesc até dezembro foi trazido pelas mãos do professor Arnaldo Niskier, membro da Academia Brasileira de Letras e maior colecionador da revista O Tico-Tico. Ele tem a coleção praticamente toda, de 1905 a 1957, informa Elaine Mathias, técnica da unidade. A exposição, que tem curadoria do próprio Niskier - quem mais? -, conta com a assessoria de Maria Eugênia Stein, responsável pela coordenação geral do evento. Eles se conhecem já há algum tempo e, revendo a coleção do professor Arnaldo, tiveram essa idéia de reviver toda a época da revista, volta Elaine. Foi criado, então, um projeto completo, com o objetivo de fazer as novas gerações conhecerem a publicação - além, claro, de proporcionar aos mais velhos uma volta no tempo. A exposição é dividida em módulos, cada um dedicado a um aspecto abordado. Da fachada, onde se pode ver uma enorme capa de uma das edições da revista, o visitante inicia a viagem: passa por um labirinto de adivinhações, com jogos ao ar livre; um hall de exposições, onde os cinqüenta anos de história são revistos; peças teatrais na praça de eventos; ilustrações, homenagens e originais, no Atrium; e ainda uma mostra paralela de filmes no auditório da unidade - levada também ao CineSesc. As crianças adoram a parte das peças teatrais, comenta Elaine. Elas são trazidas por suas escolas e são acompanhadas por uma equipe de monitores. Os adultos também comparecem. Só que eles se atêm mais aos textos, enquanto as crianças querem mais é brincar mesmo. Mas por isso é importante a monitoria, que passa com elas pelos módulos, mostra as coisas e explica do que se trata, uma vez que certas partes da exposição exigem mais leitura mesmo. Um dos módulos mais interessantes para as novas gerações - acostumadas a obter informações via tela do computador - é a atividade desenvolvida na sala de Internet Livre da unidade. Lá, no formato intranet, ou seja, disponível exclusivamente nos terminais ali dispostos, os interessados podem acessar dados sobre o meio século de O Tico-Tico nas páginas eletrônicas criadas a partir da digitalização dos 1.500 exemplares de Arnaldo Niskier. Os criadores da revista resolveram lançá-la justamente para formar leitores. E conseguiram. E a intenção agora é reavivar isso, conclui a técnica.
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