Seminário internacional discute a importância do esporte na sociedade e seu papel na inclusão social

Eu nasci em uma fazenda de um instituto agronômico em Campinas. Nasci na roça. Minha mãe costumava dizer que a gente vivia de um modo meio selvagem. Desde criança, minhas brincadeiras prediletas eram apostar corrida e pular 'pauzinho', mas eu nunca imaginei que aquilo fosse me levar tão longe. Na quinta série eu fui para uma escola do Estado e num daqueles jogos colegiais eu me destaquei no atletismo. Através do esporte eu consegui sair do meio do mato e ir para a Europa, conhecer o mundo. Essa é a brevíssima biografia de um dos orgulhos brasileiros do esporte, a recordista de heptatlo (competição que une sete modalidades) Conceição Jeremias. Atualmente, a atleta, que continua na ativa participando de torneios máster, trabalha na prefeitura de sua cidade natal, num programa no qual atua junto a crianças carentes. Eu passo a elas como o esporte pode abrir portas para o futuro, entusiasma-se. Elas já conseguem ver uma importância maior na atividade esportiva, que vai além da parte física: a oportunidade de melhorar de vida. Conceição conta que grandes talentos já despontam nesse trabalho e que alguns já chegaram a participar do campeonato pan-americano de atletismo, no Canadá. Certo. De fato, o esporte tem se mostrado como uma chance de muita gente sair do anonimato, conquistar seu lugar na sociedade e, em casos extremos, até mesmo conquistar fama e fortuna. Mas é justamente por isso que o assunto merece cuidado. Apresentar o esporte como sinônimo de ascensão social e financeira pode surtir um efeito contrário ao que se espera: em vez de para todos, esse tipo de benefício vem para alguns. Não que a história de perseverança e determinação de Conceição Jeremias não deva servir de inspiração, mas é importante ter em mente que inclusão social não é se destacar na sociedade, mas, na verdade, fazer parte dela. O esporte pode ajudar nessa conquista e os meios para isso foram discutidos no Seminário Internacional Esporte & Sociedade, uma iniciativa do Sesc São Paulo e da Prefeitura Municipal de São Paulo, por meio de sua Secretaria de Esportes, Lazer e Recreação. O objetivo (do seminário) é sistematizar o que vem sendo feito em várias cidades sobre inclusão social por meio do esporte, informa Nadia Campeão, secretária de Esportes. São muitas experiências positivas que precisam se tornar coletivas, para que os projetos se alastrem e possam atender muito mais pessoas em vários países. O encontro se propôs a analisar e debater idéias, caminhos, métodos, tendências e experiências relativas à cidadania, além de refletir sobre as políticas públicas de esporte e cultura. É indispensável vislumbrar-se uma efetiva implementação de ações capazes de responder às demandas sócio-culturais de crianças, jovens, adultos e idosos, analisa Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo. E uma das vias pressupostas deste exercício de cidadania seria a prática habitual, o aprendizado e a manutenção de políticas esportivas, mas também multidisciplinares, destinadas, sobretudo, às crianças e adolescentes.
Escola aberta A pertinência da discussão que aponta o esporte como uma das maneiras de inserir um indivíduo na sociedade e dar a ele a chance de desenvolver suas potencialidades se revela quando se analisam os números da exclusão. Segundo dados da Unesco, existem 24 milhões de jovens no Brasil entre 15 e 24 anos. E são eles as principais vítimas dos altos índices de violência que assolam o País. Através de nosso trabalho pudemos detectar algumas causas da violência entre jovens dessa faixa etária, contou o sociólogo Jorge Werthein, representante da Unesco no Brasil, em depoimento dado à Revista E de setembro. Entre as principais razões está, sem dúvida, a exclusão social. Dos sessenta países mais violentos analisados pelo organismo, o Brasil ocupa um preocupante terceiro lugar no número de mortes de jovens, atrás da Venezuela e da Colômbia. O que temos de entender é que, se não combatermos esse problema, o Brasil não deixará de ter posição entre os lugares mais violentos do mundo. Werthein alerta ainda que medidas preventivas são mais eficientes e baratas do que as punitivas. Para se ter uma idéia do custo de uma política repressiva, a internação de um jovem na Febem custa ao Estado de 2.500 a 3.000 reais, informa. Do outro lado, estão ações simples que poderiam alterar sensivelmente tais números, como a parceria firmada recentemente entre a Unesco e o governo do Estado de São Paulo, que consiste na abertura das escolas aos finais de semana para as crianças e jovens de baixa renda, dando a eles acesso ao lazer, cultura e esporte. Werthein revela que iniciativas semelhantes em estados como a Bahia e Pernambuco mostraram que o custo com cada aluno mantido nas dependências escolares aos sábados e domingos é de apenas 1 real. É um caminho óbvio, mas até agora a falta de políticas públicas no Brasil não nos permitiu percorrê-lo, lamenta o sociólogo. Segundo o professor Lamartine Pereira da Costa, da Universidade Gama Filho e representante da TAFISA (Trim & Fitness International Sport for All Association) no Brasil - uma organização mundial voltada ao conceito de esporte para todos -, a atividade esportiva aparece nessa empreitada como vetor para dar apoio às mais diferentes funções sociais do indivíduo. Segundo ele, o esporte não pode ser visto como cura para a violência, mas seu caráter agregativo é, sem dúvida, um bom aliado. A violência tem várias origens, dependendo de cada lugar em que se manifesta, analisa. Ela, ao contrário do esporte, é sempre específica e localizada. Mas o esporte agrega qualquer grupo e isso resulta numa redução natural da violência. Ainda segundo ele, o uso da atividade esportiva para esses fins pode se dar de maneira espontânea - aqueles amigos que se juntam para o futebol dominical - ou ainda de maneira mais orientada - possivelmente o trabalho que deveria ser feito nas aulas de educação física das escolas, por exemplo. Neste particular o esporte é único: talvez ele seja o meio universal de agregação de pessoas, pois em qualquer cultura esta atividade se manifesta e integra por sua própria natureza.
Esporte e competição Um ponto que divide opiniões quando se lida com o conceito de esporte para todos é a competição. Ela, por si só, remete à diferenciação e ao destaque do melhor, do mais rápido e do mais forte. Por outro lado, não há atividade esportiva sem ela. Está posto o impasse. No entanto, o antropólogo Roberto DaMatta, um dos convidados do seminário, ilustra com sua experiência pessoal um quadro que ele não enxerga como problemático. A minha experiência com o esporte foi bem positiva, conta. O esporte, no ginásio, me deu camaradagem, espírito de competição, lealdade ao time, persistência e popularidade. No caso do Brasil o esporte é um belo instrumento de valorização da auto-estima, de concretização do País como algo visível, de excelência do atleta brasileiro e, vale repetir, do ideal de igualdade na disputa. O esporte, num sentido muito vivo, torna a competição e seus sentimentos mais negativos em algo positivo. O nadador Ricardo Prado, medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984, compartilha da opinião - e não poderia ser diferente, diga-se de passagem. Eu não acho que competição seja ruim, começa. Eu competi desde pequeno e acho que a vida cada vez mais mostra para a gente que nós estamos competindo o tempo inteiro. Ricardo faz parte de um projeto que trabalha com sessenta crianças de 7 a 14 anos no Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, no Parque do Ibirapuera, onde coordena, junto com outros professores, aulas de natação, leitura, redação e até informática - estas dadas na sede no projeto, no bairro do Butantã, onde se concentram mais cem jovens. Baseado em seu trabalho, Ricardo sente-se à vontade para afirmar que a competição entre a garotada não tem se mostrado um problema. O caráter social do trabalho termina por falar mais alto. O desafio é cada um se achar naquilo em que é competitivo, avalia. E uma vez isso achado, é preciso desenvolver. Acho que competitividade e trabalho social podem 'casar' num mesmo projeto. Não existe progresso sem pressão. Se você der tudo na mão, a pessoa não irá lutar para ter. E competir é lutar pelas coisas que são valiosas para você, afirma.
A mídia e o esporte - Bernardo Ajzenberg Incomoda-me, na mídia esportiva, a postura quase generalizada de acomodamento, de permanecer atrás, e não à frente, do seu próprio público. Há muito de retrospectiva e pouco de antecipação. Nesse sentido, algumas raras experiências merecem valorização: dizem respeito a aspectos estruturais de funcionamento do esporte e de suas instituições, à valorização de fatores mais objetivos de avaliação do desempenho de atletas ou de equipes, à atenção para aspectos de ética esportiva, de eventuais desvios de conduta de dirigentes. Fazer a cobertura de esporte, hoje, não deveria ser mais apenas o relato dos eventos ou o comentário, a análise sobre eles. Isso é necessário, claro. Mas a sociedade, hoje, exige mais. Exige transparência no esporte e cobra qualidade. Uma qualidade, bem entendido, capaz de despertar paixões - natureza do esporte -, mas também, às vezes, indignação. De modo geral, a mídia ainda aborda o universo esportivo de forma bastante emocional, pouco objetiva. Dessa forma, ganha audiência, pois se mistura ao público, mas perde, creio eu, em qualidade. Não consegue estar à frente do público, o que deve ser uma das missões do jornalismo. O público perde, a meu ver, quando a mídia o municia apenas com aquilo que ele, de uma forma ou de outra, já conhece. A mídia tem estado excessivamente atrelada a interesses comerciais (patrocínios, audiência, faturamento) relacionados aos esportes. Não é por acaso que os esportes ditos amadores ganham pouquíssimo espaço, mesmo aqueles que são praticados com alto nível de qualidade no País. Por outro lado, esses meios não agem, nesse quesito, de forma diferente daquela que age a sociedade como um todo. Não creio que se deva sacrificá-los especificamente. Eles me parecem refletir uma espécie de deterioração de valores muito mais ampla. Claro que, devido ao poder de reverberação de idéias e comportamentos, há, na mídia, um peso particular, mas a causa do problema, a meu ver, não reside nela (mídia), e sim na valorização mais ampla de imagens que apenas supostamente têm a ver com felicidade, bem-estar, vida saudável.
Bernardo Ajzenberg é jornalista e ombudsman da Folha de S. Paulo
Além das aulinhas de natação - Ricardo Prado Desde o início deste ano, eu fui convidado para trabalhar num projeto chamado Projeto Solidário Run and Fun, que é voltado a crianças de uma comunidade carente da favela San Remo, perto da USP. Uma iniciativa que atende cerca de 160 crianças e que partiu de um amigo meu, Mário Sérgio Andrade Silva (campeão carioca, paulista, e brasileiro de natação de 1980 a 1988). Ele começou com uma equipe de corredores. Ele é técnico de corrida e quando ia treinar na USP via alguns garotos que cuidavam dos carros do pessoal que ia correr por lá. Certa vez ele perguntou para esses garotos se eles não queriam fazer aula de corrida. Alguns se interessaram e foi assim que surgiu a primeira turminha desse projeto. Neste ano eu consegui um espaço no Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, no Parque do Ibirapuera, e estou ensinando natação para eles, que é uma coisa que eles nunca teriam chance de fazer. Quanto mais a gente se envolve, mais a gente percebe que não pode só ficar nas aulinhas de natação. Alguns têm dificuldade com leitura, não sabem fazer conta - apesar de estarem na quinta ou sexta série. Assim, os profissionais que estão com eles cada vez se envolvem mais. Agora, eles já chegam mais cedo, fazem aula de leitura; temos uma pequena biblioteca da qual eles pegam livros emprestados, eles têm concurso de redação, escrevem sobre algum tema que a gente coloca e essas coisas. Na verdade, o trabalho não se limita só à natação, e o envolvimento de quem lida com eles cada dia é maior. O esporte é o que pode vir a proporcionar uma grande oportunidade a eles. Por exemplo: lá no Ibirapuera, eu faço parte do Projeto Futuro, um grande programa/alojamento com noventa atletas. Essas crianças, que aprendem natação, podem um dia, se elas se dedicarem e mostrarem aptidão, fazer parte de um projeto desses: morar de graça, comer de graça, estudar de graça, treinar de graça e fazer disso, quem sabe, até a sua profissão. Ou seja, o esporte não ajuda só no desenvolvimento da dedicação, perseverança, e todos esses atributos que a gente está acostumado a associar de maneira tão chavão, mas também oferece oportunidades que crianças pobres não teriam.
Ricardo Prado, medalha de prata nas Olimpíadas de 1984 em Los Angeles, participa do Projeto Solidário Run & Fun
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