Postado em
Capa: Sábato Magaldi
Um homem de teatro
Por Miguel de Almeida
Sábato Magaldi lança novo livro, recebe prêmio por sua obra e se afirma como o mais importante crítico e historiador, em atuação, do moderno teatro brasileiro
Sábato Magaldi é um cara de sorte. Em Paris, no início da década de 1950, bolsista da Sorbonne, assistiu à estréia de Esperando Godot, de Samuel Beckett. Nesse período, viu ainda outras montagens que hoje fazem parte da história: o Teatro de Ação Popular de Jean Villar e as primeiras peças de Eugène Ionesco.
Sábato Antônio Magaldi tem sorte. Mas também possui um raro faro, um tipo de intuição que o coloca no lugar certo. Sempre ao lado da História. E que ele não desperdiça. Foi um dos primeiros críticos a assistir a Esperando Godot. Isso não seria nada - só uma baita coincidência, ou apenas sorte - se acaso não tivesse escrito uma crítica para o Diário Carioca reconhecendo se tratar de uma verdadeira obra-prima, dessas que se tornam referência, sinônimo e até adjetivo no cotidiano popular. Estava na platéia, percebeu a profundidade das questões catárticas colocadas pelo jovem irlandês Beckett - aquele que fora secretário particular de James Joyce e que não quisera casar com uma de suas filhas - e logo tratou de marcar posição ao dizer que acabara de presenciar o nascimento de um ponto focal na literatura dramática mundial.
Sábato tem sorte, e sabe fazer uso dela. Sabe que ela também precisa de ajuda, de trabalho, de suor. Foi assim, anos depois, ao pedir para ler antes da estréia o texto de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, então um desconhecido. Leu, suou frio de prazer e escreveu no mítico Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo: é uma obra-prima do teatro brasileiro, será um marco. De nada adianta estar no lugar certo, no momento certo, e chutar a bola para fora. À semelhança das metáforas futebolísticas - esporte que ele adora -, Sábato é um centroavante do tipo matador: de novo percebeu se tratar de uma rara maravilha produzida por autor brasileiro tão jovem.
Dito assim, tantos anos depois, parece coisa fácil. Não é não. Apenas quem possui a responsabilidade intelectual de estar sempre antenado, pronto para emitir uma opinião, ali na hora, no exato segundo em que se dá o evento, sabe a dificuldade do acerto. Não basta captar a grandiosidade do texto, a revolução proposta (neste caso) pelo autor, as inquietações introduzidas em marcas digitais: é necessário escrever em linguagem acessível, substantiva, com estilo, porque do outro lado haverá o leitor ansioso para traduzir os sinais recebidos. Ao escrever que se trata de um excelente texto, não estava somente produzindo um elogio, porém auxiliando a sensibilidade artística e política do país a avançar vários passos. Usando de suas poucas armas, a palavra, a lógica e o verbo, Sábato também fazia história, porque muitos críticos não perceberam em seu tempo o valor de certas obras, tratando assim de adiar um pouco a melhoria do tempo dos homens.
O teatro de São Paulo
O crítico, professor e historiador de teatro, um reconhecido boa-praça por sua centena de amigos exigentes, que irá receber em julho o Prêmio Multicultural Estadão, no Sesc Pompéia (veja programação no Em Cartaz), se encontra agora refestelado na poltrona de seu apartamento diante da paulistana praça Buenos Aires, em Higienópolis. É o quinto dia da Era do Apagão - e Sábato, de calça azul-escura e camisa branca, está falando de seu novo livro, Cem Anos de Teatro em São Paulo (Editora Senac, 454 págs.), escrito em parceria com a pesquisadora Maria Thereza Vargas. Inicialmente o texto nasceu como matérias especiais publicadas nas edições comemorativas do centenário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1974. "Nós ampliamos certas coisas. No jornal saíram quatro números e nós tivemos que espremer as coisas", conta. Cobrindo os palcos paulistas de 1875 a 1974, o livro registra como a arte teatral chegou na mais rica cidade do país vinda de barco, trem e ônibus de outros centros culturais importantes como Paris, Lisboa e Rio de Janeiro. Com menos de 30 mil habitantes, São Paulo era somente uma promessa de progresso. No início do ano de 1875, a cidade possuía apenas um teatro. Nesse 1875, o destaque ficou com a Companhia Lírica Dramática Espanhola de Zarzuelas. Dois anos depois, a polícia estabelece sua parceria com a criação artística e proíbe A Cabana do Pai Tomás (!), sob o argumento de o texto "ferir a escravatura, uma instituição legal". O teatro já então era um foco de discussão e contestação ao establishment, vocalizando as demandas da sociedade. As discussões políticas, a busca pelo texto, pela representação e pela encenação brasileiras permeiam as muitas páginas de Cem Anos de Teatro em São Paulo. Inclusive o exercício da crítica é motivo de observação no livro. Um texto não assinado surgiu no Estadão de 25 de março de 1895, a pretexto de estar realizando um balanço do teatro brasileiro da época: "Os atores em geral não têm a mais vaga noção do que seja a arte de representar, não sabem falar, não sabem vestir-se, não conhecem a história, nem os costumes, nem a língua, nem nada. São, com louváveis exceções, indivíduos a quem o ofício de sapateiro ou o cargo de agente de polícia rendia pouco e que se dedicaram ao teatro para ganhar mais". Pode até ser verdade, mas essa mesma crítica também não compreendera a sofisticação de Casa de Bonecas, de Ibsen, classificando-a de "irregular" e "superficial".
Ao se aposentar em 1988 (só naquele ano ele escreveu sobre 152 espetáculos), depois de 38 anos de crítica teatral, a maior parte dela exercida nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, Sábato Magaldi deixou uma fortuna crítica rara entre os intelectuais brasileiros. Sendo sempre exigente com as montagens, nunca ficando em cima do muro, mostrando às vezes como o diretor não soube aproveitar as oportunidades dramáticas oferecidas pelo autor, ou mesmo desmontando interpretações sem pé ou cabeça, o mineiro Sábato deixou o ofício diário da crítica reconhecido como uma instituição. Ele que fora catapultado ao teatro pelos textos de Ibsen, que escrevera uma peça no final da adolescência (Os Solitários, entregue para leitura ao amigo e poeta Paulo Mendes Campos: "Para gáudio da literatura dramática brasileira ele a perdeu") e que emprestara dinheiro para a produção de uma peça de seu compadre e escritor Lúcio Cardoso ("foi um fracasso total") - pois Sábato, eleito em 1995 para a Academia Brasileira de Letras, passou pela afirmação do teatro mundial e brasileiro e por todos os fortes embates ideológicos do século 20 sendo sempre um pirandeliano. "Eu acredito mais na relatividade das coisas. Eu não me identifico de jeito nenhum com a idéia de que a minha opinião é infalível."
Os companheiros mineiros
Companheiro de geração de escritores como Autran Dourado ("formou-se advogado na minha turma de 1949, no Rio"), Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino, entre vários outros, autor do clássico Panorama do Teatro Brasileiro, Sábato, sempre com sua escrita elegante, lutou bastante para se considerar o teatro uma arte autônoma e não apenas um ramo da literatura. "Isso eu acho correto do ponto de vista estético. Agora, de qualquer maneira, um texto preexiste. Acontece uma encenação e ele continua depois. A encenação acaba e ela só existe na memória da gente. Porque qualquer meio que procure fixar um espetáculo é completamente deficiente. Qualquer vídeo que você faça sobre um espetáculo teatral é uma porcaria. O melhor deles não presta. O importante é a memória que você grava do espetáculo. Mas o texto está lá. Então, escrever antes é lidar com um material que é literário. Aí você tem de usar um pouco o critério que é de crítica literária e um pouco a capacidade de ver se aquilo vai funcionar no palco. Se aquilo é teatro. Eu acho que você tem de ter uma certa intuição e uma certa experiência para poder julgar isso. Eu confesso a você que eu leio e raramente me engano. Às vezes, você tem uma surpresa porque você achava que a coisa iria funcionar muito e depois não funciona no palco, mas em geral, depois de muita experiência, você acaba tendo uma idéia. Eu não tinha a menor dúvida de achar que alguns textos seriam encenações importantes. Foi assim com peças de Ariano Suassuna, de Dias Gomes e tantos outros."
Ao ler o texto antes de assistir à montagem, Sábato não apenas deu ao autor sua condição de escritor pleno, como passou a contar com instrumentos mais apurados para avaliar a qualidade da encenação, do trabalho do diretor e dos atores. Seu gesto ajudou-o na tarefa de detectar a importância de cada dedo envolvido numa produção teatral, além de colocar sua experiência de leitor voraz e pesquisador idem cotejando a imaginação do diretor. Tal procedimento fez com que percebesse a importância definitiva de autores como Beckett, Ionesco, Guarnieri e Nelson Rodrigues. Corajoso, em pleno regime militar, não conseguiu ficar quieto quando a censura na década de 1970 proibiu Abajur Lilás, de Plínio Marcos, e escreveu um artigo pedindo a liberação da peça. Ele era secretário municipal de Cultura da cidade de São Paulo, professor da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo e já então uma instituição intelectual: "Eu acho que qualquer pessoa que leu o que eu escrevi na ocasião entendeu o que eu dizia. No fundo, o Plínio tinha usado na peça as diferentes posturas da sociedade em relação ao poder. Ao mesmo tempo tendo o cuidado de não dar arma para a censura".
Novos livros no prelo
A essa altura da conversa, se fez necessário literalmente acender um abajur na sala do apartamento. Todos aqueles nomes haviam invadido o ambiente decorado com belos móveis e muitos quadros na parede, além das peças em miniatura feitas pela escritora Edla Van Steen, mulher do professor. Aquelas lembranças e histórias consumiram parte da tarde, entrecortada pelo humor sutil de Sábato (um exemplo: "Você passa a ser um bom crítico assim que deixa de ser crítico atuante") e por sua narrativa recheada de detalhes, datas e nomes ("as pessoas às vezes me dizem que tenho uma excelente memória. É que na verdade eu anoto tudo nos meus cadernos").
Aos 74 anos, Sábato pode ter se aposentado da crítica jornalística, porém continua produzindo com vigor. Termina no momento Depois do Espetáculo (nome sugerido por Edla), uma reunião de alguns textos publicados na imprensa, mais conferências realizadas mundo afora. Em seguida, irá dar forma final à sua tese de doutorado, defendida em 1972, sobre o teatro de Oswald de Andrade. Continuará como sempre auxiliando a apurar a sensibilidade dos brasileiros.
Miguel de Almeida é jornalista