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Sabores da escuta

Ilustração: Marcos Gauti
Ilustração: Marcos Gauti


Por Sonoe Juliana Ono Fonseca


O que Respighi, Bach, Pixinguinha e Brubeck tem em comum? Quase nada. Para uma criança de cinco anos? Tudo. Na minha infância, eles ocuparam a mesma função, como trilha sonora de brincadeiras e fantasias. Nos devaneios de castelos assombrados, guerras e cavaleiros, era Respighi com seus Pinheiros de Roma que ajudava a compor o cenário, assim como as peças de órgão de Bach e Buxtehude. As festas de fadas e princesas aconteciam ao som de Vivaldi e chorinho. E as brincadeiras tinham Beatles e Chico Buarque.

Essa falta de respeito com a dita erudição da música clássica e dos nichos de cada estilo me permitiu ouvir todos os sons da mesma forma. Aí está uma das vantagens de se ter acesso à diversidade musical na infância: desprovida dos freios sociais e culturais, a criança tem liberdade para o novo, sem os preconceitos e os dogmas que carregaremos em nossas vidas. Lembro sempre de meu primo aos quatro anos, dançando ao lado da máquina de lavar roupas: “a máquina também canta, não é, mamãe?”.

No meu caso, a vitrola portátil me acompanhava nas brincadeiras e foram tantas idas e vindas que estraguei o LP dos Secos e Molhados ao deixá-lo no sol. Conviviam em harmonia os meus discos de histórias, os dos meus irmãos adolescentes e os discos dos meus pais, de Brubeck a Stravisnki, passado por Caymmi e pela Bossa Nova. Na adolescência, morei ao lado do Teatro Guaira, em Curitiba, e assisti shows, concertos, balés, peças de teatro. Vaguei pelas entranhas do teatro, espiando pelas coxias e levando bronca dos seguranças. Isso tirou do espetáculo a aura do sagrado e permitiu ver como algo próximo e possível.

Talvez por isso penso na escuta como no paladar: acredito que seja um sentido que se desenvolve a partir da experimentação. Quanto mais contato com diferentes estilos, mais percebemos novos “sabores” musicais. Podemos gostar ou não, mas aprendemos a sentir outros sons.

Refletindo sobre essa minha conexão com a música, três pontos me saltam aos olhos: o caráter altamente pessoal de cada escuta, o caráter universal da linguagem e o ouvir como um ponto de partida para o exercício do diálogo.  São questões que me intrigam e que despertaram o desejo de conhecimento.

Assim como as outras artes, a música é uma linguagem que conta, com ou sem palavras, suas histórias. A efemeridade e a falta de materialidade poderiam dificultar sua compreensão, mas não é isso que acontece. O caráter pessoal da escuta aparece com a percepção temporal do som, ou seja, é a lembrança do que ouvimos, mesclada com nossas próprias memórias, formando a sensação final e que é única. Talvez seja isso que torne a fruição tão pessoal de um lado e tão universal de outro: ela se mistura com os nossos sentimentos e por isso se adapta a cada um.

A universalidade citada acima é a mesma para o rock, o pop, a música brasileira, instrumental ou vocal, e permeia todas as camadas sociais. As eventuais barreiras que se impõem são dogmas, como o da música clássica rotulada como de difícil compreensão e o rock sendo algo somente para jovens. Deixando de lado os preconceitos, as diferenças são apenas sabores que podem ser degustados por qualquer um.

Finalmente, penso na escuta como um caminho para o diálogo: aprender a ouvir, a entender o diferente, extrapolando as linguagens artísticas à medida que nos colocamos abertos ao outro.  Como não acreditar nessa sensibilização para nos tornarmos seres humanos melhores, capazes de contribuir na construção de um mundo mais compreensivo para as diversidades?


Sonoe Juliana Ono Fonseca, formada em Música, é assistente técnica para a área de música da Gerência de Ação Cultural do Sesc