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Os incontados: uma imagem da Colômbia
Espetáculo, instalação e bate-papo integram a programação do grupo colombiano Mapa Teatro, no Sesc Pinheiros. Os incontados - Um tríptico terá apresentações de 20 a 23/07, após passagem pelo FIT Rio Preto.
Saiba mais sobre a montagem neste texto crítico de Daniele Avila Small:
Uma Imagem da Colômbia
Os incontados – Um tríptico é a terceira parte de uma trilogia que trata de três faces da violência política na Colômbia. A violência é pensada neste projeto multidisciplinar a partir de três faces: o narcotráfico, a força paramilitar e a guerrilha. Também se divide (e se acumula) a percepção da violência em três instâncias: o público, o privado e o íntimo. O eixo específico de pensamento sobre a violência é sua relação com as festas. Podemos perceber então que o espetáculo é feito de várias camadas de pensamento e de referências, constituindo-se de registros visuais, sonoros e performativos diversos, que descortinam e atravessam narrativas.
A peça reúne rastros das outras duas partes da trilogia, Los santos inocentes e Discurso de un hombre decente. Isso se dá tanto na cenografia, que revela três cenários que aos poucos se integram, quanto na dramaturgia, que lança mão de trechos das outras duas peças para compor esta que é a terceira parte. É uma bagagem que a peça traz e compartilha com o espectador para uma visada complexa da Colômbia. Não se trata de uma narrativa simples dos fatos históricos e da vida política do país, mas de uma elaboração crítica e criativa a partir de dados do real. Não há uma exposição didática ou explicativa para informar o espectador sobre determinados assuntos e também não há dramatização de situações de modo realista. A dramaturgia é ensaística, não se prende a cronologias e demandas de produção de sentido unívoco. A peça deixa lacunas para o espectador entrar com sua visão, seu repertório, seus afetos. Pois é desse mesmo material que é feito o espetáculo: da visão, do repertório e dos afetos dos artistas e testemunhas envolvidos.
Para dar continuidade a alguns debates já iniciados no contexto do festival, podemos prestar atenção no modo como a obra trata da violência sem espetacularizar nem fetichizar o tema, mesmo com um grande investimento na visualidade. É preciso separar: elaboração visual e espacial é uma coisa, espetacularização é outra. A peça do Mapa Teatro conta com dispositivos cenográficos que são bastante sofisticados porque funcionam como dramaturgia, não simplesmente porque enchem os olhos. O trabalho sobre o espaço é parte indissociável do que está sendo proposto como reflexão. A cenografia, a iluminação, os figurinos e os vídeos não são dados externos, mas elementos que tensionam os conteúdos discursivos.
Um dos fios condutores da dramaturgia é uma fala na primeira pessoa do singular, a voz de uma mulher que nos situa em sua memória e na sua abordagem crítica. Outro fio é a presença de um "arquivo vivo", o músico de uma banda que tocava nas festas de Pablo Escobar, cuja história é contada nas legendas. Essa presença, que poderia ser carregada de uma aura de realidade, não é usada como fator indutor de comoção. Há estratégias de encenação que protegem a peça de deslizar para qualquer tipo de registro apelativo, um risco que se corre quando se coloca em cena elementos do real. Até mesmo com a presença das crianças, que constituem ainda outro fio que se desdobra do depoimento pessoal que conduz o nosso olhar.
Tanto o músico-testemunha quanto a criança que permanece em cena como uma espectadora que transita entre temporalidades distintas sustentam a performatividade da irrupção do real que suas presenças provocam. Assim, contribuem para que nós, espectadores, estejamos sempre com um pé no real enquanto o outro pisa no terreno da imaginação e do pensamento. Os arquivos de imagens documentais também são usados com certa parcimônia, mesmo sendo muito importantes para a dramaturgia. Tudo isso forja uma ética do trabalho, algo que (como já mencionei em outra crítica) podemos chamar de ética do cuidado, como o faz o pesquisador espanhol José A. Sánchez.
Me parece que mesmo diante de uma realidade desanimadora, o espetáculo não se fecha em um pessimismo niilista, não se enclausura em uma ideia de crítica ou de denúncia do que já é criticado e já é sabido. O desenho que Os incontados faz do país não é uma imagem conclusiva, acachapante. A peça nos faz querer olhar mais atentamente para as complexidades sociais, culturais e políticas da Colômbia e, por aproximação geopolítica, do Brasil também.
E, para além de toda relevância simbólica e toda pertinência ao momento em que vivemos na América Latina, Os incontados é uma obra de arte fora de série. Vale perguntar (não como comparação, mas como provocação) como temos falado sobre o Brasil nos espetáculos que se propõem a essa tarefa. E como podemos pensar criticamente as diferentes imagens de Brasil na programação do festival.
Por Daniele Avila Small (RJ). Doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, crítica, dramaturga e diretora de teatro. Idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de Crítica, integrante do coletivo Complexo Duplo e da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.