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Uma vida na ponta dos pés

Amor e guerra na fabulosa trajetória de Renée Gumiel, umas das grandes damas da dança moderna mundial

É impossível, ao olhar para Renée Gumiel pela primeira vez, não se perguntar como essa senhora tão franzina, de fala baixa e passos lentos pode ainda subir ao palco e hipnotizar a platéia com os movimentos da dança moderna, para a qual dedicou toda a sua vida. Da aparente fragilidade emerge uma força vital, disse o amigo e bailarino Ismael Ivo, em depoimento publicado no catálogo em homenagem aos 90 anos de Renée, comemorados no Sesc Vila Mariana com um espetáculo. Mesma força que a fez dançar por palcos do mundo inteiro, fugir dos nazistas e lutar junto às forças da Resistência Francesa na Segunda Guerra, criar seus filhos, introduzir o balé moderno no Brasil quando somente a dança clássica era valorizada por aqui e ainda vencer dois cânceres. Depois de tudo isso, ela ainda dança. Para seus alunos, no Teatro-Escola Célia Helena, ou para o público, nos espetáculos de Os Sertões, dirigido por José Celso Corrêa. Finalizado o encontro, de onde saíram os trechos desse depoimento, é impossível não se perguntar: e como não poderia?

O começo
Nasci em Saint Claude, na França, em 1913. Minha mãe, Marguerite, faleceu quando eu era muito nova, e meu pai, Maximiliano, um industrial do ramo de cachimbos, foi morto poucos anos depois pelos nazistas. Fui para a Inglaterra aos 17 anos, onde estudei durante três anos na escola Balé Kurt Joos, em Devonshire. O nazismo já vinha rondando a Europa e alguns artistas da dança, como Rudolf Laban e o próprio Kurt Joos, foram viver na Inglaterra, onde fundaram essa escola. Nela, tive formação completa em dança moderna, teatro, música e artes plásticas. Logo após obter o diploma, fui contratada para dançar em Milão, sob a direção de Jia Ruskaya, uma dançarina que foi muito famosa. Após seis meses, integrei o corpo de dança da Compagnia della Cittá, de Florença, onde trabalhei com muitos bons profissionais. Nessa época, dancei em Veneza, Verona, Edimburgo, fiz turnês pela Áustria, Checoslováquia e pelos países dos Balcãs. Enfim, me apresentei um pouco por toda parte da Europa, inclusive em Paris, onde dancei A História do Soldado, um espetáculo solo que teve Stravinsky como regente. Com essa companhia viajávamos por todo o continente durante quatro meses por ano. Em 1938, me apresentei em Les Parents Terrible, espetáculo coreografado e dirigido por Jean Cocteau, que estreou em Florença. Foi uma época efervescente, fantástica, a cada dois dias eu conhecia um novo regente, sempre os melhores músicos da Europa. Mas pouco depois disso recebi um telefonema de meu pai. A guerra estava chegando, dizia ele. Eu precisava voltar para a França.

Guerra e resistência
Cheguei ao meu país em agosto de 1939 e a guerra começou no mês seguinte. Na verdade, até maio de 1941, a situação ainda não estava tão pesada. Foi quando Hitler ocupou a Bélgica, a Holanda e depois a França que o conflito realmente começou. A última vez que dancei nesse período foi em 1942, em um recital beneficente na cidade de Perpignan. Dividi o palco com Pablo Casals, que considero o maior violoncelista do mundo. A renda do espetáculo foi para os refugiados da Holanda, da Bélgica e do norte da França, região que já estava ocupada pelos alemães. Quando eu me preparava para voltar de Perpignan, meu pai ligou e, novamente, pediu que voltasse para casa o mais rápido possível, pois naquele dia os nazistas tinham ocupado quase toda a França.
Dali para frente, vimos o cenário típico de uma guerra: bombardeios, gente sendo deportada e jovens deixando suas famílias para lutar. Na Resistência Francesa, meu codinome era Berthe, que me foi dado pelo arcebispo de Toulouse. Um dia, naquele mesmo ano, escutei um chamado pela rádio BBC de Londres, que dizia para eu fugir imediatamente para a capital inglesa ou para a parte da França que estava livre dos nazistas, sob o comando do general Charles de Gaulle. Resolvi deixar o país, mas fui presa na Espanha, quando tentava sair da França atravessando os Pirineus a pé. A prisão ficava na cidade de Figueredo e havia praticamente só mulheres e crianças, pois os homens capturados conosco foram enviados aos campos de concentração ou assassinados ali mesmo. Fiquei presa por um mês, quando os nazistas decidiram me enviar novamente à França, mas eu fugi. Era noite, não sabia nem onde estava, e pela segunda vez cruzei os Pirineus a pé. Fui presa em Gerona, na região da Catalunha, e fiquei mais um mês no cárcere. Depois desse período, as mulheres foram enviadas a uma hospedagem e os homens que não foram mortos, novamente a um campo de concentração.
Éramos vigiadas todo o tempo pelos policiais, mas como os espanhóis adoram dança eu fazia performances para eles. Uma delas foi ao som de Ave Maria de Gounod. Em troca, consegui uma cama para dormir, circular pela prisão com mais liberdade e obter comida na enfermaria. Tive sorte de não ter sido assassinada quando era prisioneira, pois ouvíamos durante a noite o barulho dos tiros que fuzilavam os homens, maridos das mulheres presas comigo. Muitos deles eram perseguidos por lutar contra Franco na Guerra Civil Espanhola. Consegui escapar pela segunda vez porque um fascista espanhol me ajudou. Um tempo depois ele se tornou meu cunhado, era irmão do meu marido.
Fui para Casablanca, no Marrocos, e lá continuei lutando com a Resistência. Voltei para a Espanha para me casar, mas no fim da guerra fomos à França. Era inviável viver na Espanha sob a ditadura de Franco. O pós-guerra foi muito duro, havia pouca comida e o dinheiro na França não possuía nenhum valor. Para comer, trocávamos roupas e outros objetos por alimento. Foi assim durante dois anos.

A vinda e a ida
A primeira vez que vim ao Brasil foi em 1957, a convite de Mário Pimentel Brandão, então embaixador do País em Paris. Fiquei até 1960, mas foram três anos muito difíceis, pois a dança moderna ainda não era conhecida por aqui e meu trabalho não foi muito bem recebido. Por outro lado, a aridez do cenário da dança no País me deixara muito insatisfeita. Naquela época, eu tinha 44 anos, já havia dançado com grandes companhias da Europa e conhecido os músicos e maestros mais prestigiados. Foi complicado adaptar-se em um lugar onde a dança moderna era tão pouco apreciada. No tempo em que fiquei aqui, fui coreógrafa para uma série de programas da TV Tupi e cheguei até mesmo a abrir uma pequena escola de dança em São Paulo, mas devido a essa difícil adaptação resolvi voltar à Europa em 1960. Em Paris novamente trabalhei com Stockhausen e montei La Respectuese, de Jean Paul Sartre.

Para sempre
Não tive saudades do tempo em que vivi aqui, mas eu me cobrava ir à luta, conseguir introduzir a dança moderna no Brasil. De certa forma, era um desafio. Voltei em 1961, abri uma escola de dança chamada Ballet Renée Gumiel. Funcionou até 1988 na rua Augusta, em São Paulo. Em 1968, inaugurei outra escola no Brooklyn. Nesse mesmo ano, fui coreógrafa do espetáculo Momento 68, patrocinado pela Rhodia. A essa altura, meu trabalho já era reconhecido aqui e trabalhei com os profissionais mais prestigiados da dança, do teatro e da música no País. O elenco era extraordinário, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, além do texto de Millôr Fernandes.
Pelos meus cálculos, nos 27 anos que duraram minhas escolas, 16 mil alunos passaram por elas. Gente do Brasil inteiro veio conhecer a dança moderna. Os maiores bailarinos como Marika Gidali, Peter Hayden, Ismael Ivo e Victor Aukstin aprenderam comigo. Fiz muitos deles deixar a dança clássica para abraçar a moderna. Resolvi fechá-las após saber que estava com câncer no intestino, em 1988. Dois anos depois descobri outro câncer, dessa vez nos seios. Mas sobrevivi a eles e até hoje vou à luta pelo balé moderno.