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Dança
O idioma do corpo

Dentro do projeto De Ponta a Ponta do Sesc Vila Marina, a bailarina e coreógrafa Denise Namura, radicada na França, falou da dança contemporânea e da sua comunicação com o público

Fui à França para entrar em contato com o trabalho que se realizava por lá e, por acaso, encontrei o tipo de linguagem com a qual gostaria de trabalhar: a mímica. Durante anos, desenvolvi várias técnicas de mímica, como a mímica corporal e a pantomima. Em determinado momento, achei que tinha chegado a hora de partir para o teatro. Eu sentia necessidade de falar, afinal, fiquei tantos anos muda... Desenvolvi uma linha mais física, no estilo dos poloneses. Assim, uma coisa acabou levando à outra: a mímica ao teatro e, depois, à dança. Dessa forma, o trabalho que faço hoje com a dança, por ser originário da mímica, possui certa particularidade. Acredito que ele seja uma dança muito expressiva, uma dança que conta história. É uma expressão que não é mais apenas mímica, mas carrega o gestual e a dinâmica dos movimentos. A própria comunicação que estabelece com o público se aproxima da mímica. Não é uma dança abstrata, apesar de ser totalmente preenchida de sentido e intenção.


A companhia

À Fleur de Peau existe há quinze anos e reúne um grupo que pesquisa linguagens diversificadas. Hoje, a união de várias linguagens (circo, mímica, teatro, dança) criou uma identidade muito particular para o grupo. O problema é que, na França, é preciso rotular aquilo que se faz. Há uma pressão para classificar um trabalho como dança, teatro, mímica, além de deixar bem claro quais são as referências. Para os padrões franceses, classifico meu trabalho como dança. No entanto, como é uma pesquisa que coloca o papel do intérprete na posição mais importante, em detrimento da linguagem que está sendo usada, quanto mais o corpo do intérprete está preparado, mais possibilidades se abrem: então, se ele for bailarino, ator e acrobata ao mesmo tempo, tanto melhor.
Nosso objetivo é fazer com que o intérprete realize a maior quantidade de funções possível. Ocorre que às vezes trabalhamos com pessoas que não têm o ecletismo necessário. Nesses casos, ao montar o espetáculo nos atemos às capacidades do intérprete, pois, dependendo da formação, ele tem muita dificuldade de realizar funções para as quais não foi treinado. Um bailarino, por exemplo, tem muita dificuldade de contar uma história. Não consegue conversar com o público, nem com palavras, nem com o corpo. E a nossa dança é baseada numa "conversa" corporal. Assim, o ator vai ter dificuldades; o bailarino, também; bem como o trapezista, que não consegue se expressar no chão.

Comunicação com o público
Quando criamos uma peça, pedimos para os intérpretes responder um questionário que se relaciona com o tema da peça. Esse questionário nos aproxima do intérprete como indivíduo e não como um mero corpo apto a dançar. Vou dar um exemplo: a peça Aller Retour Simple, cujo tema é a viagem, possui quatro personagens, representados por quatro atores. Pensamos o espetáculo como uma caracterização dos personagens a partir da experiência de vida dos próprios atores. Eu, Denise Namura, quando viajo, levo toda a minha vida... Eu sei que não vou precisar daquilo tudo, mas, mesmo assim, carrego todas as tralhas. Já Dominique, outra bailarina, é o oposto: ela não leva nada, e ainda por cima esquece tudo. Michel é alemão: um cara metódico que classifica e etiqueta tudo. E Jean Damian é uma pessoa que quando chega na praia quer ver o que tem naquela montanha lá longe, ou seja, é uma pessoa que vive no futuro. Na peça, a Dominique me pede uma fivela e eu explico que aquela não é uma fivela comum, que ela pertenceu à minha avó, e eu sei que ela vai perdê-la. Cria-se, então, um "conflito teatral", que se expressa através da dança. Durante o espetáculo, tem um momento em que a personagem dela fala: "Você pode me emprestar sua fivela?". Nesse instante, o público reconhece a situação e os personagens. Então, no fim, como a Dominique perde tudo, a coreografia que montamos indica que ela está perdendo a cabeça. Dá para notar por aí que a dança é baseada na história real dos atores. Isso quer dizer que quando o público assiste à peça, ele se reconhece nos personagens, ou seja, através da dança conseguimos estabelecer uma ponte de comunicação com o público. Nesse ponto, conseguimos criar um espetáculo humano, quase tragicômico. Afinal, é por isso que a companhia chama-se À Fleur de Peau (À Flor da Pele).

Dança contemporânea
Eu não suporto assistir a espetáculos que não tenham emoção nenhuma. Hoje em dia, estou um pouco chateada com a dança contemporânea. O que voltou à moda, principalmente na França, é o que se chama de antidança. Seguindo seu corolário, quanto menos se dançar, melhor. Essa linha pensa uma forma de tocar as pessoas de uma maneira bruta, sem dançar. Eu considero uma provocação. Eu não gosto desse caminho, que já esteve em voga em outras épocas, e que serve apenas para chocar. Prefiro ver um espetáculo de dança clássica do que de dança contemporânea. É por isso que em À Fleur de Peau faço os bailarinos trabalharem a noção de generosidade. É preciso olhar direto para o público, entregar-lhe uma dose de emoção. É uma questão de dom. Às vezes, a necessidade de nos expressar faz com que subamos no palco e nos fechemos em nós mesmos. Nesse caso, o público não sabe do que você está falando ou sofrendo. Acho que o público não-especializado não entende a dança contemporânea muito hermética.

Brasil
Eu e Michel Bugdehn desenvolvemos uma coreografia para o Balé da Cidade de São Paulo, que foi exibida no Teatro Municipal no mês passado. A experiência foi muito interessante. O grupo era integrado por bailarinos de formação clássica, que desenvolveram coisas que nunca tinham feito antes em apenas dois meses de ensaio. O resultado foi a nossa "cara", ou seja, a cara da companhia refletida no corpo deles. Foi um verdadeiro reaprendizado para aqueles bailarinos. Por exemplo, eles andam no palco não mais como bailarinos, mas como eles mesmos. Isso é absolutamente novo na carreira deles. Além disso, durante o espetáculo, eles têm de falar e se comunicar com o público, o que significa aprender o timing correto, treinar a impostação da voz. Em algumas pessoas, conseguimos descer a fundo na personalidade e desenvolver um trabalho muito legal. Nesse caso, pudemos fazer com que o personagem fosse a representação do bailarino.