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Diversidade sonora
Intimista e aberta à inovação, música de câmara é reconhecida por construir um espaço experimental nas composições eruditas
Executada por grupos com um pequeno número de instrumentistas, a música de câmara é uma das vertentes eruditas mais abertas a invenções. Graças à proximidade entre compositores, músicos e público, o gênero firmou-se historicamente como um laboratório de experimentação sonora. Seja em peças contemporâneas, seja na reinterpretação de repertórios do passado, as inovações propostas incluem desde interação com a música eletrônica até incorporação de performances e uso de suportes digitais, entre inúmeras possibilidades.
O ambiente intimista é, portanto, propício à liberdade de criação dos compositores. “É na música de câmara, e não nas grandes obras orquestrais, que se expressa o real estado da arte da música do nosso tempo”, observa o jornalista e crítico musical João Marcos Coelho. “Se você olhar a produção de todos os compositores brasileiros, a música de câmara é uma das mais ricas.” Segundo o especialista, outro ponto a ressaltar é a expansão dos limites do repertório clássico. “Hoje, o critério básico é a qualidade de invenção que você pode fazer”, complementa.
Inicialmente apresentada em câmaras de palácios e salões particulares, essa vertente passou a dar mais espaço à ousadia no século 18. Isso se deve, em parte, às contribuições do alemão Ludwig van Beethoven. “O setor em que ele vai mais longe é o dos quartetos de cordas. Ali, ele começa uma tradição de alta experimentação, e os músicos passam a olhar para o futuro”, explica João Marcos.
Na opinião do jornalista e crítico Irineu Franco Perpétuo, atualmente as possibilidades são as mais diversas: há desde experimentação na linguagem, no tratamento da matéria sonora e nas combinações instrumentais inusitadas, até o uso de música eletrônica, incorporação de ruídos, performances e poéticas de composições que fazem determinado instrumento soar como outro. “A gama de experimentações é quase ilimitada”, completa Irineu, que cita, entre os grupos que realizam esse tipo de trabalho, o Kronos Quartet e a Camerata Aberta.
No reino da criatividade
Um dos destaques do Festival Sesc de Música de Câmara (veja boxe Escuta Plural), o Kronos Quartet utiliza a formação mais tradicional da música de câmara, o quarteto de cordas, para explorar diferentes territórios sonoros. Nos 40 anos de existência, o grupo já passeou por referências que vão da música africana até a música popular.
Também voltada a composições contemporâneas, a Camerata Aberta, formada por professores da Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim, tem se dedicado ao repertório musical dos séculos 20 e 21. O músico Luis Afonso “Montanha”, que integra o grupo, destaca a proximidade do público como uma das características do formato: “Em um grupo menor você tem, por exemplo, a liberdade de conversar com o público, se quiser. Em uma orquestra isso não é possível”.
Outra possibilidade de rompimento com o tradicional pode vir de reinterpretações do passado. O diretor e violinista do Músicos de Capella, Luis Otávio Santos, explica que a proposta do grupo é fazer música barroca recuperando o modo de tocar da época em que as obras foram compostas. “É uma novidade baseada em uma antiguidade. A gente recupera esses instrumentos e a maneira de tocar que foi perdida no século 19, quando houve uma padronização na forma de interpretar a música. É um trabalho radical, e o resultado artístico é completamente diferente”, afirma.
Aos ouvidos do público, o resgate do passado pode soar tão singular quanto qualquer produção de vanguarda. Os suportes digitais e eletrônicos disponíveis hoje viabilizam não apenas interações entre música instrumental e eletrônica, mas também entre músicos do mundo inteiro, mudando a ideia de concerto como conhecemos. A chamada “música em rede”, por exemplo, utiliza a internet para unir intérpretes em diferentes cidades para tocarem juntos, em tempo real.
O compositor e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Sílvio Ferraz considera que, para quem trabalha unindo música instrumental e suportes digitais e eletrônicos, a música de câmara é um espaço bastante eficaz. “Um grupo menor é sempre mais maleável e responde mais rápido do que uma orquestra”, explica. Para ele, a comparação entre um conjunto de câmara e uma grande orquestra é bastante simples: “É como você dirigir um carro esportivo e passar para um caminhão de carga carregado”.
Notas em evolução
Criada para os salões dos palácios, música de câmara viveu transformações ao longo dos séculos
Em italiano, “câmara” é a palavra que designa os salões de uso privado dos palácios e castelos. Por essa razão, música de câmara é a denominação para a música composta para um pequeno grupo de instrumentistas e que, em seus primórdios, era tocada nesses ambientes mais intimistas do que as grandes salas de concerto.
“É importante lembrar que a música de orquestra só aparece no final do século 18 e que [o alemão Johann Sebastian] Bach, [o italiano Antonio] Vivaldi e todos os compositores do Barroco escreviam para grupos pequenos”, explica o professor e compositor Sílvio Ferraz. Segundo ele, o que distingue a produção camerística de cada época é a maneira como se formam os conjuntos instrumentais. Se no século 19 os conjuntos eram marcados por homogeneidade de sonoridades, no século 20 passaram a ser compostos por instrumentos heterogêneos, como madeiras, metais e cordas, com ou sem piano e contrabaixo. Outra novidade seria a presença cada vez mais marcante da percussão como recurso importante.
Enquanto os principais grupos do romantismo (século 19) e classicismo (século 18) foram os trios com piano, os quintetos de sopros e os quartetos de cordas – bastante explorados pelos austríacos Franz Joseph Haydn e Wolfgang Amadeus Mozart, além do próprio Beethoven –, no século 20, três obras destacaram-se por terem sido compostas para grupos de diferentes formações: Quarteto para o Fim do Tempo (do francês Olivier Messiaen, com violino, clarinete, violoncelo e piano), Pierrot Lunaire (do austríaco Arnold Schönberg, com flauta, clarinete, viola ou violino, violoncelo, piano e voz falada), e História do Soldado (do russo Igor Stravinsky, com clarinete, fagote, cornet, trombone, violino, percussão e contrabaixo). “Essas formações são a matriz para muitos grupos atuais”, completa Silvio.
Escuta plural
Festival leva concertos de música de câmara a mais de dez unidades no Estado de São Paulo
De 26 de novembro a 7 de dezembro, dez unidades do Sesc em seis cidades de São Paulo receberão o primeiro Festival Sesc de Música de Câmara. Com 44 concertos e três workshops, o objetivo do festival é destacar a música executada por pequenas formações, oferecer um repertório variado e renovado e atrair novas plateias. O festival vem complementar as atividades relacionadas à música erudita que já são desenvolvidas permanentemente no Sesc, como as formações nos Centros Experimentais de Música e as séries semanais Concertos, no Sesc Vila Mariana, e Músicos na Capela, no Sesc Bertioga.
A escolha dos intérpretes buscou reunir grupos que, ao final do festival, terão mostrado ao público boa parte das inúmeras acepções possíveis dessa vertente. “A intenção é mostrar que uma das grandes qualidades da música de câmara é a intimidade da escuta. Mais ainda, buscamos mostrar como ela pode proporcionar a descoberta de um sem-número de possibilidades de vivências musicais”, explica a curadora do festival, Claudia Toni.
Entre as 12 atrações confirmadas, há artistas tão diversos quanto o acordeonista Toninho Ferragutti, o jovem pianista Cristian Budu e o quarteto vocal norte-americano Anonymous 4, que se apresenta pela primeira vez no Brasil. A curadora explica que desde o início esteve presente a premissa de que os intérpretes deveriam pertencer a diferentes gerações. “Não só para que o público pudesse apreciar o que vem a ser a interpretação nas mãos de quem começa a construir seu universo sonoro, mas também pudesse entender o que vem a ser a consolidação de um estilo de interpretação, uma marca registrada”, acrescenta Claudia.
Conheça mais alguns destaques da programação do Festival. Veja a programação completa no Em Cartaz:
SONG OF THE GOAT THEATER
Grupo polonês criado por Grzegorz Bral e Anna Zubrzycki nos anos 1990, cujo trabalho pretende mostrar o que distingue o teatro das outras formas de arte. A paixão especial do grupo são as tragédias de Shakespeare, que, para eles, além de dramaturgo foi também músico. No Festival apresentam Songs of Lear, um evento dramático não linear baseado na conhecida peça do escritor inglês. Sem figurinos ou outros efeitos, usam instrumentos de percussão e voz para reviver a essência do drama de Lear. Não é uma mistura de teatro com música, mas a transformação do teatro em música.
BRASIL GUITAR DUO
O grande charme do Brasil Guitar Duo é a dualidade entre a música popular e a música erudita, algo que os seus dois componentes, João Luiz e Douglas Lara, gostam de cultivar. João Luiz começou tocando trompete na banda da escola com oito anos, e seus arranjos possuem muita influência dos estudos de contraponto. Já Douglas dá destaque em suas composições aos temas da música barroca. No programa do Festival, juntam os dois estilos em obras do francês Jean-Philippe Rameau, do italiano Castelnuovo-Tedesco, do cubano Leo Brouwer, encerrando com Forrobodó, de Egberto Gismonti.
CALEFAX REED QUINTET
O quinteto de sopros holandês mistura uma profunda seriedade e técnica musical com senso de humor e teatralidade. Antes de cada apresentação os músicos gostam de falar com a plateia e comentar cada uma das peças. Nos programas do Festival vão tocar arranjos de obras do francês Maurice Ravel, do russo Tchaikovsky (a suíte Quebra-Nozes arranjada em versão jazzística por Duke Ellington), o alemão Mendelssohn, Bach, o expoente norte-americano da música minimalista Steve Reich e o brasileiro Pixinguinha, que terá uma obra especialmente arranjada por Luca Raele para as apresentações no Sesc. Além disso, darão workshops e apresentarão o espetáculo focado no público infantil A Fábrica de Música, onde inventam instrumentos musicais com qualquer tipo de coisa para tocar obras de Mozart, Bach, Beethoven, entre outros.
KARBIDO
No espetáculo The Table, o grupo polonês reúne música, arte e teatro em doses iguais, criando momentos de tensão, mágica e humor em torno de um objeto dos mais cotidianos e prosaicos: uma mesa. É um show de sonoridades percussivas, sobre elementos que o espectador não consegue enxergar, como cordas dispostas estrategicamente que podem soar como um baixo ou mesmo um violoncelo. Os poloneses criam música que parece soar algumas vezes como jazz, folclore ou simplesmente som. Cada apresentação é única e é preciso não apenas ouvir, mas ver os músicos do Karbido em ação.