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Navegar é preciso

O "Professor W. Besnard", navio oceanográfico da USP / Foto:IO-USP

Com faixa costeira invejável, o Brasil faz pouca pesquisa no mar

O Brasil vai se lançar ao mar. Missão: explorar os 8 mil quilômetros de sua faixa costeira, uma das maiores do mundo. Ainda timidamente, o país se prepara para sair em busca dos conhecimentos que essa geografia privilegiada pode lhe proporcionar e, ao mesmo tempo, manter a soberania do território. Para que isso se torne realidade, no entanto, falta formar uma grande equipe de especialistas. Esforços com esse objetivo, felizmente, já existem, procurando recuperar o tempo perdido.

A exemplo das universidades federais do Pará e do Espírito Santo, que neste ano implantaram o curso de oceanografia, a partir de 2002 a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) também estarão oferecendo essa disciplina em nível de graduação. Além disso, a comunidade científica comemora o retorno à ativa do navio oceanográfico Professor W. Besnard, uma das três embarcações de que o país dispõe para pesquisa, depois de passar longo período em reforma.

Desde 1994, quando entrou em vigor a Convenção sobre o Direito do Mar, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e da qual o Brasil é signatário, a pesquisa oceânica passou a ser uma necessidade urgente. Nesse documento, ficou definido que os países que desejam exercer soberania numa Zona Econômica Exclusiva (ZEE), uma faixa de oceano que se estende do mar territorial (12 milhas de largura) até 200 milhas náuticas da costa, estão obrigados a realizar estudos do meio ambiente marinho. Embora não haja prazo estabelecido para apresentar resultados, aqueles que deixarem de cumprir essas disposições correm o risco de perder a soberania sobre esses trechos e, como conseqüência, não poderão impedir que barcos pesqueiros de outras nações operem em suas águas territoriais.

Por essa razão, o Brasil, que tradicionalmente não investia nessa área, agora vem se empenhando para recuperar o atraso, pois está defasado mesmo na comparação com outros países em desenvolvimento. A Índia, por exemplo, que possui uma costa muito menor, conta com seis navios oceanográficos e tem desenvolvido estudos de alto nível de seu potencial marinho.

Mudança de perspectiva

Para atender às exigências da ONU, o governo brasileiro criou, em 1995, o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), do qual participam 350 pesquisadores de várias instituições nacionais. Coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, o Revizee tem como objetivo fazer o levantamento do potencial marítimo do país. Os resultados desse estudo terão impacto tanto econômico quanto social, uma vez que, segundo estimativas, atualmente cerca de 800 mil trabalhadores vivem da pesca. Somando-se esse número aos profissionais envolvidos indiretamente nessa atividade, chega-se a um total de 4 milhões de pessoas.

Motivos, portanto, não faltam para que o mar seja estudado. Cientistas ingleses, por exemplo, pesquisam uma forma de utilizar a força natural das ondas como fonte de energia. Uma projeção da Comissão Européia de Energia indica que a Grã-Bretanha poderia produzir toda a energia de que precisa se apenas 0,1% do potencial existente em sua costa fosse utilizado.

Além do aspecto socioeconômico, lembra o vice-diretor do Instituto Oceanográfico da USP (IO-USP), Yassonubo Matsuora, o mundo marinho deve ser pesquisado também para se descobrir formas de prevenir catástrofes naturais originadas, na maior parte das vezes, de fenômenos climáticos. "A ocorrência de uma anomalia no oceano Pacífico tropical, mais especificamente na costa do Peru, conhecida como El Niño (um aquecimento anormal das águas), trouxe seca ao nordeste e inundações à região sul do Brasil em 1992, 1993 e 1998." Todos esses transtornos tinham relação com o oceano. Por isso, diz ele, "precisamos entender a natureza desses fenômenos para garantir que suas conseqüências sejam menores".

Outro fator diz respeito à ecologia. "Quando há um derramamento de óleo no mar", diz Matsuora, a exemplo dos episódios que envolveram a Petrobras no primeiro semestre deste ano, "ninguém sabe ao certo para onde vai esse produto, altamente poluente, e quais os reais efeitos desse tipo de desastre ecológico sobre o meio ambiente." Em sua opinião, se tivéssemos mais profissionais especializados em oceanografia, seria possível reduzir o impacto de catástrofes como essa.

Trabalho incipiente

Os especialistas concordam, entretanto, que, apesar de sua enorme faixa costeira, o Brasil apenas engatinha na pesquisa oceanográfica, em contraste com estudos bem mais desenvolvidos de outros ecossistemas localizados em terra firme. Segundo Fernando Luiz Dichl, presidente da Associação Brasileira de Oceanografia, "não aplicamos nem 0,5% do que os Estados Unidos, por exemplo, investem em pesquisas no mar, e por isso há um completo desconhecimento de nosso banco genético marinho". De fato, o Brasil dispõe de raros centros de pesquisa e são poucos os estudiosos que trabalham na busca de produtos naturais de origem marítima.

Em contrapartida, os americanos, diz Matsuora, têm à sua disposição vários navios de pesquisa e um laboratório para cada um dos 50 estados federados, além de contar com milhares de especialistas trabalhando em terra. Nada que possa ser comparado à realidade brasileira. Na verdade, a falta crônica de investimento em pesquisa vai deixando o país cada vez mais atrasado. Prova disso é o exíguo número de embarcações aparelhadas para estudar a imensa costa do Brasil. Além do navio Professor W. Besnard, de propriedade do IO-USP, há somente mais dois barcos para estudos oceanográficos: o Antares, que pertence à marinha, e o Atlântico Sul, da Fundação Universidade do Rio Grande do Sul (Furg).

O Professor W. Besnard, cujo nome homenageia o cientista francês que fundou o IO-USP, ficou imobilizado desde maio de 1998, para passar por uma reforma. Recebeu um novo motor, de origem alemã, e equipamentos mais modernos de navegação e pesquisa oceanográfica, assim como um avançado sistema de comunicação por satélite, que permite contato via Internet com os laboratórios do continente. Apesar de estar em operação há 33 anos e ter percorrido mais de 100 mil milhas náuticas, a embarcação ainda é o mais importante laboratório do país para pesquisa marinha. "Sem navio, não se faz oceanografia", resume o diretor do Instituto Oceanográfico, professor Rolf Roland Weber. Ele informa que, para trazer o navio de volta aos cruzeiros científicos, foram necessários recursos de cerca de R$ 1 milhão, patrocinados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Existe também um projeto, orçado em R$ 12 milhões, de construção de um novo navio oceanográfico. Apesar de ser considerado vital para a defesa dos interesses brasileiros no mar, faltam fontes de financiamento complementares, principalmente do setor privado. Sem elas, a idéia dificilmente sairá do papel.

Um passo adiante

A perspectiva de implantação do bacharelado em oceanografia na USP, uma das mais conceituadas universidades brasileiras, foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica. Por enquanto, a USP oferece apenas cursos de pós-graduação nessa área. Para José Muelbert, professor da Furg e Ph.D. em oceanografia pela Dalhouse University, do Canadá, "a criação do curso contribuirá para consolidar a atividade do oceanógrafo no Brasil". Além disso, diz ele, os conhecimentos da oceanografia têm sido muito utilizados em várias partes do mundo para melhorar as previsões meteorológicas, possibilitar ganhos na agricultura e prevenir desastres decorrentes de enchentes.

A pesquisadora e coordenadora dos cursos de geografia e oceanografia na Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Maria Inês Freitas Santos, explica que, embora seja uma ciência relativamente nova, a oceanografia vem sendo reconhecida nos últimos tempos como um estudo emergente e de fundamental importância para a compreensão e integração dos ecossistemas marinhos e costeiros. "Os estudos oceanográficos representam o começo de uma grande busca de alternativas para alimentação, qualidade de vida e, talvez, até da sobrevivência do homem no futuro."

Mesmo levando em conta as deficiências da pesquisa realizada no país, a professora Thaís Navajas Corbisier, da USP, considera de bom nível os trabalhos produzidos no Brasil. "Vem aumentando o número de publicações de estudos brasileiros em conceituadas revistas científicas de circulação internacional", assegura.

Um desses estudos refere-se à pesquisa de remédios contra doenças graves. O professor Roberto Ávila Bernarde, doutorando da USP que se especializa em ecologia de comunidades de peixes, informa que estão sendo descobertos componentes para medicamentos encontrados em organismos marinhos como esponjas do mar, corais e tubarões. "A esqualamina, uma substância retirada do estômago do tubarão, está sendo utilizada no tratamento de câncer", exemplifica.

É também de Bernarde a idéia de construir recifes artificiais, utilizando grandes blocos de concreto, para recuperar populações de peixes destruídas por agressões ao meio ambiente, como a pesca em excesso e predatória, ou por variações de temperatura como as provocadas pelo El Niño. A proposta do projeto, já enviada à Secretaria de Agricultura de São Paulo, abrange toda a extensão do litoral paulista, de ilha Comprida a Ubatuba, e baseia-se em experiências japonesas de criação de recifes artificiais para garantir a procriação e crescimento das espécies. O Japão, que não tem espaço para a agricultura e precisa retirar alimentos do mar, investiu US$ 100 milhões em trabalho similar, criando verdadeiros berçários naturais de peixes. Bernarde sugere que sejam utilizados blocos de concreto, por conter carbonato de cálcio, material semelhante ao que existe nos oceanos, com a vantagem adicional de não ser poluentes.

"Há vários pontos de pesca predatória que comprometem os estoques de peixes e crustáceos", explica o pesquisador. A causa são os barcos de pesca industrial que trabalham cada vez mais perto da costa, nas áreas consideradas berçários naturais. "Para cada quilo de camarão, eles capturam 5 quilos de peixes pequenos, que depois são jogados fora", diz.

O Brasil na Antártida

A pesquisa oceanográfica no país recebeu um grande impulso em 1983, ano considerado um marco na oceanografia brasileira, quando instituições de ensino e pesquisa de todo o território nacional uniram esforços para instalar uma base na Antártida, a Estação Comandante Ferraz. Conduzidos pelo navio Barão de Teffé, que também oferece apoio à pesquisa, cientistas brasileiros conseguiram que o país conquistasse um assento, como membro pleno, no conselho consultivo do Tratado da Antártida e, posteriormente, no Scientific Committee on Antarctic Research (Scar), uma entidade internacional de pesquisa.

A maior parte dos estudos desenvolvidos pelo IO-USP no continente antártico, de acordo com a professora Thaís Corbisier, se concentra na baía do Almirantado, na ilha Rei George, onde está situada a estação brasileira. A pesquisadora da USP, especialista em oceanografia biológica, desenvolve um trabalho com comunidades de invertebrados marinhos que vivem em regiões rasas das áreas da baía. Segundo ela, "é importante o monitoramento ambiental do ecossistema marinho, principalmente no caso da Antártida, onde ainda há pouca ação do homem".

A base no continente gelado é um posto avançado que depende constantemente do apoio logístico da marinha e da força aérea do país. As dificuldades naturalmente são inúmeras. Existe, porém, a consciência de que a maior delas não é o intenso frio que cobre de gelo aquelas plagas durante grande parte do ano. Faltam recursos materiais, assim como cientistas bem formados. Uma lacuna que, pelo menos parcialmente, os novos cursos universitários na área oceanográfica projetam sanar.


 

Atração marinha

 

Aberto a alunos e pesquisadores, o Museu Oceanográfico da USP pode ser uma boa opção para quem quer conhecer o ecossistema marinho. O espaço, que fica ao lado do Instituto Oceanográfico, conta com exposições permanentes de animais como golfinhos e pingüins empalhados, aquários com cavalos-marinhos e peixes exóticos, uma carcaça da baleia de Bryde, espécie encontrada nos mares tropicais, e até um batiscafo, aparelho para exploração do mar construído em aço inox e projetado na própria universidade. Segundo o biólogo Edson Futema, subchefe do museu, uma média de 1,5 mil pessoas, principalmente estudantes, visitam mensalmente o local. Os aquários são a parte preferida do passeio. Infelizmente, não há monitores para facilitar o aprendizado das crianças que procuram o museu. O Batiusp, primeiro batiscafo brasileiro, foi construído em 1979, e ainda pode prestar serviços no mar.

As visitas ao Museu Oceanográfico podem ser agendadas pelo telefone (11) 3818-6587.


 

Um profissional polivalente

 

Considerada uma ciência promissora, pela importância cada vez maior que as questões ambientais vêm adquirindo em âmbito mundial, a oceanografia apenas recentemente começou a despertar interesse no Brasil. Em 1974 se formaram os primeiros profissionais nessa área, mas a regulamentação da carreira ainda aguarda decisão do Congresso Nacional, onde está em fase de estudos e em breve deve entrar na pauta de votação. Segundo o pesquisador José Muelbert, os oceanógrafos têm enfrentado muita oposição de outros profissionais, como biólogos e engenheiros químicos, porque, devido a seu caráter multidisciplinar, muitas vezes a oceanografia acaba invadindo a área de atuação deles. Seu colega, Roberto Ávila Bernarde, acrescenta que essa resistência baseia-se na idéia de que não se poderia formar em cinco anos um profissional com conhecimento em áreas tão variadas como biologia, geologia, química e física. Entretanto, devido às peculiaridades e exigências dessa atividade, o oceanógrafo é forçado a aprofundar seus estudos relativos aos assuntos do mar. Correntes, massas de água, circulação costeira, nutrientes, ciclos de elementos e sedimentação marinha são alguns dos tópicos específicos do curso, que não constam do currículo de profissões assemelhadas.

As áreas em que o oceanógrafo pode atuar são bastante variadas: estudo da pesca, gerenciamento costeiro, manejo de recursos pesqueiros, efeitos da poluição no mar, problemas relacionados aos ecossistemas de regiões costeiras, balneabilidade dos mares e até turismo ambiental. Na opinião de Bernarde, há um grande mercado no Brasil para atividades dessa natureza.

Na USP, o curso terá duração de cinco anos, em período integral. A partir de 2002, serão oferecidas anualmente 40 vagas. A parte de pesquisa realizada durante o curso contará com recursos de instituições federais e estaduais, como a Fapesp e a Petrobras, que é parceira do IO-USP na área de monitoramento ambiental.

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