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Ficção Inédita
A despedida da venerável senhora

Ruy Tapioca

Encarapitado no alto da ladeira da Lama, o sobradão avoengo avultava, todo iluminado, à boquinha da noite. O movimento de entrada e saída de pessoas, ali habitualmente intenso ao final das tardes das sextas-feiras, reduzira-se a escassos visitantes. Na sala principal do casarão, rodeado por cadeirinhas encostadas às paredes, sobressaía um esquife, assentado sobre uma essa improvisada.
Chovia a potes. O farmacêutico, enfiado num terno preto mal-ajambrado sobre o corpo, recendente a naftalina, assomara à porta. Retirou a palheta da cabeça, sacudiu a água do guarda-chuva e o entregou a uma interna do casarão, que o recepcionara beijando-o nas faces. Não fora o primeiro a chegar. O intendente e o juiz de paz cavaqueavam em voz baixa, refestelados em poltronas, no canto oposto da sala. O recém-chegado os cumprimentou com discreto movimento de cabeça. Ato contínuo, postou-se diante da urna funerária, pálpebras cerradas, queixo encostado na gravata, e engrolou uma jaculatória. A defunta, rosto emergente de uma cornucópia de flores atulhadas no caixão, exibia uma expressão viva, nada consentânea com um rigor mortis: faces empoadas, rímel nos olhos fechados, ruge carmim nas maçãs, batom vermelho nos lábios, semelhava um contralto de ópera de Verdi, desmaiada de inopino, após receber infausta notícia.
Passados alguns instantes, um rumorejo à porta principal anunciara nova presença: reclamando do tempo, o notário da cidade, habitué da casa, foi recepcionado por um grupo de internas, chorosas. Beijou-as todas, às faces, à sôfrega, lamentando o passamento da falecida. Perda irreparável, repetia a umas e outras, enquanto as osculava. Em seguida, ressumbrando ar desconsolado, reverenciou a defunta em mesuroso silêncio, a cofiar o cavanhaque grisalho; prestada a homenagem, foi juntar-se ao grupo de presentes, entregues a laudatórias conversas sobre a figura da finada.
Enquanto algumas internas revezavam-se no carpimento à falecida, outras serviam bandejas providas de cálices de aguardente aos circunstantes, em constantes ires-e-vires pela sala, provocando deliciosos ruge-ruges com seus vestidos roçagantes.
Expressões graves, os presentes lamentavam a irreparável lacuna que a defunta deixaria. O intendente, voz cava, charuto aceso entre os dedos, evocara os inestimáveis serviços por ela prestados à cidade (Homessa! Por que não dizer: à província!), notadamente na solução de iminentes e gravíssimos conflitos entre adversários políticos, inimigos reconhecidamente inconciliáveis. Quantas pendengas de morte haviam sido naquela sala conjuradas, após a falecida sempre conseguir os persuadir a, antes de ordenarem violências e carnificinas aos seus bandos de alugados, irem exonerar-se, preliminarmente, de suas excitações sensoriais, nos cômodos do andar superior, rememorara, mãos apoiadas no castão da bengala. O juiz de paz, cara patibular, preferira destacar a impagável dívida, contraída por inúmeros lares daquela cidade, conseqüência das eficientes e pedagógicas iniciações amorosas a que ali fora submetida a maioria de seus honrados patriarcas, em profícuos encontros para práticas de jogos fesceninos, tão necessários aos alívios do corpo e à harmonia das famílias. Nesta casa, arrematara visivelmente emocionado, evitou-se o desfazimento de incontáveis lares, hoje sólidos e consolidados, mercê da eficiente atuação de suas internas. E por que não falar de suas higiênicas preocupações profiláticas? interviera o farmacêutico. Desafio qualquer dos senhores a apontar um só caso conhecido de mal-de-amores entre estas paredes adquirido! Até mesmo de um mísero inseto anopluro, de região pubiana, aqui flagrado ou contraído! complementou, enérgico. O escrivão público ainda cofiava o cavanhaque, quando resolvera contribuir com uma homenagem à finada. Devo a ela minha solteirice empedernida, gaguejou, sem largar a barbicha pontiaguda. Jamais me abalancei por mulheres, e a ela devo este aprendizado, que não aceitassem a troca de amores exclusivamente sob pecúnia. Até hoje, permaneço preso a esse inarredável princípio, confessou, macambúzio.
De súbito, o grupo interrompera os elogios fúnebres: o comandante do tiro-de-guerra, abotoado num fardamento engomado, adentrara a sala, passos vigorosos. Dirigira-se ao féretro e, sem detença, batera os calcanhares, com estrépito, persignando-se, abatido, frente ao esquife. Não conseguindo conter o choro, o militar fora acudido por três internas que, amparando-o pelos braços, conduziram-no até as cadeirinhas da sala. Entre soluços, o comandante declarara ali estar representando os integrantes do destacamento, impossibilitados de prestar aquela última homenagem à falecida. Acalmado pela atenção que lhe dispensara a interna de sua preferência, o militar revelou a enorme gratidão que o tiro-de-guerra dedicava àquela casa, única alternativa, em léguas de arrabaldes, para mitigação não-solitária das necessidades da carne.
O frufru dos vestidos das internas intensificara-se, na sofreguidão de servir novas rodadas de cálices de aguardente, acompanhados de cumbucas providas de amendoins torrados. Perto da hora grande, conversas já sonolentas, atmosfera impregnada de olores de álcool e charuto, três inesperados visitantes deram o ar de suas graças: o proprietário do hebdomadário local, o regente da lira e o chefe dos correios. Vinham os três, já meio altos, expulsos do botequim da praça do coreto, onde copiosa chuva ali os retivera, justificara o jornalista, escandindo as sílabas das palavras, ciciadas em voz arrastada. A irmã mais nova da falecida, sucessora do negócio por testamento, ordenara à interna que servia uma bandeja de cálices de aguardente, retornar à copa e voltar com xícaras de café preto para os três recém-chegados. A jovem, incontinenti, tentara cumprir a ordem a tempo, mas o jornalista conseguira, com incrível agilidade, surrupiar um cálice da bandeja, cujo conteúdo jogou goela abaixo, de um só gole. Amparados por internas, os três aproximaram-se do corpo da defunta, e ali permaneceram, por algum tempo, ruminando palavras ininteligíveis, segurando as bordas do caixão. Mal se sustentando em pé, o jornalista resolvera fazer um discurso, à beira do esquife, enquanto o músico e o funcionário dos correios eram persuadidos a acomodarem-se nas poltronas, sob ostensivos olhares de reprovação dos presentes. Dirigindo-se ao cadáver, voz pastosa entremeada por soluços, o jornalista principiara a arenga enaltecendo a alta qualidade dos serviços prestados pelas internas daquela casa, em seu julgamento as mais eficientes profissionais das artes de alcova que jamais tivera notícia; recordara episódios de materialização de sonhos eróticos de expressivo número de jovens púberes, e, até mesmo, de inimagináveis e bem-sucedidas práticas amorosas de internas com cavalheiros, em idade já provecta, há muito desistidos daqueles jogos; evocara castidades ali renunciadas, timidezes perdidas, celibatos rompidos. Em linguagem alambicada, arrematara o aranzel com séria advertência aos políticos e governantes da cidade: tomassem vergonha na cara e se dignassem a adotar os princípios e virtudes de exação, dignidade e elevada noção de espírito público, naquela casa sempre praticados.
O intendente, até então calado, estomagara-se, carótida aos pulos: batera com a ponta da bengala no assoalho, vociferando imprecações contra o jornalista, acusando-o de literato bebum, jornaleiro de imprensa marrom, desocupado conservado em cachaça. Ao ameaçar levar a mão ao coldre, preso à cintura, o intendente fora contido pelo juiz de paz e pelo comandante do tiro-de-guerra, iniciativa que impedira o político, não sem alguma resistência, de consumar o gesto que intentara contra o boquirroto periodista.
Um trio de internas, com esforço incomum, havia cortado um dobrado para conseguir arrastar o jornalista até a copa, só logrando êxito após a promessa de lhe servir generosa dose de vinho do porto, lá guardado para grandes ocasiões.
Nova rodada de café e de cálices de aguardente foi servida aos convidados, providência que tivera o condão de restabelecer a tranqüilidade ao ambiente.
Ainda agastado, o intendente resolvera retirar-se, logo em seguida, não sem antes fazer grande reverência à defunta, mão direita espalmada sobre o coração. Despediu-se de todos, dedicando especial atenção à sua interna preferida. Seguiram-no o juiz de paz, o farmacêutico, o escrivão público e o comandante do tiro-de-guerra, todos a lamentar compromissos inadiáveis, que os impediriam de comparecer ao sepultamento, na manhã seguinte.
À primeira hora da madrugada, o regente da lira e o chefe dos correios, ainda esparramados sobre poltronas da sala, ressonavam fortemente, quando foram acordados pelos seguranças do casarão, com enérgicas sacudidelas de corpo. Ao se recusarem a retornar para suas casas, foram ambos arrastados, suspensos pelas golas dos paletós e cintos e jogados na sarjeta, por meio de vigorosos pontapés nos fundilhos das calças. O jornalista, arriado em um canto da copa, ainda tentara persuadir, debalde, uma das internas a lhe servir uma dose saideira de aguardente. Fora igualmente compelido, pela dupla de seguranças, a abandonar o sobradão, sendo a ele dispensados os mesmos métodos empregados na expulsão dos companheiros de copo.
Na exclusiva presença da sucessora do negócio e das internas da casa, o corpo da venerável senhora foi encomendado e sepultado, na manhã seguinte, no horário aprazado, após singela e rápida homilia do pároco. Brilhava um belo sol de outono no cemitério local.

Ruy Tapioca é escritor, autor de A República dos Bugres
(Editora Rocco), entre outros livros