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Ronaldo Cagiano

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti



Por Ronaldo Cagiano


RUA

A rua está ausente e longínqua,
como uma estepe inatingível,
sobre cicatrizes de antigas procissões
e revolvida pelo séquito
de solenes funerais.

O frio de agora não vem do tempo,
mas do silêncio abissal
de casas adormecidas,
com seus telhados ásperos
e gatos vadios
mastigando teias pelo alpendre.

Artéria fatigada 
por onde já não escorre
sequer o sangue coalhado das memórias,
mas seus jazigos perdulários
guardam remotas oferendas,
angústias e avarias
da guerra de cada um.

Passa por ela
uma legião aborrecida
de cantos inaudíveis,
séquito de fantasmas,
onde jaz, nas portas
e suas fechaduras hediondas,
a solidão de gerações esquecidas nas paredes,
sarcófagos e testemunhas
da inexorabilidade do tempo.

 

FLAMBOYANTS
                      para Eltânia André
 
Nas avenidas de Cataguases
os flamboyants florescem
como numa pintura de Van Gogh,

enquanto a cidade jaz
num silêncio sepulcral.

Corolas e pistilos denunciam
que no asfalto distante rompe uma flor:
é a rosa destemida
que vinga contra o tédio
e a dissimulação
que o tempo decreta
nesses homens tão urgentes.

Os passos enviesados
da entourage ensimesmada
não colhem dos pássaros
a melodia mozartiana
que insiste em meio
à indiferença total.

Mas essas árvores solenes
(como os discretos oitis das alamedas)
explodem altivas nas cercanias solitárias
e guardam segredos das gentes
sob o beiral do riacho exausto
que, sonolento, beija suas raízes.

Mais vivos do que nós,
celebram o que em mim
   já não vive.


SO(M)BRAS
               Para Leo Barbosa
  
Vejo o rio que corre
em Cataguases
– é o mesmo vário rio
que (es)corre em mim:

educando-me pelas encostas
com lições de cheias
e úmida cartilha de enfados.

O exemplo da água que f(l)ui,
com sua impessoalidade e inconcretude
crava-me um sertão nas entranhas.

E um acúmulo de pedra nas vísceras
embrenha na alma tantos eus.

Essa sombra, essas sobras
boiam indigentes, como um feto
em placentária
  clandestinidade.



EVANGELHO
               para Alberto Bresciani

dostoiévski é o caminho
kafka é a verdade
drummond é a vida

ninguém vai à montanha mágica
sem antes comer um quilo de sal
e matar um leão por dia

o Pai está mudo e cego
distante da agonia dos homens
que atravessam o grande sertão: veredas
em busca do tempo perdido

é a cinza das horas que me comove, clarice
é a maçã no escuro que me ilumina, bandeira
não sou um dom casmurro, cecília
mas esta morte e vida severinas
me deixam comovidos e de olhos cansados, rawet

machado, me fira; fernando, desnude
as pessoas que albergam em mim
enquanto henriqueta me mostra
uma lisboa banhada pelo amazonas
enquanto pelas ruas de coimbra, torga
me aponte o mondego
onde recolherei destroços os barcos de papel
que um dia naufragaram
                                         nos rios da minha infância

se viver, florbela, nos espanca,
e hospício é deus, maura
a poesia quando vem não respeita nada, gullar,
só assim, faulkner,
uma luz em agosto
nos acordará para o crime e castigo de existir



BOICOTE

Se Paris
está lendo Paulo Coelho,
eis minha vingança:
vou ler Proust
em Cataguases.

 

DAS COISAS E SEU RITMO

O sol aceso em meus olhos
fere a estrangeira gestação dos vazios.

Há tempo demais nos relógios da cidade:
eternidade com seus cupins de aço
varando nossas entranhas
para o triunfo do imponderável.

Estamos purgando a existência
com esses ponteiros insolentes
condenado-nos a um destino de fadigas
ou a nenhum registro nos obituários.

Pedra dentro do tempo,
a morte, como a mó,
impõe o ritmo das coisas:
pacientemente nos esfarinha,
grãos de nada
   num pomar de bactérias.

 

O RITMO DAS COISAS

O tempo
com sua máquina de esquadrinhar
esfarela o museu de ossos
escondido sob a pele fatigada.

O tempo
e seu evangelho de dissoluções
escultor insone
burilando o caminho rumo às Parcas.

O tempo
com sua vigília
sobre os escombros
em que nos transformamos a cada dia.

O tempo
arsenal de punhais
com a lógica taliônica
de uma rude cronologia.

O tempo
(belvedere ou abismo?)
no qual me lanço
para ser absorvido pelo insondável
na peregrinação movediça no vazio.

O tempo
animal invisível
que nos rouba todas as idades
e nos devora
com seu ritual insensato
              dentes afiados
como uma nuvem de gafanhotos
devorando nossas córneas.

O tempo
relógio insaciável
anoitecendo os meus olhos.

O tempo
a moenda das horas
impondo o ritmo das coisas.

 

CICLO)

Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos automáticos
das mãos que cerravam as portas

outros continuavam a vida
imunes à que passava,
despojada de sua última chama.

A cidade não seria diferente
porque amanhã
outras notícias viriam

e o rio no qual navegamos,

            Tejo a repetir a lógica de Heráclito,

seguiria rotineiro
como o sangue em nossas veias,
entre urgências e desatinos metabólicos.

Entre o solene despedir dos mortos
e a maquinal dor dos vivos

a criança se demorava
num olhar pensativo e inquiridor
rumo ao insondável.

E percebia,
ainda na antevéspera de sua existência,
que viver é um lento aprendizado de extinção.


Ronaldo Cagiano é autor, entre outros, de Dezembro Indigesto (vencedor do Prêmio Brasília de Produção Literária, 2001), Dicionário de Pequenas Solidões (Língua Geral, 2006) e O Sol nas Feridas (Dobra Ideias, 2011).