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História das imigrações

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Estudos recentes começam a rever o papel das diferentes culturas na formação do povo brasileiro. Em textos inéditos e exclusivos, historiadores e especialistas traçam o perfil das nossas principais influências

Nachman Falbel
é professor titular de história medieval da USP e diretor de pesquisa do Arquivo Histórico Judaico-Brasileiro.

Sabemos que o período que compreende o reinado de Alexandre III (1881-94), que ascendeu ao trono do Império Russo logo após o assassinato de seu pai, foi em particular difícil para a minoria judaica que vivia naquele território. A política governamental autocrática do novo imperador na verdade não se diferenciou da de seu pai e não fugiu à tradição antijudaica que a caracterizou no passado. No entanto, iniciativas para impor reformas sociais conflitantes, propostas ainda no período anterior, continuaram e parte delas ameaçava os antigos privilégios da velha nobreza russa que se opunha às novas medidas governamentais e procurava explorá-las a seu favor. Porém, outro aspecto dessa política governamental do novo imperador é sua perseguição aos grupos ou minorias que representavam religiões diferentes, incluindo-se entre elas as seitas existentes na Rússia, tais como os Unitários, os Luteranos, nas províncias ocidentais, e os Lamaistas Kalmuques e os Buriatos nas orientais. Mas, acima de tudo, os judeus foram alvo de intensa perseguição. A imprensa, assim como as organizações revolucionárias que despontaram naquele período, foram eliminadas e silenciadas. Ao mesmo tempo as terríveis condições sociais revelaram-se durante a fome que grassou no ano de 1891, associada à profunda crise agrária que atingiu aquele imenso território. A grave onda de pogroms que se seguiu ao assassinato de Alexandre II em 1881, e anos seguintes, nos quais o judeu se transformou no bode expiatório de todos os males da Rússia, repercutiu nos anos posteriores. Ao mesmo tempo, em 1891, os judeus começaram a ser expulsos de Moscou e as leis discriminatórias não se restringiam somente àquela cidade mas estenderam-se a outras, causando um verdadeiro êxodo para outros lugares. O clima anti-semita atingiu seu auge alimentado pela imprensa conservadora, que seguia a orientação política de Pobedonostev, o chefe do "Santo Sínodo", que representava o corpo governamental da Igreja ortodoxa russa. Sua esperança, tal qual ele a formulou, era que "um terço dos judeus se converteria, um terço morreria e um terço abandonaria o país". Efetivamente o abandono do país já havia começado.
A quase totalidade da emigração dirigiu-se aos países do Ocidente e em particular aos Estados Unidos, que recebeu a maior parte dos imigrantes. Porém, pude constatar que o Brasil também recebeu uma leva de cerca de 280 imigrantes vindos no ano de 1891.
O nosso conhecimento sobre essa imigração ao Brasil era nulo, e se havia alguma suposição sobre a vinda de judeus nesse tempo ela se restringia, possivelmente, a uma ou outra família, sem termos, no entanto, qualquer certeza ou elemento comprobatório. Em busca de um ponto de partida para a pesquisa usei o nome da família Zlatopolsky, que sabia ser uma família "antiga", e de fato no computador do arquivo do Museu da Imigração surgiu o nome de Jacob Zlatopolsky, como imigrante vindo ao Rio de Janeiro com o navio Ibéria, via Southampton, em 7 de junho de 1891,e que chegou a São Paulo em 10 do mesmo mês. De resto foi examinar o Livro de Matrícula dos Imigrantes que se hospedaram na Hospedaria do Estado de São Paulo.
O navio Ibéria, pertencente a Pacific Steam Navigation Company, viajou 24 dias, saindo de Liverpool, conforme os dados que termos no registro do movimento da Repartição Central das Terras e Colonização. O número de passageiros judeus que desembarcou no Rio em 7 junho, para passar pela quarentena da ilha das Flores, é de 221, incluindo mulheres e crianças. Em São Paulo, procedentes em sua maioria absoluta do Rio, viriam 218 pessoas, no dia 10 de junho, contado com alguns poucos que vieram com o navio Argentina (família Levine composta de quatro membros, chegada em 1/6/1891, procedente de Hamburgo) e com o navio Strassburg (um casal e um passageiro). Comparando as relações de passageiros que desceram no Rio de Janeiro e os que desceram em São Paulo, logo vemos que em sua maioria eram os mesmos, havendo uma diferença de 52 nomes do Rio que não constavam na lista de são Paulo e 61 nomes de São Paulo que não constavam na lista do Rio. Assim sendo podemos calcular que chegaram, aproximadamente, cerca de 280 pessoas no total. A lista do Rio inclui as profissões dos passageiros que, como já sabemos, saíram de Liverpool, constando que eram em sua maioria trabalhadores sem profissão definida, com exceções de alguns aos quais se indica ser alfaiate, vidraceiro, sapateiro, comerciante etc.
Para sabermos o seu destino final necessário se faz uma pesquisa minuciosa sobre cada família. No entanto há fortes indícios de que o processo de assimilação e aculturação das imigrações do séculos passado XIX, abrangendo a dos judeus marroquinos, a dos alsacianos e as primeiras levas proveninetes da Europa Oriental, se deu numa escala bem maior, deixando poucos traços de sua identidade de origem.

Cláudio Aguiar
é doutor em Direito Internacional pela Universidade de Salamanca, Espanha, e autor de vários livros

As migrações internacionais, ligadas diretamente a movimentos de mudanças sociais ou de renovação, sempre funcionaram como causas determinantes para a consolidação de posições claramente definidas dentro do contexto histórico de cada época ou nação. No caso do Brasil, desde os primeiros momentos de sua afirmação colonial até os dias de hoje, o processo, em tese, tem sido o mesmo. Um bom exemplo de necessidade capaz de provocar o fluxo migratório da Espanha ao Brasil foi o das fazendas de café de São Paulo. Somente no período de 1884 a 1900 entraram cerca de 1.579.249 emigrantes no Brasil. Grande parte deles vinha de Espanha. Essa afluência dos emigrantes espanhóis aos cafezais paulistas traduzia simplesmente a necessidade que tinham os senhores proprietários de substituir a mão-de-obra escrava, então sem oferecer maiores possibilidades de lucros. Por trás das necessidades de cada classe social, começava a aparecer a carência de mão-de-obra especializada de alguns setores da atividade fabril ou de serviços. Apesar de tal limitação, os espanhóis no Brasil constituíam a terceira força emigratória, formando uma comunidade com problemas de natureza jurídica, econômica, cultural, social etc.
Atualmente a essas características vieram juntar-se outras importantíssimas no que se refere ao objetivo fundamental do processo emigratório: as novas tecnologias que influenciam decisivamente as relações entre o homem, o trabalho e o capital no tempo e no espaço. É sabido que a simultaneidade das informações globalizadas reduziu as distâncias e tornou possível a tomada de decisões globalmente. Os lugares ficaram tão aproximados que as viagens, que antes levavam semanas ou até meses, agora podiam ser feitas em poucas horas.
A mão-de-obra imigrante nos dias atuais está diretamente ligada à necessidade de emprego. O processo global de absorção de emigrantes hoje depende das condições objetivas de uma economia mundial, segundo denominação de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, que é capaz de funcionar como se fora uma unidade em tempo real e em escala planetária. Todos os agentes do processo da economia, de repente, viram-se envolvidos. O capital, que sempre funcionou como a principal alavanca do sistema econômico, passou a ser gerenciado 24 horas por dia nos mercados financeiros, funcionando, portanto, em tempo real. Pensar nisso antes era pura ficção. Ainda que não se possa dizer que os mercados são globais, na verdade, em virtude dessas alterações, a mão-de-obra passou a ser um bem gerenciado globalmente. As grandes empresas (multinacionais ou globais) escolhem os lugares e, quase sempre, impõem condições a governos, pois todos têm seus interesses voltados para a absorção de mão-de-obra. A conseqüência é a imposição de restrição acentuada a nível planetário ao processo emigratório. Ela não está mais ao talante do indivíduo nem de certos governos. Ao mesmo tempo seria possível cogitar-se uma quebra dos limites territoriais, quando o objetivo for estabelecer os interesses de uma certa ordem global em detrimento de uma ordem local, como insiste Milton Santos no sentido de que a ordem global serve-se de uma população esparsa de objetos regidos por uma lei única: a do sistema. Bastaria citar alguns dados estatísticos para se confirmar a tendência após a implantação das novas tecnologias no processo econômico brasileiro. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, de 1946 a 1959 entraram no Brasil 91.500 espanhóis, segundo dados do Instituto Espanhol de Emigração, enquanto que no decênio de 1970 a 1980 emigraram apenas 2.074. Nas décadas seguintes os números foram cada vez mais reduzidos. Tudo isso prova que o processo está a depender dos fluxos e refluxos do sistema econômico mundial que afeta a todos os países e, de modo especial, ao Brasil.

Aida Ramezá Hanania
é professora doutora do Depto. de Letras Orientais da Fac. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

São 23 os países que, estendendo-se do Golfo Pérsico ou Arábico ao oceano Atlântico, formam o chamado Mundo Árabe. Entretanto, os imigrantes árabes do Brasil são procedentes basicamente do Oriente Próximo: são sírios e libaneses (estes mais numerosos) ou, como se poderia dizer até 1943 (data da independência do Líbano), sírio-libaneses, já que o Líbano era parte da Síria. Particularmente, a região libanesa (cuja área é de 10.400 quilômetros quadrados), com sua montanha e sua costa mediterrânea, constitui-se numa realidade bastante individualizada, peculiaríssima do ponto de vista étnico, religioso, social e político.
Os primeiros sírios e libaneses que chegaram ao Brasil, definindo um movimento imigratório (de 1880, aproximadamente, a 1920, terminada a Primeira Guerra Mundial e iniciado o mandato francês), deixaram seu país de origem fortemente pressionados pelo jugo turco, pelas precárias ofertas de trabalho, pela perseguição religiosa, situações que configuravam um contexto político, econômico e sociocultural bastante conturbado e desalentador.
A opressão moral e a falta de condições satisfatórias de vida criaram, pois, um conjunto de circunstâncias que estimulou libaneses e sírios a se voltarem para a América, onde o Brasil já era conhecido pelo relato de imigrantes que para cá tinham vindo isoladamente, vivido alguns anos e retornado à pátria, impressionados com a liberdade de credo, com os horizontes amplos do país e com a possibilidade de trabalho para todos.
Durante o primeiro fluxo, os imigrantes eram constituídos quase que na totalidade por cristãos. Tal fato é compreensível, visto que os cristãos expuseram-se à pressão interna dos árabes muçulmanos e à pressão dos turcos (estes, já enfraquecidos), que os acusavam de compactuar com a penetração massiva do elemento ocidental no Oriente árabe.
O Brasil passa a significar, então, para os futuros imigrantes, o terreno neutro em que poderiam viver condignamente, livres das distorções de toda ordem, no exercício pleno de suas crenças fundamentais, ao mesmo tempo em que poderiam aspirar a "fazer a América". Mais que isso, o país passa a ser visto - por parte de representantes de uma elite intelectual que para cá veio - como o caminho seguro para desfraldar a bandeira da causa pátria, com vistas à soberania cultural e à independência política: tem início, assim, o processo de renascimento cultural da terra de origem, Nahda.
Com a instalação do mandato francês em substituição ao domínio turco, prosseguiu a imigração árabe, agora ampliada pelos muçulmanos que, além das razões de ordem econômica, que atingiam sobretudo a população rural, sofriam discriminação do ponto de vista religioso por parte dos franceses, sendo recíproca a intolerância.
Cabe dizer que, por diversas razões - dominação estrangeira, dificuldades de ordem econômica, ocupação do território, a guerra que assolou o Líbano durante cerca de duas décadas -, a imigração árabe manteve continuidade até nossos dias, ao longo, portanto, de mais de um século.
Atualmente, os cerca de 10 milhões de árabes e seus descendentes encontram-se plenamente integrados na sociedade brasileira, uma vez que souberam - superada a breve e natural dificuldade de adaptação inicial - absorver totalmente o nosso modo de ser, afinal fundado em valores que são também próprios dos libaneses e dos sírios: hospitalidade, afetividade, cordialidade. Hoje em dia, estão participando de todas as instâncias da vida cultural e social brasileira: do comércio à medicina, da literatura à pesquisa acadêmica, da engenharia à arte, da comunicação ao debate das questões candentes de seu país de adoção.

João Fábio Bertonha
é doutor em história e professor de história contemporânea na Universidade Estadual de Maringá

Apesar de existirem no Brasil registros oriundos da península itálica desde a época da Colônia (normalmente de viajantes, soldados ou artesãos), o grosso da imigração italiana para o Brasil se processou entre fins do século 19 e início do 20. A maior parte dos italianos que vieram para o Brasil era constituída de camponeses oriundos do Norte da Itália (especialmente do Vêneto), que ambicionavam reconstruir aqui o mundo rural que estava sendo destruído na Itália. Imigrantes oriundos do Sul ou que se dirigiram diretamente às grandes cidades não foram incomuns (especialmente nos anos posteriores), mas eram minoritários frente ao primeiro grupo.
O interesse básico das elites brasileiras ao estimular a vinda de italianos (e de outros europeus) era o de garantir a mão-de-obra abundante e barata necessária para manter as fazendas de café em São Paulo e para povoar as regiões de fronteira, como ocorreu no Sul do país. Também não deixava de existir uma preocupação em "melhorar" a população brasileira a partir da importação do elemento branco.
A colonização do Sul foi extremamente difícil, mas os italianos tiveram acesso imediato pelo menos ao que desejavam, ou seja, terra. Já no estado de São Paulo, o objetivo central dos fazendeiros era explorar o trabalho dos imigrantes, o que frustrou as expectativas da maioria deles, forçados a aceitar a rotina sem fim nos cafezais ou a resistir, na medida do possível, via fugas de uma fazenda para outra, movimentos grevistas e paralisações. Também não foi incomum a migração de retorno para a Itália (perfazendo cerca de um terço dos cerca de 1,2 milhão de italianos que entraram no Brasil, 70% dos quais para o estado de São Paulo, entre 1870 e 1920).
Outra forma encontrada pelos italianos de refazer suas vidas longe das fazendas foi a migração para as grandes cidades, especialmente São Paulo. Aqui, a maioria trabalhou como operária ou em pequenos negócios urbanos, mas uma burguesia rica e poderosa (com destaque para o nome do conde Matarazzo) e uma classe média de origem italiana surgiram com o passar do tempo. Isso ocorreu, guardadas as proporções, em várias cidades do país, mas foi em São Paulo que os italianos realmente se destacaram. Eles foram os grandes responsáveis pela transformação da cidade em metrópole e, no "cadinho cultural" paulistano, os italianos e seus filhos foram preponderantes até a Segunda Guerra Mundial.
Com o passar do tempo, porém, os italianos que viviam na cidade e no estado de São Paulo envelheceram, morreram e não foram substituídos por novos italianos (que preferiram escolher locais mais rendosos, como a França e os Estados Unidos, para imigrar). A colônia envelheceu e seus filhos, vivendo em meio a outros povos, se assimilaram rapidamente. No Rio Grande do Sul e em outras regiões do país, o isolamento no meio rural permitiu que essa assimilação fosse mais lenta, levando à impressão de muitos, nos dias de hoje, de que foi lá o centro da "Itália brasileira". No entanto, esse centro foi o estado de São Paulo e, especialmente, a metrópole paulistana, como a arquitetura, a culinária e outras características ainda presentes na cidade o demonstram.

Célia Oi
é jornalista e diretora-executiva do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil

Na década de 1980, o mundo descobriu as maravilhas do sushi/sashimi regadas a saquê. Apreciar o peixe cru passado no shoyu temperado com wasabi (raiz-forte) transformou-se num ritual estranhamente saboroso.
No caminho percorrido pelo sushi/sashimi via Europa/EUA até São Paulo e pelo Brasil, não houve a participação direta dos imigrantes japoneses, apesar de aqui ser a maior concentração de japoneses fora do Japão. É certo que, ao chegar ao país, a nova moda só atingiu grande escala devido à eficiência dos comerciantes e restaurantes japoneses locais.
Pouco antes, desde a década de 1970, o Brasil vem convivendo com um Japão que representa uma tecnologia avançada, novos conceitos administrativos e produtivos e até investimentos maciços na exploração do setor primário.
A comunidade nipo-brasileira, por seu lado, assiste, entre surpresa e orgulhosa, ao delineamento de novos contornos da imagem do Japão no Brasil. Afinal, o que está por detrás do sushi/sashimi?
O maior sonho de grande parte dos 188 mil imigrantes japoneses pré-guerra era o retorno ao Japão. E foi ele que estimulou a organização de entidades e a construção de escolas de língua japonesa para garantir a formação de cidadãos japoneses e a preservação da cultura dos antepassados.
As restrições da Segunda Guerra provocaram mudanças radicais na comunidade, entre elas, a proibição do ensino e uso da língua estrangeira. A derrota do Japão significou enterrar o sonho de retorno. Integrar-se à sociedade brasileira transformou-se no ideal a ser perseguido.
Entre encontros e desencontros, essa história parecia caminhar sem percalços, não fosse o intercâmbio estreito entre os dois países, não fosse o Japão aceito no seleto grupo do Primeiro Mundo. O nipo-brasileiro, que saiu da guerra disposto a se transformar em brasileiro, de repente, teve seu lado "nipo" aguçado pela admiração do Ocidente pelo Japão.
Assim, passou a ser revivido o Japão mitificado pelos avós e bisavós. Nem sempre isso combina com a imagem do Japão atual mas, não importa, a cara que durante a guerra não ajudava, agora ajuda.
Nessa mesma ocasião, os isseis e nisseis (descendentes de primeira e segunda geração) descobriram uma mina de ouro: trabalhar em funções desprezadas pelos japoneses. O salário em ienes, convertido em dólares, no Brasil transforma-se em um montão de reais. A leva engrossou e, passados quinze anos, cerca de 300 mil descendentes de japoneses estão residindo e trabalhando no Japão.
Aqui e lá desenha-se um novo capítulo - o da atualização do Japão mitificado e da conformação de uma nova imagem dos países (do Japão e do Brasil). Por detrás da era sushi/sashimi, a comunidade nipo-brasileira começa a viver esse novo processo.