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Ronaldo Cagiano
Por Ronaldo Cagiano
RUA
A rua está ausente e longínqua,
como uma estepe inatingível,
sobre cicatrizes de antigas procissões
e revolvida pelo séquito
de solenes funerais.
O frio de agora não vem do tempo,
mas do silêncio abissal
de casas adormecidas,
com seus telhados ásperos
e gatos vadios
mastigando teias pelo alpendre.
Artéria fatigada
por onde já não escorre
sequer o sangue coalhado das memórias,
mas seus jazigos perdulários
guardam remotas oferendas,
angústias e avarias
da guerra de cada um.
Passa por ela
uma legião aborrecida
de cantos inaudíveis,
séquito de fantasmas,
onde jaz, nas portas
e suas fechaduras hediondas,
a solidão de gerações esquecidas nas paredes,
sarcófagos e testemunhas
da inexorabilidade do tempo.
FLAMBOYANTS
para Eltânia André
Nas avenidas de Cataguases
os flamboyants florescem
como numa pintura de Van Gogh,
enquanto a cidade jaz
num silêncio sepulcral.
Corolas e pistilos denunciam
que no asfalto distante rompe uma flor:
é a rosa destemida
que vinga contra o tédio
e a dissimulação
que o tempo decreta
nesses homens tão urgentes.
Os passos enviesados
da entourage ensimesmada
não colhem dos pássaros
a melodia mozartiana
que insiste em meio
à indiferença total.
Mas essas árvores solenes
(como os discretos oitis das alamedas)
explodem altivas nas cercanias solitárias
e guardam segredos das gentes
sob o beiral do riacho exausto
que, sonolento, beija suas raízes.
Mais vivos do que nós,
celebram o que em mim
já não vive.
SO(M)BRAS
Para Leo Barbosa
Vejo o rio que corre
em Cataguases
– é o mesmo vário rio
que (es)corre em mim:
educando-me pelas encostas
com lições de cheias
e úmida cartilha de enfados.
O exemplo da água que f(l)ui,
com sua impessoalidade e inconcretude
crava-me um sertão nas entranhas.
E um acúmulo de pedra nas vísceras
embrenha na alma tantos eus.
Essa sombra, essas sobras
boiam indigentes, como um feto
em placentária
clandestinidade.
EVANGELHO
para Alberto Bresciani
dostoiévski é o caminho
kafka é a verdade
drummond é a vida
ninguém vai à montanha mágica
sem antes comer um quilo de sal
e matar um leão por dia
o Pai está mudo e cego
distante da agonia dos homens
que atravessam o grande sertão: veredas
em busca do tempo perdido
é a cinza das horas que me comove, clarice
é a maçã no escuro que me ilumina, bandeira
não sou um dom casmurro, cecília
mas esta morte e vida severinas
me deixam comovidos e de olhos cansados, rawet
machado, me fira; fernando, desnude
as pessoas que albergam em mim
enquanto henriqueta me mostra
uma lisboa banhada pelo amazonas
enquanto pelas ruas de coimbra, torga
me aponte o mondego
onde recolherei destroços os barcos de papel
que um dia naufragaram
nos rios da minha infância
se viver, florbela, nos espanca,
e hospício é deus, maura
a poesia quando vem não respeita nada, gullar,
só assim, faulkner,
uma luz em agosto
nos acordará para o crime e castigo de existir
BOICOTE
Se Paris
está lendo Paulo Coelho,
eis minha vingança:
vou ler Proust
em Cataguases.
DAS COISAS E SEU RITMO
O sol aceso em meus olhos
fere a estrangeira gestação dos vazios.
Há tempo demais nos relógios da cidade:
eternidade com seus cupins de aço
varando nossas entranhas
para o triunfo do imponderável.
Estamos purgando a existência
com esses ponteiros insolentes
condenado-nos a um destino de fadigas
ou a nenhum registro nos obituários.
Pedra dentro do tempo,
a morte, como a mó,
impõe o ritmo das coisas:
pacientemente nos esfarinha,
grãos de nada
num pomar de bactérias.
O RITMO DAS COISAS
O tempo
com sua máquina de esquadrinhar
esfarela o museu de ossos
escondido sob a pele fatigada.
O tempo
e seu evangelho de dissoluções
escultor insone
burilando o caminho rumo às Parcas.
O tempo
com sua vigília
sobre os escombros
em que nos transformamos a cada dia.
O tempo
arsenal de punhais
com a lógica taliônica
de uma rude cronologia.
O tempo
(belvedere ou abismo?)
no qual me lanço
para ser absorvido pelo insondável
na peregrinação movediça no vazio.
O tempo
animal invisível
que nos rouba todas as idades
e nos devora
com seu ritual insensato
dentes afiados
como uma nuvem de gafanhotos
devorando nossas córneas.
O tempo
relógio insaciável
anoitecendo os meus olhos.
O tempo
a moenda das horas
impondo o ritmo das coisas.
CICLO)
Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos automáticos
das mãos que cerravam as portas
outros continuavam a vida
imunes à que passava,
despojada de sua última chama.
A cidade não seria diferente
porque amanhã
outras notícias viriam
e o rio no qual navegamos,
Tejo a repetir a lógica de Heráclito,
seguiria rotineiro
como o sangue em nossas veias,
entre urgências e desatinos metabólicos.
Entre o solene despedir dos mortos
e a maquinal dor dos vivos
a criança se demorava
num olhar pensativo e inquiridor
rumo ao insondável.
E percebia,
ainda na antevéspera de sua existência,
que viver é um lento aprendizado de extinção.
Ronaldo Cagiano é autor, entre outros, de Dezembro Indigesto (vencedor do Prêmio Brasília de Produção Literária, 2001), Dicionário de Pequenas Solidões (Língua Geral, 2006) e O Sol nas Feridas (Dobra Ideias, 2011).