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José Eduardo Agualusa

Crédito: Leila Fugii
Crédito: Leila Fugii


Escritor angolano afirma sua entrega à escrita de ficção a partir de fatos e sua devoção à língua e à literatura portuguesa em todas as suas variantes


De família brasileira e portuguesa, o angolano José Eduardo Agualusa é considerado um dos mais importantes escritores africanos dos últimos tempos. Entre seus livros, traduzidos para mais de 20 idiomas, destacam-se os romances Nação Crioula (Língua Geral, 2011), Barroco Tropical (Companhia das Letras, 2009), Teoria Geral do Esquecimento (Foz, 2012), As Mulheres do Meu Pai (Língua Geral, 2012) e O Vendedor de Passados (Gryphus, 2011), que recebeu o prêmio de ficção estrangeira do jornal inglês The Independent.

Na entrevista a seguir, Agualusa fala sobre sua entrega à escrita e seu projeto de utilizar a língua portuguesa em sua riqueza total: “Desde que comecei a escrever, embora não tivesse a experiência de vida que tenho hoje, eu já tinha a ideia de que aquilo que me interessa não é uma variante da língua, mas a língua portuguesa tal como a gente encontra em todo o mundo, nesta soma de variantes”.


Você é angolano, mora em Lisboa e já viveu no Brasil. Existem escritores que ficam a vida toda no mesmo lugar, mas você gosta de viajar. Como a questão da identidade e dos territórios afeta ou contribui para a sua produção? A sua literatura seria outra se você tivesse ficado só em Luanda?
Identidade é algo que você vai construindo enquanto caminha. Evidentemente, o fato de eu viver em trânsito por esses territórios vai construindo a minha identidade. Sou o que sou hoje como resultado da soma desses encontros todos que vou tendo nesses lugares. O fato de eu viver em Lisboa e ter vivido no Rio não diminui nada, só me acrescenta. Se eu tivesse ficado em Luanda, a literatura seria outra porque eu seria outro. A literatura é consequência da vivência do escritor. Acho também que hoje em dia, se você tem uma carreira internacional e quer fazer da escrita um ofício, você tem que viajar. E por isso, hoje, a maior parte dos escritores viajam muito. Viramos um pouco caixeiros viajantes de nossos próprios livros, promovendo as edições.


Essa questão da territorialidade não é mais tão importante para um escritor?
Para mim é importante. O território da infância marca o escritor para sempre. Trabalho com a língua portuguesa e dificilmente me imagino viver fora desse território. Já vivi um ano em Berlim e não é uma experiência que eu gostaria de repetir, apesar de ter sido muito bem tratado e ter sido uma experiência que me foi útil. Mas meu território realmente é esse da língua portuguesa. Desde que comecei a escrever, embora não tivesse a experiência de vida que tenho hoje, eu já tinha a ideia de que aquilo que me interessa não é uma variante da língua, mas a língua portuguesa tal como a gente encontra em todo o mundo, nesta soma de variantes. Meu projeto como escritor é utilizar a língua portuguesa na sua riqueza total. O fato de eu transitar por esse mundo, já que estive em todos os países de língua portuguesa, exceto Guiné-Bissau, só me tem ajudado nesse projeto, porque é no contato com essas pessoas e a língua do lugar que vou aprendendo.


Em qual desses países em que se fala português você observa que a língua tem sido mais enriquecida e tem uma vivacidade maior?
Em países jovens e em países onde a língua portuguesa namora com outros idiomas, como é o caso de Angola e Moçambique, esse enriquecimento tende a ser maior. O Brasil, por outro lado, é um país com quase 200 milhões de pessoas; portanto, não é de admirar que a língua esteja muito viva e esteja a enriquecer-se constantemente. O que é interessante a meu ver é que hoje há uma influência global. Em Portugal existe uma influência muito grande do português angolano, sobretudo por causa da música angolana que entra com grande força. A juventude portuguesa tende a adotar palavras do português da Angola. Em Lisboa, já vi jovens portugueses falando com o sotaque angolano por acharem cool.


No seu entendimento, você escreve em português angolano?
Eu acho que o meu português é mais que o português angolano. Nas traduções consta sempre como traduzido “a partir do português angolano”, mas, sobretudo nos meus últimos livros, acho que essa expressão é um pouco redutora, pois o meu português é mais do que o português da Angola. No último livro que publiquei em Portugal, A Rainha Ginga, que é sobre uma figura do século 17, tive a oportunidade de usar não apenas diferentes variantes do português, mas também o português em sua dimensão temporal, ou seja, resgatando palavras, arqueísmos. Isso, para mim, é a língua portuguesa, em todos os tempos e em todos os territórios.


Viajando tanto, como fica a disciplina para escrever?
Para escrever um romance, é necessário disciplina, porque romance é um trabalho de grande fôlego. É uma maratona, não é uma corrida rápida. Você precisa ter paixão para começar e disciplina para terminar. Paixão porque é preciso acreditar naquilo que escreve, acreditar com muita intensidade nos seus personagens, partilhar os sofrimentos e alegrias, fazer parte daquilo que escreve. Escrever é, sobretudo, um processo de entrega. Não existe boa literatura se não houver entrega. Quando você está realmente apaixonado, o tempo deixa de existir, você não tem noção de quanto tempo trabalha no livro e trabalha até enquanto sonha. Muitos personagens surgem em sonhos, isso acontece com muita frequência. Eu lembro o caso de um poeta francês que sempre que ia dormir colocava na porta do quarto um cartaz que dizia: “Silêncio, poeta trabalhando”.


O fato de você ser um escritor internacional leva a ter contato com diferentes públicos, com reações e interpretações diversas. Um livro é visto de um jeito em Portugal, de outra maneira em Angola ou no Brasil. Isso leva a uma reflexão na hora de escrever?
É verdade que há diferentes leituras. Dentro de um mesmo país, consoante à classe social e à origem da pessoa que lê, a leitura é diferente também. Se você comparar Angola, Portugal e Brasil, as leituras podem ser diferentes. Em um livro como Nação Crioula, logo no título as leituras poderão ser diferentes em um país ou outro. Depois o escritor vai criando leitores, os leitores vão conhecendo o escritor e com o tempo essa estranheza inicial pode atenuar-se um pouco.


Você acredita que o escritor forma leitores, ou seja, o seu mundo criativo vai encontrando habitantes?
Você se modifica com os livros que lê. Todos os livros nos transformam de alguma maneira. O que é um livro? É um espaço de diálogo, em que você dialoga e recebe coisas do escritor, então nesse sentido os livros são territórios de transformação. Você nunca sai o mesmo de um bom diálogo ou de um livro.


Você observa que a literatura portuguesa contemporânea está passando por um bom momento?
Sim, no sentido de que você tem escritores de grande qualidade, com aceitação internacional, como António Lobo Antunes, que tem sido apontado para o Prêmio Nobel há vários anos. Há também um prêmio Nobel, o José Saramago, e um conjunto de escritores com alguma representação internacional, como Gonçalo Tavares, que deve ser hoje o escritor de língua portuguesa mais traduzido no mundo e com mais prêmios internacionais. Estes são todos escritores de gerações diferentes, então a literatura portuguesa está atravessando um bom momento, sem dúvida.


A que isso se deve?
Isso tem a ver com um exercício continuo de tentar levar o livro às pessoas. Portugal, com todos os percalços, conseguiu criar uma das melhores redes de bibliotecas públicas da Europa, algo que espero que não entre em colapso com a crise atual. Além disso, Portugal criou uma instituição exclusivamente para apoio à tradução, coisa que o Brasil só recentemente começou a fazer, mas de forma um pouco desencontrada, ou seja, não há uma entidade única que centralize esse esforço. O Brasil não tem uma instituição equivalente ao Instituto Camões de Portugal, para apoio à língua. É incrível um país com a dimensão do Brasil, que deveria ser o principal motor desses países de língua portuguesa, não ter isso. Pensar em uma política de língua para o Brasil deveria fazer parte desse esforço de se afirmar como uma grande potência.


Esse interesse por uma literatura mais diversa pode ser uma mudança no gosto do público?
Acho que isso tem a ver com um dado novo no nosso tempo, que é essa possibilidade de as pessoas terem acesso ao mundo como nunca tiveram, através da internet e dos novos meios de comunicação. De repente, as pessoas passaram a se interessar pelo que se passa fora das suas fronteiras. Primeiro por meio da música, a chamada World Music, que teve sucesso no mundo inteiro, e que não é outra coisa senão eu procurar algo que está distante de mim e me surpreender. O que há de melhor que a surpresa? Se não houver surpresa na vida, não vale a pena viver. Acho que isso está acontecendo agora na literatura em grande escala, ou seja, há uma procura pela literatura de outros territórios, na busca pela surpresa.


O que você acha que leva uma literatura de qualidade a ser conhecida, consumida e debatida no exterior? A literatura brasileira, por exemplo, tem coisas muito boas, mas não possui tanta especificidade quanto outras.
Eu creio que a literatura brasileira vai crescer muito. Primeiro porque está aumentando o número de leitores. Depois porque a literatura brasileira está ainda muito fechada no eixo Rio-São Paulo e há todo um mundo a ser explorado. Um exemplo de uma coisa extremamente estranha que se passa na literatura brasileira é o fato de Jorge Amado não ter escritores seguidores. O sucesso de Jorge Amado tem a ver com essa coisa simples de ele ter usado a mitologia africana do Brasil para construir o seu universo ficcional. Mas você tem essa coisa extraordinária que é ele não ter tido seguidores. É inacreditável que o autor de maior sucesso não tenha uma descendência. Só por aí você vê que existe um universo a explorar.


Você citou José Saramago como vencedor do Prêmio Nobel. Você acredita que a política do Nobel de premiar autores de diversas línguas ajuda a divulgar uma literatura mais diversa?
Sim, mas depende também do próprio escritor. Gabriel García Márquez, antes de ganhar o Nobel, já era o García Márquez. Por vezes, o Nobel dedica-se a descobrir talentos escondidos dentro das fronteiras e, em outras, responde a uma demanda pública e entrega o prêmio a escritores que têm um reconhecimento internacional independentemente da sua nacionalidade. Na verdade, escritores que crescem muito deixam de ter uma nacionalidade. Um Coetzee, por exemplo. Você não pensa nele como sul-africano ou australiano, mas sim como aquilo que ele é: um bom escritor. Ao crescerem, os escritores vão perdendo a sua nacionalidade, na medida em que a nacionalidade não é relevante para que as pessoas comprem ou deixem de comprar suas obras.


A literatura portuguesa é mais melancólica. Já o Brasil tem uma literatura mais solar. Como é a angolana?
No Brasil, acho que depende da geografia. Se você falar de um escritor como Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, é mais solar. Mas Bernardo de Carvalho ou outros escritores paulistas já têm mais essa melancolia portuguesa e um certo pessimismo, um conformismo com o mundo. A literatura angolana é mais otimista. Eu li há tempos um ensaio que defendia que países com populações jovens parecem ser mais otimistas do que países mais velhos. Parece fazer sentido isso. Portugal é um país com melhores condições de vida, mas os portugueses são muito pessimistas. A Angola, por outro lado, tem gravíssimos problemas sociais, mas tem pessoas muito mais naturalmente otimistas, com um riso mais espontâneo.


Em Teoria Geral do Esquecimento e Nação Crioula existe uma mistura de acontecimentos históricos de Angola com a ficção. Você diria que a literatura, além do gosto pela palavra, também trata de uma questão histórica?
Eu construo a minha ficção a partir de fatos. No caso de Nação Crioula e A Rainha Ginga existe uma proposta clara de dar a conhecer um tempo, uma realidade que fascina a mim e a qualquer pessoa que, em qualquer parte do mundo, tenha contato com aquela realidade. Então em alguns casos é intencional. Em outros, não. Eu sempre fiz isso, sempre gostei de tecer a ficção ao longo da realidade, utilizar figuras reais da história recente ou remota da Angola para construir as minhas ficções. É uma coisa que me agrada. Agrada também esse território desconhecido e um pouco volátil de as pessoas não saberem muito bem se aquilo é realidade ou ficção. Os livros têm um pé na realidade, e por isso as pessoas acreditam neles. Se fossem livros com base em uma história totalmente inventada, as pessoas não acreditariam neles.


E como você escolhe um momento histórico para ambientar um livro como As Mulheres do Meu Pai?
As Mulheres do Meu Pai partiu de uma encomenda. Uma diretora inglesa que vivia em Moçambique e estava envolvida no mundo da música me propôs que eu escrevesse um roteiro que tivesse a ver com o trabalho dela, com a música e a condição da mulher na África. A gente foi se encontrando em diversas praias pelo mundo afora, no Rio de Janeiro, Moçambique, Angola, e fomos construindo aquilo que seria o roteiro. Acho que por isso o livro é tão solar. A partir de certo momento, percebi que ali havia mais que um roteiro, mas também um romance. Foi assim que nasceu o livro.


Na escrita, como você identifica um personagem? A maneira de falar de cada personagem, por exemplo.
Os personagens vão ganhando dimensão. No início, podem ser figuras imprecisas, sombras, mas depois vão se definindo e cada um encontra a própria expressão. É muito difícil falar disso, porque não sei exatamente como funciona. Os personagens vão crescendo. A gente acredita neles e eles nos empurram e levam por caminhos às vezes insuspeitos. Isso é uma coisa que os escritores repetem muito e parece parte da literatura, mas é verdade: os personagens também conduzem a ação, e se há uma coisa que aprendi ao longo destes anos é que não adianta forçar o personagem a ir em uma outra direção.


Já aconteceu de você começar um livro, pensar que um personagem é um mau caráter e depois ir mudando de ideia?
Sim, geralmente são os personagens mais interessantes. Uma pessoa boa é fácil de compreender, um personagem mau é complexo. Por que alguém fica mau? O meu personagem mais interessante, que matei em Teoria Geral do Esquecimento porque aparecia em muitos livros, era Monte. Ele apareceu primeiro em Estação das Chuvas e depois foi reaparecendo. E tenho um carinho por esse personagem. O interessante é que ele não é um personagem preto e branco. Foi capaz de ações terríveis, mas ao mesmo tempo é um idealista e não perdeu certa ingenuidade.


“Sempre gostei de tecer a ficção ao longo da realidade, utilizar figuras reais da história recente ou remota da Angola para construir as minhas ficções”


“Costumo dizer que a Angola tem muito passado pela frente, no sentido de que ainda há muito passado a explorar. Há poucos escritores fazendo ficção histórica de qualidade e ainda há todo um mundo por descobrir”


“O livro é um espaço de diálogo, no qual você dialoga e recebe coisas do escritor, então nesse sentido os livros são territórios de transformação. Você nunca sai o mesmo de um bom diálogo ou de um livro”


“Para escrever um romance, você precisa ter paixão para começar e disciplina para terminar. Escrever é, sobretudo, um processo de entrega. Não existe boa literatura se não houver entrega”