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O quilombo resiste

Claudina: aos 80 anos, trabalhando a terra / Foto: 
Leonardo Sakamoto

Descendentes de escravos tentam recuperar a cultura e a dignidade

LEONARDO SAKAMOTO

Além dos contrafortes ao sul da chapada Diamantina, planalto no estado da Bahia, em meio a uma terra desbotada pelo açoite dos anos, um povo luta para sobreviver. A centenária comunidade remanescente de quilombo de Barra e Bananal – a cerca de 15 quilômetros de pó e buracos da histórica cidade de Rio de Contas – tenta se adaptar ao mundo contemporâneo e ao mesmo tempo resgatar parte de seu passado.

Quem chega a esses vilarejos pensando em encontrar casas de palha cobertas com telhados de folha de palmeira – no melhor estilo tribal angolano – decepciona-se de imediato. Antenas parabólicas brotam do alto de casinhas coloridas, esparsas e de difícil acesso. Tanto em Barra quanto em Bananal, as igrejas são o centro da vida social, como em qualquer cidade do interior.

As construções são poucas. Dá para contar nos dedos das mãos, calejadas com o trabalho nas roças, e dos pés, cansados de caminhar nas estradas poeirentas. As cruzes de madeira tosca no único cemitério competem com as ervas daninhas e o mato para ver quem fica com a atenção do visitante. O rio Brumado, de águas cristalinas, corta os vilarejos até alcançar o açude municipal mais à frente.

O lugar é bonito. À esquerda fica o pico das Almas, que guarda lendas douradas de um tempo em que se jogava pó de ouro sobre as imagens dos santos nos dias de procissão. Por todos os lados estende-se a chapada Diamantina. A língua que se fala é o português. Dialetos africanos se perderam no tempo, varridos da memória até dos habitantes mais velhos.

A história desses vilarejos começa no século 17, quando um navio negreiro vindo da África naufragou na costa baiana, próximo ao local onde hoje fica a cidade de Itacaré. Os sobreviventes, seguindo o curso do rio de Contas, entraram pelo sertão em busca de lugar seguro para se estabelecer. Escolheram as cabeceiras do rio Brumado e por lá ficaram, cultivando a roça, mantendo sua cultura e tradições. A tranqüilidade acabou, porém, quando se descobriu ouro na chapada Diamantina e surgiram aventureiros, ávidos pelo metal dourado.

Chefiados por Antônio Raposo Tavares, os bandeirantes escravizaram os quilombolas, obrigando-os a remexer cascalho. Senzalas porém não foram erguidas, e os negros continuaram vivendo em suas terras. Com o decorrer dos anos, o ouro se tornou escasso e os aventureiros rumaram para o norte da chapada, região de Lençóis, onde haviam sido descobertas jazidas de diamantes. A liberdade foi assim reconquistada, embora o preconceito e a discriminação continuassem.

Barra do Brumado fica a aproximadamente 2 quilômetros de Bananal. Em volta de ambos os vilarejos, as roças se espalham pelos morros, como um tapete esburacado. Na época próxima do meio do ano, chove pouco e há muito pó, que o vento espalha, formando pequenos redemoinhos na praça central de Barra. De um lado fica a igreja, do outro o posto de saúde e a escola. Da primeira à quarta série do ensino fundamental, as crianças estudam ali mesmo. Depois, só em Rio de Contas. Um ônibus escolar faz o trajeto entre a cidade e os vilarejos, levantando poeira em uma estrada não muito carroçável.

A energia elétrica foi instalada há quatro anos e a água encanada em 1988, depois de muito empenho da comunidade. Os antigos políticos da região, levados pela inércia racista, fizeram de tudo para que tais benefícios não chegassem aos arraiais. A luz elétrica poderia ter vindo muito tempo antes, mas foi retardada para que os "negros" não fossem favorecidos.

O posto de saúde existe na comunidade desde 1986 e utiliza agentes. Um trabalho conjunto com a Pastoral da Criança acabou com a desnutrição no lugar e diminuiu as complicações pós-parto. Antes, morria-se muito do mal-de-sete-dias, uma infecção que começa no umbigo do recém-nascido, provocada por óleos e misturas utilizados para acelerar sua queda. Hoje, as doenças que mais matam nos arraiais são as cardíacas e, não raro, os casos de pressão alta.

De acordo com a Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura, com sede em Brasília, as duas comunidades juntas têm cerca de 740 habitantes. Desse número devem-se descontar as migrações sazonais, ou seja, o pessoal que vai para São Paulo, depois volta para o nordeste, desce de novo para o sul e retorna novamente, num vaivém sem fim. Provavelmente, apenas a metade daquele total são residentes fixos.

Sobrenomes também são poucos. Silva, Jesus, Sousa, Ramos, Santos. Basicamente são essas as famílias. Muitos casamentos são endogâmicos, isto é, realizados entre parentes, primo com prima, tio com sobrinha. Os sobrenomes vão se cruzando, se misturando. "Na verdade, todo mundo é primo", atesta Claudina Silva, 80 anos, uma das moradoras mais antigas da comunidade. Somente nas últimas décadas tem acontecido o casamento com pessoas de fora da comunidade. Por isso, antigamente era muito comum bebês nascerem com deficiência física ou mental.

Histórias de sofrimento

Encontramos Claudina na sua roça de mandioca, sob um sol forte, remexendo a terra e arrancando ervas daninhas. Pele curtida pelo tempo e dona de um gostoso sotaque arrastado, lembra da época em que a pobreza era mais brava e o rio Brumado, nos meses de chuva, ilhava certas partes da comunidade. "Tínhamos de jogar comida para as pessoas que ficavam presas do outro lado, pois não havia pontes." Com voz agradável, amaciada pelo tempo, ela gosta de cantarolar:

Cadê, meu bem?, ah!
Pra me carinhar, ah!
Saudade dele, ah!
Quer me matar, ah!
Se eu disser que bala mata, ah!
Bala não mata ninguém, ah!
A bala que mata gente, ah!
É amar e querer bem, ah!

Entre uma cantiga e outra, chegamos à casa onde ela mora com a irmã Maria, de 79 anos. Nenhuma delas se casou. "Eu até tinha achado um rapaz bonito, mas o pai não deixou", lembra Claudina, remexendo o passado num misto de aceitação e saudade. A televisão para elas não vale muito. Esquecida na estante, ganha poeira e tem menos importância que a janela que, de frente para a praça, mostra o movimento do arraial.

"Nossos pais contavam histórias de sofrimento, da época da escravidão. Mas a gente não queria ouvir essas coisas, achávamos que era caduquice. Quando eles morreram, perdemos isso para sempre." Além disso, o racismo fez com que, ao longo dos anos, os negros das comunidades substituíssem suas tradições, crenças e cultura pelas dos portugueses. No imaginário das pessoas, as coisas que vinham dos brancos eram melhores que as dos negros. Candomblé e dialetos tribais, também ligados à escravidão, foram sendo abandonados. Em seu lugar, o catolicismo e a língua portuguesa foram adotados incondicionalmente.

Esse processo se acentuou provavelmente na primeira metade deste século. O fim da escravidão ainda era recente, e muitos queriam esquecê-la. Foi esse pensamento que levou Rui Barbosa, por exemplo, a queimar ingenuamente centenas de documentos relacionados à prática escravocrata no Brasil, para "apagar" uma parte incômoda e vergonhosa de nossa história. Desprezando assim o verdadeiro papel da história, que é justamente lembrar certos acontecimentos para que nunca mais se repitam.

Das velhas tradições, sobrou pouca coisa. Uma delas é o bendengó, uma dança parecida com o samba que se faz aos pares e fica ideal com um mínimo de dez participantes. Esses passos ainda são ensinados na escola do vilarejo de Barra. Utilizam-se alguns instrumentos, como o tambor, o pandeiro e o triângulo, embora estes dois últimos sejam fruto de uma mistura de tradições. As rezas também persistem, como as "excelências" (indicadas para encomendar as almas dos mortos para o outro mundo), assim como cantigas de roda.

Tambor na igreja

"Os velhos estão morrendo e, se não tomarmos cuidado, com eles vão embora muitas das tradições que nos restam", alerta Carmo Joaquim da Silva, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural de Barra do Brumado, Bananal e Riacho das Pedras. Ele é o líder local e tenta trazer de volta para o quilombo a cultura perdida dos negros. Para isso, tem recebido apoio de grupos de consciência negra em Salvador. Em Barra e Bananal comemora-se o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), aniversário da morte de Zumbi. O 13 de maio, segundo eles, foi resultado de um "acordo de reis e da Europa para comercializar seus produtos".

"Nosso povo ainda não tem consciência de sua raça", diz Carmo Joaquim. Mas as coisas começaram a mudar de uns dez anos para cá, acrescenta. "Antes a gente mesmo se inferiorizava, achávamos que não tínhamos acesso a certas coisas porque éramos negros e aceitávamos isso. A própria palavra ‘negro’ era considerada como ofensa. Preferíamos preto, moreno." Uma das primeiras iniciativas foi usar o tambor, o pandeiro e o triângulo nos cultos da igreja. "Aí o padre disse que finalmente estávamos usando o que é nosso."

"Nos últimos 300 anos, nossa cultura se perdeu, foi tomada. Não houve resistência. Queremos que o pessoal que trabalha conosco em Salvador nos explique o que perdemos", completa Carmo Joaquim.

Após séculos de um contínuo processo de apagamento de sua cultura, as comunidades de Barra e Bananal, nestes 25 anos, passaram por sua maior transformação. Parte das terras dos povoados foi desapropriada para a construção do açude público Luiz Vieira, que serve principalmente aos municípios de Livramento do Brumado, Dom Basílio e Rio de Contas. A obra, realizada pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), visava retirar essa região da estagnação econômica, usando a água para consumo da população e para irrigação. A barragem não democratizou o lugar. Segundo a Fundação Cultural Palmares, o açude do rio Brumado colocou em xeque as possibilidades de reprodução socioeconômica das coletividades negras de Rio de Contas. O enchimento do lago resultou na perda de mais de 50% das terras férteis disponíveis, além de ter sido responsável pelo fim do arraial de Riacho das Pedras. Muitos dos moradores se estabeleceram em terras mais acima, nos outros dois povoados ou simplesmente migraram para outras cidades da Bahia ou mesmo São Paulo. Esse projeto estatal beneficiou apenas pequenos, médios e grandes produtores das cidades circunvizinhas de Livramento do Brumado e Dom Basílio.

Desde 1983, quando se encheu o açude, as comunidades aguardam indenização do Dnocs pelas áreas submersas. Mas muitos moradores não possuíam certificados de propriedade das terras, embora ninguém discutisse sua posse secular. Em uma manobra injusta, o departamento estipulou que o ressarcimento cobriria apenas as benfeitorias, ou seja, casas, despensas, celeiros e coisas do gênero. Desconsideravam-se as terras. É mais ou menos como ser enxotado de casa e ser pago apenas pelos armários que lá ficaram.

Em relatório publicado em agosto de 1999 pelo próprio Dnocs, o órgão reconhece a situação de pobreza a que estão submetidos os moradores e que também não realizou o pagamento às famílias que não tinham títulos de posse das terras. Mas, de acordo com Carmo Joaquim, na verdade muitos possuíam as escrituras, documentos que o Dnocs teria recolhido com a promessa de melhorar a comunidade, construir uma agrovila, escolas públicas e trazer médicos. "Isso foi na década de 70 e, como não havia ninguém que nos abrisse a cabeça, entregamos o que eles pediram."

Segundo Carmo Joaquim, em seguida a empresa mandou que todos abandonassem as terras. "O pessoal de Riacho das Pedras só saiu quando chegou a água. Um devoto de Bom Jesus colocou seu oratório na cabeça e, quase coberto, saiu chorando."

Na qualidade de comunidade remanescente de quilombo, título conferido pelo governo, os moradores receberam de volta e em definitivo a propriedade das terras. Mas todos ainda aguardam as compensações prometidas pelo Dnocs. Projetos de urbanização dos vilarejos, melhoria de saneamento básico, com instalação de serviço de água e esgoto, treinamento de mão-de-obra especializada para o trabalho agrícola e programas de assistência social são algumas das promessas. Essa seria uma forma de gerar empregos para absorver os trabalhadores que foram tentar a vida no sul e sudeste e estão voltando devido à crise econômica.

O solo do sertão é ideal para o plantio de frutas, como abacaxi, mamão, manga, romã, laranja, jaca, banana. Sem falar do milho, feijão, algodão e da boa e velha mandioca. Barra até possui uma moenda comunitária para a produção de farinha. Mas uma das principais reivindicações, o projeto de irrigação de terras cultiváveis, está com o cronograma atrasado. De acordo com o próprio Dnocs, as obras deveriam ter começado em março deste ano com previsão para terminar até dezembro. Mas até agora nada.

A briga com a empresa do governo já chegou à Justiça. As perspectivas estão distantes, apesar de as soluções serem tão simples. Distantes como os contrafortes da chapada Diamantina, que atraem turistas, muitos deles estrangeiros, em busca do que resta de uma cultura que se mantém a duras penas ao longo dos séculos. Uma cultura condenada a desaparecer, engolida pelas águas do esquecimento, se nada for feito para preservá-la.

Barra e Bananal são apenas duas das 724 comunidades remanescentes de quilombo que existem no Brasil. Cada uma com sua história, com seus problemas, sua esperança. Todas unidas, porém, na tentativa de sobreviver em uma sociedade comprometida por outros valores. E muito preconceito.


 

Atestado de culpa

 

Ao construir o açude público na região dos quilombos, o Dnocs sabia que estava ameaçando a sobrevivência e a tradição dos descendentes de escravos. Seguem abaixo trechos do relatório oficial da empresa, reconhecendo tais problemas.

"O projeto tornou Livramento hoje um município próspero, com taxa de crescimento superior à dos demais municípios vizinhos, abastecendo o mercado interno e exportando excedentes para o mercado internacional.
As ações que fizeram a riqueza da população residente a jusante da obra motivaram o agravamento da pobreza nos arraiais negros de Barra, Bananal e Riacho das Pedras. A construção da barragem impossibilitou a prática da agricultura nos solos mais férteis do vale, deslocando suas atividades para os tabuleiros nas cotas mais altas, onde, além da carência de minerais essenciais ao cultivo, não existe água para a manutenção das culturas.
O enchimento do reservatório do açude público Luiz Vieira eliminou para aquelas comunidades as condições de trabalho que lhes garantiam, mesmo que de forma rudimentar, sua sobrevivência." (...)

"Privados de suas terras, sem recursos financeiros e assistência, os quilombos negros de Barra, Bananal e Riacho das Pedras dificilmente serão mantidos. A exemplo do arraial de Canudos (também na Bahia), ao levar o desenvolvimento econômico à região, pode-se estar, também, destruindo um outro marco histórico."

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