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Encontros
Desenhos na cidade
por Decio Tozzi
Faz pouco tempo li uma entrevista sobre a última geração de edifícios que estão sendo construídos na cidade. A certa altura, alguém fez uma observação interessante, engraçada e pertinente: "esses prédios são objetos que têm pouco a ver com o nosso ambiente, e quando nós chegamos até ele vamos direto para a garagem". Ou seja, não há uma praça, um comércio, não há gente. Eu iria além: trata-se de algo que nem sequer sabemos se é bonito. Afinal, são prédios que visam a uma certa busca de originalidade a qualquer custo, mas que acabam em meras expressões formais. O que a arquitetura requer para atingir uma nova forma é um pensamento firmado que considere um novo conteúdo. Quando isso acontecer, todos entenderão e verão que o belo é a expressão de uma verdade, de uma franqueza e de toda uma lógica que é racional e, ao mesmo tempo, que permite que a sensibilidade encontre essa nova forma.
Por esse motivo, é muito oportuno tocar em questões como o clima e a própria cultura de um país. A arquitetura tem, é claro, uma condição universal, mas há especificidades - e uma certa singularidade - que dizem respeito ao território, à paisagem e até a um enfoque antropológico dos costumes e do povo. Esses elementos são fundamentais e dão identidade, e uma certa expressão cultural, para a arquitetura. Nesse sentido, um dos trabalhos mais importantes que tenho desenvolvido dentro da minha obra aparece em vários dos meus projetos em Santos, São Bernardo, São Caetano, interior de São Paulo e mesmo na capital, lugares onde o clima, embora não seja tropical por excelência (trata-se de um clima mais temperado), apresenta todas as suas condições nos picos do verão. Essas condições climáticas resultam numa excessiva luminosidade e numa elevada temperatura. Trata-se de um grande problema que procura ser resolvido, em algumas metrópoles, com a importação de uma tecnologia vinda de países com problemas de baixa temperatura e que sofrem para conseguir energia suficiente para suprir o que o ar-condicionado consome, por exemplo. Nesse caso, é evidente a importância de vidros especiais e revestidos, que são importados. Por outro lado, sabemos que os aparelhos de ar-condicionado, combinados com esses vidros de alta tecnologia, ainda não são suficientes para resolver os problemas de temperatura e luminosidade características do nosso clima.
Tendo isso em vista, desenvolvi em meus projetos, entre eles a Escola Técnica de Santos, a Escola de 2º Grau de São Bernardo do Campo, o Estádio Baeta Neves (também em São Bernardo), um trabalho que consiste no uso de elementos que dispensam a importação de tecnologia de países desenvolvidos. São projetos que usam materiais incorporados na nossa cultura, como o tijolo e o concreto, com os quais o nosso operário sabe trabalhar. Aliás, não somente ele, mas toda a prática nacional de construção revela-se extremamente habilidosa na lida com o desenho e o cálculo do concreto - o gênio brasileiro se faz presente também aí. Ao usar somente concreto, foi possível fazer uma série de edifícios nos quais há uma filtragem da luz excessiva com tubos de concreto que "dominavam" a natureza adversa e transformavam-na numa fornecedora de temperatura e luminosidade adequadas. No caso da escola, para o trabalho de ensino; no caso do ginásio de esporte, para a prática de diversas modalidades esportivas; o mesmo valendo para uma residência.
Para chegar a esse resultado, realizei pesquisas em tribos africanas, onde há casas de taipa com furos no telhado que permitiam a entrada de uma luz que descia pela parede e chegava ao plano de trabalho de maneira muito agradável. Isso prova que é possível utilizar elementos de construção e materiais próprios de um país. No caso dos africanos, foi a taipa e a madeira. Nós dominamos o concreto, que, por usa vez, permite um vôo mais alto do sentido arquitetônico. Além disso, o concreto armado permite tudo: ele pode ser moldado ao sabor do gosto. Ele pode ser curvo, tubular, redondo. Ou seja, ele oferece uma liberdade total de desenho. Tudo isso sem vidros importados e sem aparelhos de ar-condicionado, que consomem muita energia elétrica.
Maior participação
Por outro lado, a crise de energia fez com que, ao menos, a sociedade discutisse a questão de seu consumo. Enquanto os trâmites relacionados à produção e ao fornecimento de energia ficavam restritos aos gabinetes das companhias, a população não tinha consciência do que realmente acontecia. É muito importante que o povo participe ativamente dessa discussão, que faz surgir colocações interessantes. Umas são válidas, outras não. A maior participação por parte da população, sem dúvida, se reproduz na arquitetura. Eu mesmo fui protagonista de uma das mais belas páginas da história da arquitetura e urbanismo no Brasil. Tive a oportunidade de imaginar e criar o Parque Villa-Lobos, em São Paulo. Havia um espaço muito grande - uma das últimas áreas livres numa região central da cidade - e imaginei um parque para esse espaço. Fiz o desenho, procurei os vereadores da Câmara Municipal, fiz um trabalho de dois anos de divulgação da idéia indo a câmaras comunitárias, associações atléticas, associações de bairro, clubes de futebol de várzea etc. e, de repente, a cidade inteira começou a pedir um parque para aquele lugar. Eu montei o programa do parque nessas reuniões com a população. A própria sociedade manifestou a vontade de que o tema do parque fosse música, que houvesse uma parte dedicada às crianças etc.
Trata-se de uma idéia que nasceu de um arquiteto idealista, que encontrou apoio dos políticos e eco em toda a sociedade. Quando as obras iriam ser iniciadas, descobrimos que havia um projeto imobiliário que previa para o espaço a construção de um conjunto residencial com um shopping, mas a pressão da opinião pública impediu a implantação desse complexo de prédios.
Trata-se de um belo exemplo da participação da população na eleição e na consecução de um espaço público para São Paulo, uma cidade que tem uma paisagem belíssima. O problema é que a produção urbana ainda não encontrou um destino mais correto para ela. Um bom exemplo são as calhas dos nossos três rios, que ainda não foram consideradas pontos importantes pertencentes ao centro da cidade. Sua recuperação é um projeto perfeitamente viável do ponto de vista econômico. Ainda mais com a construção do rodoanel, que, por tirar o trânsito das marginais, possibilita que o asfalto volte a dar lugar ao gramado. O grande trabalho, claro, é limpar os rios. Mas se outras cidades do mundo, como Paris e Londres (com apenas um rio) os tornaram pontos turísticos, imagine nós, que temos três?